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Atos Infracionais, Ambiente Socioeducativo e Garantia de Direitos

Capítulo 2: Análise Social dos dados coletados

2.1 Atos Infracionais, Ambiente Socioeducativo e Garantia de Direitos

“O trauma que eu carrego Pra não ser mais um preto fudido [...] Me vê, pobre, preso ou morto Já é cultural [...]”

(Negro Drama – Racionais MC)

Um grupo de alunos da Faculdade de Direito de Itu (FADITU) recentemente convidou-me para acompanhá-los em uma visita na Fundação CASA, devido a um trabalho que deviam realizar a respeito de adolescentes em conflito com a lei. Nesse acompanhamento visitamos uma unidade que não estava dentre aquelas em que eu realizo minha pesquisa, e todos os trâmites foram realizados pelos próprios alunos visitantes. Ao chegarmos à unidade, passamos por uma apresentação da instituição, sendo que uma das funcionárias nos mostrou uma visão geral do atendimento socioeducativo. Entre uma informação e outra, essa funcionária descreveu situações e histórias dos adolescentes, dentre elas, falou a respeito da suspensão da visita de crianças (filhos e irmãos dos adolescentes) aos finais de semana. Diante de meu questionamento, a funcionária explicou-nos:

Nos dias de visita costumamos servir os familiares com muita comida, as crianças conhecem a unidade e os adolescentes internados contam o que comem, onde dormem, as atividades que fazem. Então começamos a perceber que muitas crianças tinham sonho de vir para a Fundação CASA, para ter as coisas que os adolescentes têm aqui: alimentação, cama, banho, atendimento médico e odontológico, tv, dentre tantas coisas que oferecemos aqui, e que são básicas, mas que o adolescente em conflito com a lei não possui em casa. Tivemos que suspender a vinda de crianças, pois percebemos que muitas delas passaram a ter o ato infracional como meta para desfrutar do que futuramente lhes seria oferecido em cumprimento de medida socioeducativa. O relato acima reporta à condição socialmente vulnerável em que se encontram muitas crianças e adolescentes no Brasil, situação essa que permanentemente os negligencia de seus direitos e garantias fundamentais (BRASIL, 1990, tit. 1 e 2). Percebe-se, no Brasil, uma busca pelo aperfeiçoamento da democracia, quando instituições responsáveis pela formulação e implementação de políticas sociais estão envolvidas com as causas dos marginalizados. Houve, com o passar dos anos, muitas mudanças, como

maior transparência das decisões governamentais, maior liberdade de imprensa, maior liberdade de circulação de ideias e de associação, maior interesse dos cidadãos em questões públicas que se dizem diretamente respeito, como consumo e meio ambiente, maior atuação de órgãos de vigilância das ações governamentais, como o Ministério Público e ouvidorias. (ADORNO, 2002b, p. 87)

Apesar disso, no Brasil, a desigualdade social permanece a mesma há quatro décadas (ADORNO, 2002b, p.87).

No Brasil, a violência ocasionada por adolescentes está atrelada a uma violência anterior sofrida por eles, quando não lhes são garantidos direitos fundamentais. Se ao Estado12 cabe o poder de produção e garantia de direitos aos membros de sua sociedade, no Brasil tem sido ele mesmo o produtor de negligência desses direitos. Foucault (1966 apud ADORNO, 2000a, p. 277) aponta que uma das incumbências do Estado é “proteger populações e o que há de propriedade comum, isto é, a vida”. No entanto, Herbert (1999 apud ADORNO, 2002a, p. 279) aponta para o Estado que perde sua soberania de proteção e de garantia de direitos, quando diante dos processos de consumo e produção não consegue “evitar a potência abusiva dos mais fortes sobre os mais fracos”. Nesse cenário, o crime organizado, no Brasil, tornou-se um concorrente do Estado na “garantia de direitos de marginalizados” e também um caminho para que o sujeito da classe marginalizada tenha condições de consumo, para que se sinta parte de seus grupos sociais, cuja forma de existência é estabelecida pelo consumo (COSTA,

