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A partir das leituras que empreendemos, é possível entrever os pontos em que se aproximam e distanciam as obras de Murilo Mendes e Francis Ponge. Convém, no entanto, que o

Poliedro e o Le parti pris des choses sejam literalmente colocados lado a lado e lidos num

movimento que os coloca em maior contraste. O objetivo final é o de observar como algumas das especificidades poéticas de Murilo Mendes e Francis Ponge se configuram em relação ao objeto, sujeito e texto-coisa. Para tanto, selecionamos “A lata de lixo” do brasileiro e « Le cageot » do francês:

A LATA DE LIXO

A lata de lixo, outrora sórdido caixote (salvo para os vira-latas) transformou-se hoje num elegante objeto de plástico, em geral azul, perfeita esfera. Embarcaríamos até nessa astronave!

Manuel Bandeira viu certa vez um homem fuçando uma lata de lixo num pátio. Com esse material mínimo escreveu uma poesia muito admirada também num determinado setor das universidades de Roma e de Pisa. Roma! Os palácios vermelhos de Roma! Pisa! A lâmpada de Galileu! As romanas! As pisanas!

Não é fácil ver-se o lixeiro. Trata-se de um personagem kafkeano, quase marciano. Deixa-se a lata do lado de fora, e ele, pisando com os pés de lã, invisível aos olhos mortais, discreto, obediente, esvazia a esfera azul.

Só uma vez tive a ocasião de encontrar um lixeiro, aqui em Roma, nas vésperas do Natal. Bateu à minha porta, subvestido (subnutrido?), sorridente, anunciando: Eu sou o lixeiro.

Respondo logo, também sorridente: Bom dia. Como se chama o senhor? •

Não tolero ignorar os nomes daqueles com quem trato. A função adâmica do poeta move-o a nomear as coisas e as pessoas. Não só atribuir um nome aos que ainda não têm, mas informar-se dos que já o têm. De resto um homem, antes de ser lixeiro, garçom, ou motorista é uma pessoa, quero saber seu nome.

Eu me chamo, e todos os outros me chamam, Murilo. Dum ponto de vista puramente eufônico e visual preferiria chamar-me por exemplo Goya, Velázquez ou Zurbarán.

Malandro e hipócrita sou! Bem vejo que não se trata de um ponto de vista puramente eufônico e visual, trata-se de atenção à hierarquia dos valores: mesmo contrariando Ortega y Gasset, mesmo reconhecendo um certo lado da obra de Murilo, o lado mais realista, não o situo no plano dos três pintores.

Vaidade das vaidades: Tudo é vaidade, até mesmo a de querer mudar o nome para se elevar, até mesmo a de embarcar numa astronave, percorrer o cosmo que um dia próximo ou remoto, não sei, será despejado como lixo; e um mundo novo se levantará sobre latas, máquinas de plástico ou não, sobre as ruínas dos textos, as ruínas das ruínas: o novo céu, a nova terra, previstos e anunciados pelo transformador e reformador de todas as coisas visíveis e invisíveis, o Ser dialético por excelência. (MENDES, 1994, p.1007-1008).

LE CAGEOT

À mi-chemin de la cage au cachot la langue française a cageot, simple caissette à claire-voie vouée au transport de ces fruits qui de la moindre suffocation font à coup sûr une maladie.

Agencé de façon qu’au terme de son usage il puisse être brisé sans effort, il ne sert pas deux fois. Ainsi dure-t-il moins encore que les denrées fondantes ou nuageuses qu’il enferme.

A tous les coins de rues qui aboutissent aux halles, il luit alors de l'éclat sans vanité du bois blanc. Tout neuf encore, et légèrement ahuri d’être dans une pose maladroite à la voirie jeté sans retour, cet objet est en somme des plus sympathiques - sur le sort duquel il convient toutefois de ne s’appesantir

longuement. (PONGE, 1999, p.18).

Na tradução de Adalberto Müller Jr. e Carlos Loria:

O ENGRADADO

A meio caminho de engraçado e degradado a língua portuguesa possui engradado, simples caixote de ripas espaçadas fadado ao transporte dessas frutas que, com a mínima sufocação, adquirem fatalmente uma moléstia.

Armado de maneira que no termo de seu uso possa ser quebrado sem esforço, não serve duas vezes. Desse modo, dura menos ainda que os gêneros fundantes ou nebulosos que encerra.

