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3 OS USOS E APROPRIAÇÕES NOS NOVOS ESPAÇOS DE CONSUMO

3.3 AUDIÊNCIA COMUNICANTE NOS ESPAÇOS DE CONVERGÊNCIA

Através da esfera online, os sujeitos transitam por lugares antes indisponíveis, nos quais criam perfis, acessam informações, divulgam opiniões e amplificam a presença nos processos de comunicação. Isso é perceptível nas experiências da audiência que, “a um só tempo, acessa um portal de notícias, cria uma mensagem em um fórum de discussão, envia um e-mail para um amigo e lê uma mensagem postada em um site de relacionamento” (BRIGNOL, COGO, 2011, p. 88).

Esse cenário se torna perceptível nas relações observadas em nosso campo de trabalho. Por vezes, o consumo de materiais midiáticos no Mundo T-Girl fomentava discussões a respeito dos posicionamentos formulados pela mídia, resultando em sentidos contrários aos apresentados inicialmente pela esfera da emissão. As apropriações da matéria intitulada “Travestis e tráfico agravam falta de segurança”, veiculada no jornal paulista Correio Popular42, são ilustrativas dessa problematização. No texto, o meio de comunicação naturaliza a relação entre travestis, obscenidade e criminalidade. Por outro lado, no consumo dessas informações, são elaboradas leituras críticas, que divergem do sentido proposto pelo emissor:

42Fonte: <http://correio.rac.com.br/_conteudo/2013/12/capa/campinas_e_rmc/138707-travestis-e-trafico-

Figura 14 - Convergência no Mundo T-Girl

Fonte: Captura realizada pela autora.

Com o uso da tecnologia, a matéria jornalística do Correio Popular é distribuída em diversas plataformas, de modo que o fluxo do produto midiático em outros lugares, como o Facebook, permite a construção de outras leituras, produtoras de um novo conteúdo. Tais processos atravessam o consumo midiático, resgatando a necessidade de reconfiguração dos termos “receptor” e “consumidor” de mídias, especialmente nos estudos empenhados em refletir sobre a recepção e o consumo midiático no contexto das apropriações na internet. Nesse sentido, apesar de Brignol (2012, p. 1) questionar o termo “receptor”, nos apropriamos da problematização cunhada pela autora para pensarmos o Consumo Cultural, uma vez que

várias outras noções podem ser acrescentadas ao que, de um modo mais amplo, caracterizamos como estudos de recepção, como a ideia de consumo cultural, trabalhada por García-Canclini; de frentes

culturais, como concebidas por Jorge Gonzáles; de recepção ativa; além do modelo de multimediações, de Guillermo Orozco (BRIGNOL, 2012, p. 3-4).

Optamos, portanto, em não marcar a distinção entre os termos consumo e recepção, porque, “ao inserirmos este estudo na área do que denominamos, genericamente, de estudo da audiência, queremos dizer que esta área abrange investigações que compartilham a preocupação com a atividade interpretativa dos usuários das tecnologias de comunicação e informação” (RONSINI, 2007, p. 77-78), da mesma forma como ocorre nos estudos de recepção43.

De todo modo, o termo “receptor”, assim como “consumidor” midiático, mobiliza discussões desde as “primeiras formulações ligadas a essa matriz teórica” (BRIGNOL, 2012, p. 2), visto que o modelo aristotélico de comunicação, que fixa as instâncias emissor- mensagem-receptor para explicitar o processo comunicacional, exclui diversos elementos que compõem essa relação. No que tange à recepção, o equívoco está em limitar a produção à emissão, já que sentidos são produzidos, também, na esfera ocupada pela audiência.

Há mais de trinta anos, o termo “receptor” é considerado defasado. A partir dos âmbitos comunicacionais que afloram na internet, as críticas a essa denominação se revigoram, pois é difícil considerar o sujeito como um “receptor quando ficam evidentes os seus processos permanentes de experimentação e a sua produção constante de conteúdos e de significações na web” (BRIGNOL, COGO, 2011, p. 89). Bonin (2015, p. 27) compartilha esse ponto de vista, ao afirmar que um desafio em relação ao “estatuto do chamado receptor” se apresenta às pesquisas contemporâneas de recepção.

Na tentativa de resolver tal impasse, autores se empenham na experimentação de novas nomeações para aqueles que consomem produtos midiáticos por meio das tecnologias digitais da comunicação e da internet. Em levantamento realizado por Brignol e Cogo (2011, p. 89) a respeito de investigações que testaram designações possíveis, as autoras indicam que Brignol (2010) se apropria do termo leitor-produtor, ao passo que Primo (2007) prefere interagente. Na perspectiva de Orozco (2010), a agência dos sujeitos através das telas digitais seria uma característica tão importante que estes ganhariam a definição de prosumidores, conforme denominou Jenkins (2008).

