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Da aurora das relações assalariadas até a Revolução Industrial – nasce o neurótico

– nasce o neurótico moderno

Como discuti em outra pesquisa (Barros Júnior, 2009), até meados do século XVIII, as famílias atuavam como o centro físico da economia. No campo, produziam a maior parte do que consumiam e, nas cidades, os ofícios eram também praticados na morada familiar. No

custo de fabricação do pão, por exemplo, eram considerados a moradia, a alimentação e o vestuário de todas as pessoas que trabalhavam para o amo, sendo que os salários em dinheiro representavam apenas uma pequena parcela desse custo. A relação existente entre os residentes da casa - amo e trabalhadores - era permeada por uma inseparável combinação de abrigo e subordinação à vontade do amo, e não por um regime de escravidão do salário (Sennett, 2005).

Além disso, Hall (2006) lembra-nos que o status e a posição das pessoas eram dados pela ordem divina e pela tradição secular, estas que preponderavam sobre qualquer sentimento de soberania individual. Riesman (1950/1995) chamou isso de caráter social traditivo- dirigido, ou seja, sujeitos criados naquele contexto eram fundamentalmente constituídos pela tradição e eram voltados para ela. Sobre aquele tipo de ordem social, escreveu o autor que:

...é relativamente imutável, a conformidade do indivíduo tende a refletir sua qualidade de membro de uma certa categoria de idade, clã ou casta; ele aprende a compreender e apreciar padrões que duraram séculos, e que são ligeiramente modificados à medida que as gerações sucedem (p. 75).

A respeito do relacionamento do indivíduo com os outros membros do grupo em sociedades traditivo-dirigidas Riesman (1950/1995) afirma que era um relacionamento funcional bem definido e que, "se [o indivíduo] não for eliminado [do grupo], ele 'faz parte' - não é 'excedente', como os desempregados modernos o são, nem é despendível [sic], como o são os não-qualificados na sociedade moderna" (p. 76) [grifo do autor].

Ainda segundo o autor, para sujeitos assim, as aspirações ou as metas de vida que eram "suas" (individuais), em termos de escolha consciente, moldavam seu destino de forma muito limitada, pois o seu lugar social já estava institucionalmente dado.

Tal relação começa a mudar muito lentamente ao longo dos séculos - a Renascença e a Reforma Protestante tendo sido marcos importantes dessa mudança, que não ocorreu de forma homogênea e simultânea mundo afora, nem mesmo no Ocidente.

O aparecimento de fábricas como L’Anglée, de Diderot, uma das primeiras na França (século XVIII), representa também um importante passo na transformação que estava em curso. Elas estabeleceram, por um lado, a separação da casa do amo, já que a fábrica não oferecia moradia aos trabalhadores, que então passaram a ser recrutados de longe, e, por outro lado, a divisão de tarefas, que passaram a ser executadas por rotinas precisas (Sennett, 2005).

Ao final do século XVIII, os trabalhadores assalariados constituíam a maior parte da população trabalhadora. Com a Revolução Industrial, a fábrica é coroada como fundamento da civilização industrial e como paradigma do espaço laboral e da vivência temporal da atividade produtiva (Blanch, 2003).

Do ponto de vista social mais amplo, emerge o que Riesman (1950/1995) chamou de indivíduo introdirigido, na sua tipologia ideal de sujeitos e sociedades. Para ele, a sociedade passa a se caracterizar por uma:

...crescente mobilidade pessoal, por rápido acúmulo de capital (conjugada com mudanças tecnológicas devastadoras) e por uma expansão quase constante: expansão intensiva na produção de bens e pessoas e extensiva na exploração, colonização e imperialismo (p. 79).

O autor postula que a direção a ser seguida pelos indivíduos passa a depender do que internalizaram dos mais velhos, em particular dos pais, sob a forma de "metas rígidas de vida" – dinheiro, posses, fama, poder, bondade. Como a tradição já não mais definia o lugar social dos sujeitos, a conformidade com a sociedade dependia das escolhas deles – daí a necessidade ideológica de controle social por meio da internalização de "metas" racionais (Riesman, 1950/1995).

Na verdade, a constituição dos sujeitos passa a ser realizada não só em função dessas metas, mas sobretudo em função de proibições e preceitos morais disciplinares rígidos, que culminaram nas neuroses descritas por Freud ao longo de sua obra. O pai da Psicanálise concebeu a noção de neurose como sendo fruto de um conflito interno do sujeito – as exigências pulsionais de satisfação versus aquelas da vida em sociedade, em particular as proibições e repressões12 sexuais – e sendo vivenciada como um retorno das representações pulsionais recalcadas13 na forma de sintomas (fobias, somatizações histéricas, obsessões e rituais, etc.) (Freud, 1929/1981a, 1925/ 1981b).

A questão do conflito estava presente também na fábrica, não só de natureza "interna" nos sujeitos, mas também "externa", na relação entre eles. De fato, na aurora da implantação social do trabalho assalariado como fenômeno de massa, surgiram conflitos de interesse em relação ao tempo laboral: o dono do capital querendo que o operário trabalhasse o mais possível, produzindo mais, e este querendo trabalhar o mínimo, apenas o suficiente para ganhar um salário que desse para a sua subsistência.