Assim, em todas as esquinas das ruas que levam aos mercados, reluz com o brilho sem vaidade do pinho branco. Novinho em folha ainda, e um tanto aturdido por se encontrar numa pose desajeitada na via pública jogado fora sem retorno, esse objeto é, em suma dos mais simpáticos, – sobre a sorte do qual, todavia, convém não repisar muito. (PONGE, 2000, p.61).

Os dois poemas tratam de objetos muito cotidianos: a lata de lixo e o engradado. Como se pudessem tomar forma pela evocação, os títulos remetem diretamente a tais objetos aos quais os homens e a linguagem ordinários não dariam atenção. Então, logo de saída, deparamo-nos com um tom de verbete, não fosse a centralização quase lapidar da palavra na página. Vejamos que, entre o poema de Murilo Mendes e o de Francis Ponge o primeiro ponto que os distancia é mesmo a forma. Porque, visualmente, a distenção muriliana e a contenção pongiana são flagrantes. A lata nos é apresentada por meio de cinco blocos poéticos, cujo número de estrofes varia, separados por pequenas bolinhas pretas. Blocos autônomos, mas que compõem um objeto uno de faces variadas. No entanto, a unidade de “A lata de lixo” é tão grande quanto a que tem o « cageot », que vem num bloco só, como se ali tivessem sido podadas todas as suas arestas e restado só o essencial. Temos este objeto em três momentos, cada um correspondendo a um parágrafo que se inicia por uma anafórica letra “a”. Nossa escolha recai sobre esses poemas primeiramente pela aproximação entre os objetos e sua natureza (a lata de lixo e o engradado), em seguida, porque são modelares de grande parte dos textos incluídos no Poliedro e no Le parti

pris des choses. É claro que neste último predomina a brevidade, enquanto em Murilo Mendes

teremos mais poemas longos, incluindo-se aí a vertigem lírica do “Setor Texto Délfico”. Que assumimos que se trata de poemas em prosa esperamos ter deixado claro no primeiro capítulo – embora seja indispensável apontar novamente durante a leitura o que os caracteriza enquanto tal. Como nada é gratuito nesses autores, a forma dos poemas é adequada ao modo como cada eu- lírico se configura em relação ao objeto e à linguagem. Aliás, é nela que tudo se dá: a esfera em que estão colocados a lata e o engradado é a da linguagem. Também o sujeito depende da linguagem para configurar a si e ao objeto.

Depreendemos duas posturas literárias diferenciadas em relação à forma do poema em prosa. Se dissemos que Murilo Mendes é muito mais herdeiro do poema-iluminação e Francis Ponge do poema-formal, isso fica expresso tomando somente esses dois poemas como exemplo. No brasileiro, identificamos um movimento mais livre, mais narrativo, e que às vezes aparece sob as vestes da anarquia e da mistura. O que se dá porque o poema é capaz de operar enquanto centro de relações e porque, na esteira do que herdou de Rimbaud, dos simbolistas e dos surrealistas, estabelece aproximações inusitadas, inverte a lógica, enfim, vale-se de toda liberdade possível. Então, quando dizemos que são prosa os textos do Poliedro, esse eu-lírico perde a sua especificidade de operador da linguagem que pode sem nenhum espanto para o leitor

dizer: “O arquiteto ilumina o relâmpago” (MENDES, 1994, p.1037). Ou, ainda, passar da lata de lixo a Manuel Bandeira e a Roma e Pisa com condensação incrível. Apesar disso, existe uma narratividade muito clara nesses poemas, mas, a partir do momento em que o texto pretende se voltar sobre si mesmo, não contando uma história, mas apresentando a coisa, pela visada de um eu, a poesia se institui. Os poemas do Le parti pris des choses, por seu turno, ajustam-se aos objetos e com tal movimento perfazem um caminho de formalidade, de apuro, em que cada vocábulo é minimamente pesado e calculado, não que não haja cálculo e cuidado com a linguagem em Murilo Mendes. O que ocorre, é que o pendor clássico de Francis Ponge, vindo justamente do seu parnasianismo-realismo, faz com que os poemas se voltem muito mais para a metonímia. Então, a força está não numa metáfora de aproximações chocantes, estelares, estranhas, mas em metáforas cotidianas, miméticas, clássicas. A narratividade nesses poemas quase nunca aparece, e se o faz é de modo diluído na descrição e na definição. Essas diferenças são captadas tão logo o leitor passa em revista as palavras iniciais de cada poema.