Os prosumidores representam os receptores e os consumidores midiáticos que exploram a dimensão participativa proporcionada pelas mídias digitais. Suas atividades implicam

43Para diferenciar brevemente recepção e consumo, podemos considerar que os estudos de recepção focam na “apropriação de mídias, programas ou gêneros específicos” (RONSINI, 2007, p. 78). Nos estudos do consumo midiático, busca-se o entendimento do sentido geral das tecnologias da comunicação na experiência cotidiana do receptor (ibidem, 2007; 2012).

características de criação, produção e emissão, que passam a acontecer desde a recepção. Ser prosumidor é ser audiência mais crítica e criativa, a ponto de gerar alterações nos papéis dos receptores e emissores. Ao se vincularem às novas tecnologias da comunicação, os prosumidores se relacionam com os produtos ofertados pela mídia de uma forma capaz de caracterizá-los como produtores culturais (MANTECÓN, 2010, p. 38).

Posteriormente, Orozco (2011, p. 393) altera as suas concepções, caracterizando como usuária a audiência que consume produtos midiáticos e produz informação a partir deles, através do cenário convergente. Denominar os sujeitos de usuários significa compreendê-los como agentes reflexivos, do modo como pensou Giddens (1993). Segundo a concepção giddensiana, apesar de haver um poder disciplinador que incita a conformidade com a norma dominante, existem focos de resistência advindos das práticas mais autônomas e reflexivas (GIDDENS, 1993, p. 45).

Diversos fatores contribuíram para a consolidação da reflexividade como a principal característica da sociedade atual, como a maior mobilidade geográfica e a facilidade de acesso a diversos meios de comunicação, que compartilham informações antes inacessíveis. Essas mudanças romperam com os direcionamentos do passado, pois fomentaram questionamentos quanto à tradição, tornando os sujeitos mais críticos. Entretanto, apesar da nomeação usuário conseguir marcar e diferenciar os lugares relativos à produção, ao consumo e aos usos, essa é uma categoria que carrega consigo limites conceituais (BRIGNOL, COGO, 2011, p. 89).

Atualizando suas proposições, Orozco (2012, p. 42) faz referência ao termo comunicante para designar o sujeito que desempenha ações participativas de comunicação mediadas por telas. Para definir o que seriam as audiências comunicantes, o autor discorre sobre dois pontos principais. O primeiro diz respeito aos suportes midiáticos com os quais a audiência comunicante está em contato – eles são tecnológicos, analógicos e/ou digitais. O segundo ponto se refere ao fato de que essa audiência pode ser formada por pessoas ativas, hiperativas, interativas ou cambiantes que, frente aos meios, podem ser críticas, ou desempenhar um papel mais passivo e conformista. Ou seja, o que diferencia as audiências comunicantes das definições anteriores diz respeito ao fato de que podem ser definidas tanto pela emissão quanto pela recepção, pela crítica reflexiva ou pelo conformismo.

Mais especificamente, o autor propõe que:

Ser audiencia significaba y significa hoy todavía ser un "comunicante" mediado por tecnología –específicamente por pantallas– en los intercambios sociales, sean éstas grandes pantallas de difusión masiva o no, sean analógicas o digitales, admitan una

interacción solo simbólica o una material también (OROZCO, 2012, p. 42).

Tais considerações definem as audiências comunicantes como todas as pessoas que têm alguma relação com as telas, sejam elas massivas ou segmentadas. Nesse sentido, não importa que a audiência esteja mais empoderada, que inaugure novas formas de se relacionar, de comunicar e de consumir os produtos midiáticos: não deixam de ser audiência. Televidentes clássicos ou sujeitos sociais ativos no âmbito online, todos são audiência.

Entre esses e outros conceitos que caracterizam os sujeitos cada vez mais ativos no processo de relação com as mídias, elegemos a perspectiva adotada por Orozco (2012), de audiência comunicante, para definir o consumidor de mídias no cenário contemporâneo. Tal opção não é aleatória, mas parte do princípio de que o trânsito de audiência definida pela atividade recepção e consumo, para audiência que recebe e compartilha no ambiente online os produtos midiáticos consumidos, transformando-os em outros materiais textuais ou audiovisuais, não é total (ibidem, 2010, p. 17). Nem todos desenvolvem formas mais criativas, autônomas e críticas de se relacionar com os meios.