12 Quando cito a palavra “Estado”, refiro-me às autoridades políticas, eleitas pelo povo, dentre outras coisas, para

2008). Muitos dos direitos dos marginalizados não garantidos pelo Estado acabam sendo atenuados por um “poder paralelo” não reconhecido e criminalizado pelo “Estado soberano”. No entanto, este, o Estado, é incapaz de impedir os motivos pelos quais fizeram com que tal “poder paralelo” viesse à existência. O crime, para muitos adolescentes em conflito com a lei, tornou-se uma forma para (SUB)EXISTÊNCIA.

De forma genérica, a visão a respeito da Fundação CASA está ligada à visão que se possui do próprio adolescente. A Fundação CASA é uma “cadeia” para muitos, porque o adolescente em conflito com a lei é um “bandido”. Portanto, não cabe pensar a instituição como promotora de educação, porque não cabe pensar o adolescente como um indivíduo negligenciado em seus direitos. Não se reconhece que o adolescente em conflito com a lei é também portador de direitos sociais, em geral subtraídos de sua experiência desde muito cedo. As medidas socioeducativas não são penas ou punições, pois, segundo a lei, os menores de 18 anos são inimputáveis (BRASIL, 1990, art. 104). Para muitos adolescentes em conflito com a lei, somente quando institucionalizados na Fundação CASA ocorre a garantia paliativa, tardia e insuficiente de seus direitos (BRASIL, 1990, tit. 1 e 2). No entanto, a não intervenção da instituição, para muitos, acaba por se tornar uma ação ainda mais perversa. São muitas as pessoas que não suportam pensar o adolescente em conflito com a lei inserido num contexto social vulnerável, pois parece que considerar como frágil o ambiente social equivaleria a desculpá-lo pelo ato infracional cometido. Não é isso que está em pauta. O discurso não é “despenalizar” as consequências da violência provocada pelos adolescentes, mas discutir a violência antes sofrida por ele como fator determinante, ainda que não exclusivo, de seus atos. Se queremos falar sobre aumento da violência e asseguramento da “lei e da ordem”, faz-se necessário não “abdicar da responsabilidade pública e institucional que recomenda sejam respeitados os direitos dos cidadãos” (ADORNO, 2002a, p. 297). Parece-me que, como sociedade, estamos bem dispostos a pensar com dedicação e simplismo no primeiro, mas negamo-nos a sequer considerar o último.

Zaluar (1999 apud ADORNO, 2002b, p.101) aponta que o avanço da violência, grosso

modo, pode ser resumido em três direções: “a) mudanças na sociedade e nos padrões

convencionais de delinquência e violência; b) crise do sistema de justiça criminal; c) desigualdade social e segregação urbana”.

Em referência à última direção, Adorno cita um estudo de Paes de Barros et al. (2000, p. 123), em que se formula a hipótese de que “o Brasil não é um país pobre, mas um país com

muitos pobres” e “que os elevados níveis de pobreza que afligem a sociedade encontram seu principal determinante na estrutura da desigualdade brasileira, uma perversa desigualdade na distribuição da renda e das oportunidades de inclusão econômica e social”.

Uma pesquisa de 1984 citada por Adorno (2002b, p.121) aponta para a disparidade na expectativa de vida, mortalidade infantil, saneamento básico, escolarização, saúde, dentre outros, envolvendo concentração de riqueza. Ainda que tenha havido melhora no “acesso dos segmentos mais pobres ao conforto proporcionado pelo progresso tecnológico”, insistem em permanecer imutáveis “restrições de direitos e de acesso às instituições promotoras do bem- estar e da cidadania”. Os riscos de violência são maiores em contextos periféricos, como também da periferia é oriunda a maioria de adultos e adolescentes com envolvimento com a criminalidade. Portanto, questiona Adorno (2002b, p.127), “é possível falar em respeito aos direitos humanos numa sociedade na qual vigem extremas desigualdades sociais?”. Considera, portanto, Adorno (2002b, p.127) uma violência quando “os direitos sociais fundamentais o direito ao trabalho, à educação, à saúde, ou seja, aqueles direitos que recobrem a dignidade da pessoa humana não estão universalizados”.