Indo diretamente aos poemas, o primeiro vislumbre que temos do « cageot » é na língua francesa: ele está situado a meio caminho de « cage » e « cachot ». E quando dizemos que está na língua francesa é porque a aproximação do modo como é feita resta intraduzível em outras línguas (apesar da cuidadosa e recriadora tradução para o português). É este “som significativo” da palavra, que o poeta opera porque é a sua linguagem: « Dire que ce n’est pas tellement l’objet

(il ne doit pas nécessairement être présent) que l’idée de l’objet, y compris le mot qui le désigne. Il s’agit de l’objet comme notion. Il s’agit de l’objet dans la langue française, dans l’esprit

français (vraiment article de dictionnaire français). »87 (PONGE, 1999, p.531). Como diria

Michel Collot (1991, p.146): « Que le nom puisse être par Ponge un point de départ privilégié

pour approcher l’objet, en témoignent suffisamment les titres des poêmes du Parti pris des

choses, ou de Pièces, qui se réduisent le plus souvent au seul énoncé de ce nom. »88 Indispensável atentar para a beleza do jogo de palavras que temos aqui: que se faz por meio de cortes e permutas entre a coisa e as palavras. A gaiola (cage) está no engradado (cageot), mas este, que

87 “Dizer que não é tanto o objeto (ele não deve necessariamente estar presente), mas a ideia do objeto, incluída aí a

palavra que o designa. Trata-se do objeto como noção. Trata-se do objeto na língua francesa, no espírito francês (realmente artigo de dicionário francês).” (PONGE, 1997, p.46).

88 “Que o nome possa ser para Ponge um ponto de partida privilegiado para aproximar o objeto, disso são

testemunhas os títulos dos poemas do Parti pris des choses, ou de Pièces, que se reduzem ao máximo a um único enunciado desse nome.” (COLLOT, 1991, p.146).

ainda não é masmorra (cachot), está entre os dois como se o seu som ali deslizasse: « cage au

cachot ». Então, a língua francesa (vejamos como é ela a possuidora) encontra uma palavra que

designe a coisa, um som cuja imagem corresponde ao objeto. Se o engradado tem por função transportar, essa palavra-valise carrega, então, as outras duas. Humor, imaginação e criação com base no uso da palavra concorrem aqui. O « cageot » é criado como uma espécie de solução, porque, embora esteja a meio-caminho, ele vem depois das duas outras palavras no poema de Ponge, como se a noção da coisa se criasse no processo da língua francesa. Mas, para isso, ela precisa não existir: « Et voilè une autre façon de tenter la chose : la considérer comme non

nommée, non nommable, et la décrire ex nihilo si bien qu’on la reconnaise. Mais qu’on la reconaisse seulement à la fin : que son nom soit un peu comme le dernier mot du texte et n’apparaisse qu’alors. »89 (PONGE, 1999, p.532 e p.675). É, portanto, esta coisa, « Le cageot », que podemos colocar entre as duas outras, pois cada palavra

[...] c’est une colonne du dictionnaire, c’est une chose qui a une extension,

même dans l’espace, dans le dictionnaire, mais c’est aussi une chose qui a une histoire, qui a changé de sens, qui a une, deux, quatre, cinc, six significations. Qui est une chose épaise, contradictoire souvent, avec une beauté du point de vue phonétique, cette beauté voyelles, des syllabes, des diphtongues, cette musique... Somme toute, ce sont des sons, chaque syllabe est un son. Les mots c’est bizarrement concret, parce que, si vouz pensez... en même temps ils ont, mettons, deux dimensions, pour l’œil et pour l’oreille, et peut-être la troisième

c’est quelque chose comme leur signification.90

89 “E aqui está uma outra maneira de tentar a coisa: considerá-la como não nomeada, não nomeável, e descrevê-la ex

nihilo, de tal modo que seja reconhecida. Mas reconhecida somente no fim: que seu nome seja um pouco a última palavra do texto.” (PONGE, 1997, p.48).

