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Aufkläerung: racionalidade técnica instrumental e emancipatória

CAPÍTULO I A RACIONALIDADE TÉCNICA DO CAPITALISMO

1.2 Aufkläerung: racionalidade técnica instrumental e emancipatória

Contudo, a racionalidade técnica e instrumental não existiu desde sempre, mas se remete exatamente à fase capitalista da história do ser humano, tendo um início e um processo de desenvolvimento que se entrelaça com a Razão filosófica – como fica explícito na citação acima –, pois àquela racionalidade corresponde, no campo filosófico, o Aufklãerung alemão, que foi traduzido para o português por Iluminismo ou Esclarecimento. Isso pode ser observado quando nos debruçamos sobre um texto clássico de Kant, escrito no século XVIII, intitulado “O que é Esclarecimento”. Neste texto, Kant delineia os parâmetros esperados para o homem dessa nova sociedade, diz ele:

Esclarecimento é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela na se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento. (Kant, 1974, p. 100).

Há uma intenção clara, em Kant, de colocar o poder decisório da vida dos seres humanos nas mãos de cada um deles. Decidir sobre si mesmo, sem a intervenção de outrem, é o ato do ser humano esclarecido que, com essa atitude, livra-se de seu estado de menoridade, de servidão. Além disso, o Esclarecimento deve livrar esse ser humano de todos os seus medos, de todas as suas superstições e mitos. A Razão e a Ciência devem juntas emancipar o ser humano de seus guias fora dele mesmo. Toda a coação deve ser subjugada, seja ela sobrenatural, natural, ou social, há de se dissipar sob o poder dado ao ser humano esclarecido pela Ciência. Existe a clara possibilidade de identificarmos os objetivos do Esclarecimento aos da educação formal, compreendida em seu currículo contemporâneo por meio de suas várias disciplinas científicas.

O Esclarecimento fornece ao homem uma nova forma de se relacionar com a natureza, qual seja: sem temor. A ignorância e o medo dos fenômenos naturais, presentes nos homens e nas mulheres da Idade Média, devem ser banidos mediante o conhecimento científico e esclarecedor da verdade do mundo. Os seres humanos se fazem maiores ao seguirem os preceitos colocados pela Razão e se emanciparem a quaisquer agremiações que viessem a tentar torná-los submissos a disposições fora deles mesmos. Nestes termos, o homem do Esclarecimento, segundo o texto de Kant, não se submeteria a classes sociais e a nenhuma forma de organização que o fizesse dependente de outrem que não ele mesmo. Este seria um ser disposto a pensar

livremente seus próprios pensamentos e assumiria seus atos unicamente como seus. O Esclarecimento, portanto, traz no seu bojo idéias revolucionárias que o transformam num tipo específico de Razão: uma Razão emancipadora do homem, libertadora deste de todo o resquício supersticioso da Idade Média e de todo o medo que a ignorância pode gerar, mas vai além: o Esclarecimento quer libertar o ser humano das relações sociais que o oprimem e o colocam num estado de servidão, por isso é revolucionário. Tal qual o Esclarecimento, a educação formal acredita que é mediante o conhecimento propiciado em seus âmbitos de irradiação que o ser humano pode se tornar sujeito de seus atos, isto é, de sua vida.

Não obstante, na leitura de pensadores como Adorno e Horkheimer (1999, 2006), essa Razão que se constituiu e se convencionou chamar Esclarecimento ou Iluminismo, e que foi impulsionada pela burguesia na era moderna, sempre carregou consigo duas dimensões internas a ela mesma, demonstrando com isso uma dicotomia e uma verdadeira tensão interna que a coloca em movimento: uma emancipatória e outra instrumental. Por meio da primeira, o ser humano poderia fazer uso da sua capacidade de raciocínio e não aceitar imediatamente o que lhe é apresentado impositiva e coercitivamente pela sociedade, ou qualquer outro externo a si mesmo, como verdade. Desse modo, refletir sobre uma situação, ou um objeto, afasta a situação social produtora do ato reflexo que faz com que o indivíduo apenas aceite e se adapte a tal fato ou situação. Com essa dimensão da Razão seria possível argumentar diante de uma situação e mediá-la, ao invés da pura e simples aceitação cega e irrefletida.