Como destacam Brignol e Cogo (2011, p. 86), não podemos falar em uma, mas em “várias internets com características diferentes, que combinam apropriações que se aproximam da lógica midiática, às vezes muito próxima às mídias tradicionais, e outras que se relacionam a um meio de comunicação interpessoal, pelo seu caráter internacional”. A audiência caracterizada pela atividade pode atuar, também, como espectadora em outros contextos.

Apesar da globalização e da mercantilização terem facilitado o acesso a certos produtos e tecnologias, persistem profundas desigualdades de condições sociais e econômicas entre as sociedades, de modo que nem todos conseguem ter acesso às mídias no ambiente digital. Dentre as pessoas que têm acesso, há diferenças culturais que geram diferentes práticas e agilidades no âmbito online.

Para ilustrar, Martín-Barbero (2003, p. 66) ressalta que as mudanças mais visíveis são percebidas no contexto dos jovens urbanos, sugerindo uma diferença geracional nas formas de apropriação da internet. O autor denomina a facilidade e a familiaridade dos jovens com as ferramentas tecnológicas de “empatia cognitiva”, capaz de desencadear uma “cumplicidade expressiva” com seus produtos, seus formatos, “suas sonoridades, fragmentações e velocidades, nos quais eles encontram seu idioma e seu ritmo” (ibidem, p. 67).

Em sentido consonante, com base em estudos etnográficos realizados na Coréia, na China, na Finlândia e nos Estados Unidos, Canclini (2008, p. 52-53) destaca as mudanças nos hábitos culturais e nas novas maneiras de socialização da juventude, incitados pelas inovações

tecnológicas. Por fim, Mantecón (2010, p. 39) afirma que a geração nascida no contexto da ascensão da internet, depois dos anos 1988, é a favorecida pelas possibilidades tecnológicas e comunicacionais da esfera online.

Para Lopes e Orozco (2013, p. 61), o movimento que possibilita à audiência se tornar produtora de conteúdos é emergente, pois não se generalizou. As razões citadas pelos autores são várias, dentre elas, destaca-se o fato de que a oferta de possibilidades de participação por parte das emissoras, através da esfera online, não conduz, por si só, a mudanças nas maneiras de consumir conteúdos midiáticos.

Além dessas questões, Fragoso (apud BRIGNOL, COGO, 2011, p. 90) pontua que as expectativas da consagração de uma comunicação mais horizontal não se confirmaram, uma vez que a tendência na internet é de que a audiência atribua mais credibilidade e consuma as páginas online de veículos de comunicação que existem “fora da rede”. Isso leva à constatação de que se mantém uma centralização na estrutura da internet, semelhante àquela encontrada anteriormente. Portanto, ao refletirmos a respeito das atividades dos sujeitos a partir da digitalização dos meios, não podemos simplificar o processo e considerar que ele ocorre sem contradições, sem conflitos e sem disputa de poderes (BONIN, 2015, p. 27).

Tais constatações nos levam ao entendimento de que a proatividade em relação à participação da audiência, enquanto somos produtores de novos conteúdos a partir de narrativas originalmente emitidas pelos grandes meios, com o auxílio dos novos dispositivos comunicacionais, ainda está em construção. A maior parte das relações entre mídia e seus consumidores permanece sem grandes alterações.

De todo modo, é válido ressaltar que, ao mesmo tempo em que percebemos a manutenção de certo domínio por parte dos grandes veículos em relação à emissão de informação na internet, bem como formas de consumo e recepção semelhantes àquelas desempenhadas antes da ascensão das mídias na esfera digital, multiplicam-se as experimentações da audiência, em “sites pessoais, weblogs e sites com temáticas específicas da web, fazendo vislumbrar espaços de experimentação comunicativa por aqueles que dispõem de acesso à internet e a oportunidade de criação e publicação de conteúdo e geração de intercâmbios e sociabilidades” (BRIGNOL, COGO, 2011, p. 90).

Ademais, para existir no mundo contemporâneo, comunicar-se através das telas é imprescindível. Conforme os apontamentos de Winocur (apud OROZCO, 2010, p. 24), excluir- se dessa forma de comunicação é o mesmo que se excluir da cultura contemporânea, porque a relação com as telas resulta, atualmente, na produção de si. As telas não são apenas uma

ferramenta para se buscar informação ou entretenimento, mas uma “condición de la cotidianidad y del intercambio social” (OROZCO, 2010, p. 24).

Posto isso, entendemos a importância em se identificar as dinâmicas de participação da audiência das mídias, mas também é necessário que encontremos formas de otimizar essa participação, que pode aumentar na relação com as telas.

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