90 “[...] é uma coluna do dicionário, é uma coisa que tem uma extensão, mesmo no espaço, no dicionário, mas é

também uma coisa que tem uma história, que mudou de sentido, que tem uma duas, três, quatro, cinco, seis significações. E uma coisa espessa, contraditória frequentemente, com uma beleza do ponto de vista fonético, essa beleza das vogais, das sílabas dos ditongos, essa música... Em resumo, são sons, as sílabas são antes de tudo sons, cada sílaba é um som. As palavras, temos aí algo de estranhamente concreto porque, se você pensarem bem... ao mesmo tempo elas têm, digamos, duas dimensões, para o olho e para a orelha, e talvez a terceira seja algo assim como a sua significação.” (PONGE, 1997, p.137).

Segundo Jean-Marie Gleize (1988, p.86), « [r]éalité réelle (si l’on ose dire) et réalité de

langue se font face, jouent l’une dans l’autre, l’une de l’autre, de leur non coïncidence qui est précisément la ressource infinie de la littérature selon Francis Ponge. »91 Assim, a estrutura do texto obedece, concretiza, a forma do engradado: cada um dos parágrafos corresponde às ripas que constituem o objeto. Vejamos a simetria do conjunto: são partes regulares, começam as três pela letra “a”. Aliás, o texto parece se fundamentar numa repetição sistemática das vogais que compõem a palavra « cageot »: [a] e [o]. Essa passagem da palavra que estabelece contiguidades e que, de certo modo, o poema estabelece (cage Æ cachot Æ cageot) tem, para Leda Tenório da Motta (1995, p.113, grifo do autor), relação com

[a] base etimológica, o chão lexical em que se finca o tronco das palavras, [que] expõe para Ponge o nódulo do ser. O princípio é o étimo. Veja-se o poema “Le cageot”: “A meio caminho entre ‘cage’ (gaiola) e ‘cachot’ (cárcere) a língua francesa tem ‘cageot’ (caixote), simples caixa engradada devotada ao transporte desses frutos que o menor sufocamento pode fazer adoecer.” A percepção do objeto é conhecimento, aqui subentendido de transformação a transformação, do nominativo que ecoa. O cavus latino (cavidade) é proferição e engendramento. A história da palavra suporta a diversidade do mundo.

Para Murilo Mendes, a relação entre palavra e coisa, também está em causa, mas de modo bem diferente. Porque, em Ponge, se a colocação do objeto num lugar, a sua apreensão, quer ser precisa e afunilada em seu recorte (o dicionário, o mundo), a lata de lixo é apresentada primeiramente não só naquilo que lhe caracteriza, mas em seu uso e estado no mundo exterior. A descrição dos aspectos físicos do objeto é minimizada em detrimento da descrição daquilo que fazemos dele. Na esteira disso, as possibilidades para a qual o poema aponta são multifacetadas, poliédricas. Se o poema de Ponge quer estar na coisa ainda que fale do homem; o de Murilo pode tomar essa coisa a partir dos mais diversos prismas e estados e estabelecendo outros diálogos. Então, em Murilo Mendes, a descrição só se sustenta na medida em que é ponto de partida para a observação das relações que com ela o eu-lírico pode estabelecer. Nesse sentido, os poemas do

Poliedro apresentam frequentemente uma espécie de movimentação: a lata de lixo já foi “outrora

sórdido caixote”, não para os vira-latas, “transformou-se hoje” em elegante objeto. É como se a

91 Segundo Jean-Marie Gleize (1988, p.86), “[r]ealidade real (se ousamos dizer) e realidade da língua se enfrentam,

jogam uma na outra, uma da outra, de sua não coincidência que é precisamente a fonte infinita da literatura segundo Francis Ponge.”

apreensão muriliana se desse a partir da transformação do objeto na nossa sociedade com base no uso que ela faz dele. Como observamos com “A caneta”, há uma contraposição que se estabelece de início: o sórdido caixote versus o “elegante objeto de plástico, em geral azul, perfeita esfera”. E é a liberdade, a quase anarquia do poema poliédrico, que permite alinhar lata de lixo e astronave. Vejamos que o engradado é objeto voltado ao transporte de frutas, cuja sensibilidade fala ao mesmo tempo da capacidade protetora do objeto, sua força, e sua delicadeza – a imagem é cotidiana, banal até. A lata de lixo, no entanto, é-nos apresentada num crescendo que parte do cotidiano (sórdido caixote) e chega às raias do tecnológico. Isso tudo, valendo-se de uma imagem que é quase explosiva e muito atual, pois não é difícil imaginar a perfeita esfera do lixo como astronave do modo como o poema nos coloca. Em Murilo Mendes, a modernidade forçosamente entra em contato com o objeto de uma forma que em Francis Ponge seria impossível. Enquanto o francês quer proceder a uma higienização do léxico, o brasileiro se vale de toda a linguagem cunhada pela própria modernidade para construir seus objetos. Não é estranho, portanto, termos como plástico, esfera, astronave, aparecerem ligados àquilo que era outrora sórdido caixote.