Segundo Marx (1867/1980), o valor de venda (valor de troca) das mercadorias produzidas incorpora o valor dos meios de produção (matéria-prima, equipamentos e máquinas) e os da força de trabalho (salário dos trabalhadores) - valor de uso14. Mas, além disso, incorpora um excedente (mais-valia), resultante do que os trabalhadores produzem a mais numa jornada de trabalho, recebendo o mesmo salário fixo, correspondente ao tempo necessário para produzir certa quantidade de mercadorias. Esse “a mais” produzido advém das

12 O uso que faço do termo "repressão" não é o mesmo que o de "recalque" – aquele refere-se a uma ação

externa e consciente de reprimir algo; já este refere-se a um mecanismo inconsciente de "empurrar para o lado", "desalojar" algo (por exemplo, um impulso sexual), em função do incômodo provocado por ele (Hanns, 1996).

13 Hanns (1996) lembra-nos que a concepção freudiana do recalque (Verdrängung) não se refere propriamente

a um "empurrar para o lado", "desalojar" da pulsão no seu estado bruto, mas das suas representações ou ideias (Vorsterllungen).

14 Valor determinado pela quantidade de trabalho socialmente necessário para a sua produção (Marx,

horas “a mais” trabalhadas (mais-valia absoluta) ou da intensificação do trabalho numa mesma janela de tempo, com consequente aumento de produtividade (mais-valia relativa).

Nesse contexto, o lucro do dono do capital advém da diferença entre o valor do que é vendido (valor de troca) e o custo para produzi-lo, ou, em outras palavras, da apropriação de mais-valia gerada (Marx, 1867/1980).

A solução encontrada para os conflitos, na era vitoriana, entre o dono do capital e os operários, vem do lado do capital: pagam-se salários que chegam ao limite da falta de humanidade, a fim de forçar uma dedicação temporal completa na jornada, na semana, nos anos de trabalho (Blanch, 2003). A consequência é a diminuição dos custos de produção, com tal exploração da força de trabalho. O relógio na parede da fábrica passa a ser o símbolo do disciplinamento do tempo do trabalho15, o que antecipa os princípios do gerenciamento científico e os estudos de tempo-movimento de Frederick W. Taylor, que se transformariam, no início do século XX, no novo processo de trabalho adotado: o Taylorismo.

Se a industrialização introduziu o trabalho assalariado como fenômeno de massa, se institucionalizou a disciplina do tempo laboral, também criou um novo mercado, o mercado de trabalho. Como em outros, nele a dinâmica da oferta e da procura aplica-se da mesma forma: tanto o excedente como a escassez de mão de obra funcionam como reguladores do preço a ser pago pelo trabalho executado.

O trabalho torna-se, pois, uma espécie de mercadoria, um artigo de comércio. E, como tal, a possibilidade de se aumentar o seu preço, se também depende do vendedor, depende sobretudo do comprador (Castelhano, 2006).

Assim, no século XIX, os compradores do trabalho, os donos do capital, queriam pagar o mínimo possível: o salário dos operários era calculado em função do valor

15 Disciplinamento que "casava" com a noção de sujeito introdirigido de Riesman (1950/1995) ou de neurótico

estritamente necessário para a sua subsistência, que permitia a produção quotidiana de força de trabalho pelo maior tempo possível.

A Revolução Industrial transformou a vida dos homens a ponto de torná-los irreconhecíveis, dependentes que se tornaram do seu parco salário para sua sobrevivência, disciplinados que tiveram de se tornar face à regularidade, à rotina e à monotonia da fábrica, totalmente diferente dos ritmos pré-industriais. Passaram a vivenciar uma situação degradante de sua moral e de seu corpo, explorado à exaustão (Castelhano, 2006).

Com boa parte da população sendo explorada massivamente, sem dinheiro excedente para consumir senão para sua subsistência, o capitalismo dava sinais de crise, seja por revoltas operárias que surgiam (Addor, 2007), seja pelo delinear de um esgotamento da acumulação e reprodução do capital: epidemias de superprodução, falências, desemprego, pauperismo, subconsumo (Mello, 2004).

Esse caldeirão efervescente assim se mostrava também pelo que a modernidade e, em particular, o capitalismo e a industrialização do século XIX, ajudaram a produzir16: a noção de individualidade, o projeto de emancipação individual. Nesse sentido, a exploração não seria simplesmente encarada como desígnio divino; os sujeitos não se resignariam pela justificativa de uma tradição, de um discurso de que “as coisas são como são e sempre serão assim”. A modernidade traz consigo a possibilidade de fazer acontecer de outro modo; traz a possibilidade (hipotética, pelo menos) de que o projeto de emancipação iluminista seja concretizado, supostamente para todos os indivíduos, ainda que, para isso, seja preciso luta e que isso implique renovação perpétua (Harvey, 2011).

16 Hall (2006) aponta um conjunto de fatores para a emergência do sujeito moderno, entre os quais o

Iluminismo, a Reforma Protestante, o racionalismo científico (para o qual o cogito cartesiano é emblemático) e as revoluções científicas.

3.2 O Fordismo/Taylorismo e o surgimento da sociedade do