• Nenhum resultado encontrado

4. DO FALAR AO FAZER

4.3 Atos de fala diretivos da perícope de Tg 3

Nesse capítulo 3 da Carta de Tiago, o autor passa a falar diretamente com seus ouvintes, fazendo usos de verbos imperativos na 2ª pessoa do plural, e algumas vezes, na 1ª pessoa do plural, quando precisa mostrar aos ouvintes que se inclui no discurso. Essa forma de dirigir-se ao seu público, às vezes demonstra que o autor da Carta não atribui a si posição muito superior aos irmãos, mas ele mesmo se inclui como partícipe das fraquezas que acometem todas as pessoas. Para Torres:

O efeito provável dessa estratégia talvez tenha sido que os ouvintes não se sentiram ameaçados com um discurso que os tivesse colocado em plano inferior ao do apóstolo. Ou seja, Tiago se apresentou a eles como sendo susceptível às mesmas dificuldades e equívocos (2008, p. 55).

Dentre esses equívocos, elencados pelo autor da Carta de Tiago, está o que mais de perto persegue qualquer pessoa: a falta de controle da palavra, tão bem esclarecido pelo autor da Carta, ao empregar as várias metáforas a respeito da língua. Aconselhando logo no v. 1 sobre as grandes responsabilidades e cobranças que se impõem aos que pretendem ser “mestres”.

Ser “mestre”, no contexto da Carta de Tiago, escrita no início da era Cristã, significava uma posição de destaque, correspondia ao que se descreveu sobre a importância dos escribas no (cap. 2 p. 31) desse trabalho. Por ser uma posição importante e bastante honrada, era também muito arriscada, pois o

“mestre” poderia ser tentado a usar de sua posição para fins indignos à profissão. Por isso Leahy afirma: “Uma vez que o ensino se faz mediante a fala, Tg passa a

uma longa admoestação acerca do uso da língua” (2015, p. 675). Por sua vez, Carson destaca que:

A fluência religiosa, a avidez pelo ensino e o desejo obsessivo pelas discussões casuísticas têm sido em todas as épocas características marcantes da piedade farisaica. O terceiro capítulo é inteiramente

dedicado ao combate a essa falha (2008, p. 2143).

Por isso, o autor da Carta de Tiago não poupa esforços para admoestar seus ouvintes a respeito do uso da língua, que pode ser um instrumento usado para a destruição das pessoas. Sendo assim o autor aconselha enfaticamente v. 1a:

a. “não vos torneis muitos de vós mestres”.

O autor da Carta de Tiago emprega o verbo no imperativo negativo, portanto um ato diretivo, cujo propósito ilocucionário é uma tentativa de levar o ouvinte a fazer algo. Que nesse caso, por via da negativa, é levar o ouvinte a desistir de ser mestre. Para isso, o autor alerta sobre o papel do “mestre”, pois quanto maior o esclarecimento, maior a responsabilidade. Sendo assim, aconselha aos que pretendem o honorável cargo, que a principal condição para o exercício dessa função é saber domar a língua (vv. 3-12), saber usar as palavras com sabedoria e piedade, visando sempre a construção ética da pessoa. Por isso, expressa através do segundo verbo do v.1 empregado na 1ª pessoa do plural, que os mestres têm muita responsabilidade e serão cobrados por isso, conforme ele diz no v. 1b:

b. “sabendo que havemos de receber maior juízo”

b. “Sabeis com que severidade seremos julgados”. (TEB)42

Nesse trecho, o autor se inclui e, portanto, se apresenta susceptível às mesmas responsabilidades que envolvem aqueles que pretendem a função de mestres. Carson (2008, p. 2143) afirma: “Tiago se associa aos que ele adverte. Quanto maior o esclarecimento, maior a responsabilidade”. Diante disso, pode-se

afirmar que o autor emprega um ato de fala assertivo, pois, como afirma Searle (2002, p. 19): “O propósito dos membros da classe assertiva é o de

comprometer o falante (em diferentes graus) com o fato de algo ser o caso com a

verdade da proposição expressa”. Sendo assim, ele chama a atenção para a verdade da proposição, na qual se inclui e por isso se compromete com a verdade do que ele mesmo expressa, apelando para o estado psicológico de crença (que p), pois segundo Searle:

Quem enuncia, explica, assere ou alega que p expressa a crença de que p; quem promete, jura, ameaça ou se empenha em fazer A expressa uma intenção de fazer A; quem ordena, manda, pede a O que faça A, expressa um desejo (uma vontade) de que O faça A; quem se desculpa por ter feito A expressa arrependimento por ter feito A; etc. Em geral, ao realizar qualquer ato ilocucionário com um conteúdo proposicional, o falante expressa uma atitude, um estado, etc. com respeito a esse conteúdo proposicional (2002, p. 6).

Sendo assim, esse ato assertivo atende as condições referentes ao falante que se compromete com a verdade da sentença: “havemos de receber maior juízo”, pois, ao proferir (p), o falante (crê que p), mas também envolve o ouvinte no mesmo grau de responsabilidade, pois, ao assumir a função de “mestre” também está comprometido com as responsabilidades que o cargo exige.

Ao empregar esse ato de fala, contudo, o autor da Carta visa alcançar um público muito mais vasto do que o dos doutores e dos mestres, visa alcançar a todos os destinatários independentemente de sua função. Por isso, o tema principal dessa perícope é o sábio uso da língua. E isso envolve qualquer pessoa, não somente os mestres, mesmo levando em conta as ressalvas que já foram apresentadas, pois as responsabilidades pelo que se diz variam de acordo com o grau de conhecimento e a autoridade que a pessoa exerce. Sobre a perspectiva de

que essa perícope se estende a todos os ouvintes da Carta de Tiago, Vouga afirma:

Tg 3,1-13 começa com um alerta contra a multiplicação dos mestres nas comunidades cristãs. A perspectiva se modifica, todavia, numa advertência muito mais geral sobre o poder da língua (vv. 5-8 introduzidos pelos vv. 2 e 3-4). Esta interpela pessoas (“nós”, v. 2) que podem ser muito bem, à primeira leitura, apenas os mestres do v. 1 tanto quanto cada destinatário (1996, p. 102).