No uso desse âmbito da Razão, isto é, o emancipatório, o homem e a mulher, em sua relação com o mundo natural e social, alcançariam a maioridade e se tornariam capazes de progredir como seres humanos. Estes se constituiriam capazes de se levantar contra os grilhões que lhes prendiam a medos e superstições trazidas pela ignorância e, enfim, seriam competentes o bastante para alterar a ordem social injusta, irracional e cerceadora da liberdade – isto é, libertar-se-iam da ordem herdada da Idade Média –, para poder caminhar em direção ao que, para Marx, seria a fase histórica da humanidade, visto que, para esse autor, esta última ainda se encontra em sua fase pré- histórica de desenvolvimento face o seu modo de produzir os objetos materiais e imateriais necessários a ela – e que condiciona a sua organização social – até a história recente, não ter ainda se voltado diretamente para a resolução das carências dos seres humanos, mas sim para coisas não humanas que acabam por dominá-los. Noutras palavras, para Marx, a fase emancipatória da Razão Iluminista – a história – só seria

alcançada quando o homem se livrasse de organizações sociais mediadas pelo fetiche – a pré-história. (Cf. Marx, Apud Fausto, 1983, pp. 27-28)

Contudo, Kant (Cf. 1974, pp. 100-102), nesse mesmo texto, reconhecendo que ser menor é muito mais cômodo; aceitando a preguiça, a covardia e outros elementos da menoridade como mais fáceis de serem executados pelos seres humanos, faz referência ao longo e árduo processo que os homens deverão empreender se quiserem chegar à maioridade moral, ética, social e se tornarem verdadeiros seres humanos. Porém, quando, por meio do Esclarecimento, fosse alcançado aquele estágio da ontogênese, seria alcançado também um novo estágio da organização social humana:

O Esclarecimento o faz maior de idade, cidadão do mundo. Rompe as barreiras estreitas e tacanhas dos feudos ou das nações. Faz com que o alemão se uma ao inglês, ao francês, aos povos mais avançados historicamente. A Razão une os cidadãos que querem transformar a ordem vigente. Fazer uso público da razão não significa, pois, permanecer no campo da especulação: é uma atitude eminentemente prática, política. O sábio deve colocar suas obras a serviço do público. (Pucci, 2007, p. 21)

Uma Razão transformadora, emancipatória, é o veículo que impulsiona o Esclarecimento para além de si mesmo, e das conformações sociais e científicas que o forjaram, com o intuito de fazer dos homens agentes de sua própria humanização. Como já dissemos, esses elementos foram utilizados pela burguesia para sua emancipação da ordem feudal. Todavia, numa época em que todos os elementos e idéias nascem permeados do seu contrário, o Esclarecimento traz em si também um pólo que ao longo da história moderna demonstrará ser o seu contrário: o instrumental. Este, caracterizado pela técnica e pela tecnologia desenvolvidas pela ciência, vai ser fortemente desenvolvido no capitalismo industrial em função do interesse da burguesia por ganho e lucro. Tal interesse alcança sua realização com o uso da ciência para tornar real a possibilidade de multiplicar os bens necessários à vida da população, isto é, mesmo que não seja o interesse direto do sistema, e muito menos o da burguesia, ou de seus gestores, é inegável o salto qualitativo na vida material dos seres humanos, proporcionado pela Razão transformada em produtora de mercadorias.

Não obstante, esta melhora material, indissociável da racionalidade técnica instrumental, ofuscará o elemento emancipatório. Este se enfraquecerá a ponto de sumir da ordem do dia, restando apenas o atrelamento e a dependência (inconsciente) da sociedade capitalista industrial burguesa àquele tipo de racionalidade, causando uma regressão no desenvolvimento do caráter humano encetado pela dimensão

emancipatória da Razão. Noutras palavras, vai se formando um quadro em que o progresso material da sociedade capitalista industrial, erigidos pela técnica – tanto sociedade quanto o próprio progresso –, é colocado em primeiro e único plano. Isso vai fazer com que o setor da Razão preocupado com a emancipação humana seja completamente dissipado, e se constitua num impedimento ao progresso humano, entendido no sentido de uma sociedade que se volte inteiramente para esse ser.

1.3 A hegemonia da ciência matemática a serviço da indústria capitalista e a