Parece-me claro, nas entrevistas com adolescentes da Fundação CASA, que o envolvimento com o ato infracional está diretamente ligado à vulnerabilidade social e também ao desejo perverso – que não é do adolescente, mas do meio social em que está inserido – pelo consumo. Quando funcionária, evidenciei não poucos casos extremos de vulnerabilidade social: de um adolescente que, logo depois de desinternado, infracionou novamente e, estático, aguardou pela chegada da polícia para ser levado de volta. E, quando questionado sobre o ato, respondeu: “Aqui eu pelo menos como todo dia senhora, tenho banho e cama pra dormir...”.

Ou o caso do adolescente que, numa ligação, contava à mãe a respeito dos alimentos diferentes que tinha comido na unidade e aos quais nunca tinha tido acesso antes.

Ou o de vários adolescentes que, ao escreverem cartas para as mães, perguntavam se os irmãos estavam tendo comida para comer e como a mãe estava fazendo para pagar o aluguel do barraco.

Tais situações de vulnerabilidade e não garantia de direitos estão em consonância com muitas falas nas entrevistas:

Vivia numa casa em que o terreno foi invadido, mas que agora foi legalizado, a família passa por muitas dificuldades financeiras e disse que com o dinheiro de roubo, tráfico e receptação ajudava a mãe a comprar comida para a família. “É uma vergonha senhora, mas vou falar a verdade, eu gostava mesmo era da comida”. (Rodrigo, referindo-se ao que mais gostava na escola) “Será que o juiz me deixa mais três meses aqui para eu aprender a ler e escrever?”. (Leandro)

Falou do irmão, que lhe disse para ficar mais tempo na Fundação CASA para poder colocar os dentes que a polícia quebrou. Disse ainda que não irá aprontar mais, porque ama a família e onde estão morando agora; antes moravam em um cômodo com sete pessoas e que esse lugar era emprestado por um homem, mas chovia dentro, perderam móveis e que moravam perto do brejo. Finaliza, dizendo “toda a família está com a vida sossegada e quando chove a gente não tem mais medo de alagamento”. (Marcos)

Rodrigo tem razão, é uma vergonha mesmo que a escola seja o único local em que as crianças tenham alimentação adequada. Mas a vergonha não é dele, é do Estado, que não garante aos seus cidadãos o que lhes é direito básico. Quando internados, os adolescentes possuem muito do que até então lhes era negligenciado, mas que só através do ato infracional foi possível usufruir13.

O ato infracional, nesse e em muitos outros casos, é um enfrentamento à pobreza extrema que marca a vida de muitos adolescentes. Ele tristemente, segundo Sposati (1989, p.1-20) “tornou-se um fenômeno banal no cenário brasileiro” e “o rosto da miséria e as estratégias de sobrevivência dos segmentos pobres majoritários em nosso Brasil, é a barbárie”. E se o roubo e o tráfico se tornaram uma forma peculiar de suprimento social, tornaram-se também a consolidação do “não direito” àqueles que, por falta de alternativa, constituem-se fora dos padrões estatais (e legais) de garantia de direitos, pois consolidam a marginalidade, a diferença, a desigualdade. Para Sposati (1989, p. 15), a carência é a validação da ausência de vários espaços a serem preenchidos, e a desigualdade também é ausência. E, se tais situações são perceptíveis no adolescente com conflito com a lei, há de se concluir que nele há a ausência do Estado para garantir-lhe seus direitos.

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