De um modo geral, pode-se dizer que o poema pongiano procura ao máximo ir às coisas mesmas e nelas permanecer. Ao contrário do muriliano, que sempre vai buscar as coisas nas suas conexões mais estranhas e diversas. Sem muita mediação, daí o choque e a estranheza, passamos da lata, para a astronave, por Manuel Bandeira até as pisanas. Todavia, o brilho de iluminação surge exatamente quando se reconhece a conexão entre essas múltiplas viradas do objeto dadas sem mediação. O tecido linguístico surge partindo da coisa para o modo como o eu-lírico a observa no mundo dos homens. Vejamos como isso ocorre com o segundo bloco do poema em que aparece a figura de Manuel Bandeira. Em primeiro lugar, atente-se para uma certa ficcionalização do poeta, marcada pelo tom de anedota, em que ele vê “um homem fuçando uma lata de lixo num pátio” e a partir disso escreve uma poesia muito admirada. Esse anedótico, que é muito despretensioso, embute-se de uma reflexão acerca da construção poética e do modo como surge um poema, bem como do lugar e da função dessa poesia. Ora, ao qualificar como “material mínimo” a visão de Manuel Bandeira coloca-nos frente a um ato poético que é duplo: que toma o pouco e tansforma em poesia a partir da condensação da linguagem; e, sobretudo, que atenta ao que é mínimo, cotidiano, em seu aspecto de crítica social. Mas, ao escolher “material mínimo”, Murilo Mendes critica de saída certa condição humana que nos aproxima dos vira-latas do primeiro bloco de “A lata de lixo”. O poema de Manuel Bandeira

fundamenta outra face poliédrica do objeto com a qual comunga o poema de Murilo Mendes. Então, é lícito dizer que a coisa muriliana está também na literatura. Nesse sentido, ela adiquire tanta concretude quanto a palavra pongiana. Vejamos o poema de Manuel Bandeira:

O BICHO

Vi ontem um bicho Na imundície do pátio

Catando comida entre os detritos. Quando achava alguma coisa, Não examinava nem cheirava: Engolia com voracidade. O bicho não era um cão, Não era um gato, Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.

Rio, 27 de dezembro de 1947. (BANDEIRA, 1993, p.201-202).

O eu-lírico de “A lata de lixo” muriliana lê este poema de Manuel Bandeira e estabelece a permuta entre bicho e homem à qual o poema acena. Reforça-se a aproximação entre o bicho bandeiriano e o homem muriliano, sob as vestes do eu, que embarcaria na astronave. Sai reforçado ainda o sujeito lírico muriliano enquanto leitor e crítico de poesia. Posicionamentos que se dão sempre sobre as bases de uma ironia impiedosa aliada a um humor cortande. Como se dissesse: embarcaremos nessa astronave tanto porque avançamos cientificamente quanto porque nos tornamos “material mínimo”. Aliás, embarcaremos nessa astronave (seremos bicho) porque nos tornamos “material mínimo”. Interessante notar como funciona a passagem de um tema a outro sem mediação: a poesia de Bandeira é muito admirada “num determinado setor das universidades de Roma e de Pisa.” Eis uma relação que novamente reforça o contato entre o conhecimento e o homem-bicho – vejamos como a lata de lixo, plena de tensões, mostra o caráter duplo do homem e de suas relações. Daí às cidades de Roma e Pisa, em que emerge um eu-lírico marcado pelo biográfico. A evocação das cidades se dá numa estrutura poética paralela:

Roma!

Os palácios vermelhos de Roma! Pisa!

A lâmpada de Galileu! As romanas!

As pisanas!

O processo é quase memorialístico, como se a referência pegasse este eu-lírico em meio à lembrança do poema de Manuel Bandeira. Pois, trata-se de aspectos muito particulares da arquitetura das duas cidades. Murilo Mendes (1994, p.48) diz num questionário que vive em Roma “[p]orque Roma tem belas mulheres, praças estupendas; este ocre das suas casas me serve