• Nenhum resultado encontrado

2. A COOPERAÇÃO E SUAS REGRAS

2.4. A AUSÊNCIA DE NORMAS COMO REGRA

Por quase um século as inquisições ibéricas tentaram estabelecer oficialmente as normas pelas quais os tribunais se comunicariam e colaborariam. Desde as primeiras trocas de correspondência entre os inquisidores gerais de Espanha e Portugal até as juntas ordenadas por Felipe IV, inclusive com a tentativa de intermediação de Roma, houve a busca de um acordo assinado pelos dois lados que regulamentasse a colaboração inquisitorial. Foi, no entanto, sem efeito. Como visto, as inquisições nunca conseguiram formalizar este acordo. Do lado português, observa-se empenho em redigir as normas desse acordo, enquanto do lado espanhol houve a recusa em aceitar os termos que chegavam do outo lado. É verdade que os inquisidores gerais tinham desacordo em pelo menos um ponto chave das relações inquisitoriais: o envio de presos de um reino a outro. Este entrave foi decisivo para que, dependendo do contexto vivido em cada reino, os inquisidores se recusassem a aceitar a troca de prisioneiros entre os tribunais ibéricos. Contudo, mesmo com estas desavenças, a falta de entendimento entre as duas inquisições não deixou de normatizar as relações entre os tribunais. Paradoxalmente, a ausência do acordo foi acompanhada pela redação de normas as quais, se não atingiram o objetivo de formalização da concórdia, gerou o estilo colaborativo seguido pelos tribunais. Os inquisidores distritais tinham conhecimento dos textos resultantes das tentativas de concórdias. Interpretaram estes documentos como se de fato

mar-19 | Página 123

tivesse ocorrido um acordo entre os inquisidores gerais, passando a adotar as normas, mesmo que elas nunca tenham sido motivo de acordo entre as duas inquisições.

As diversas cartas trocadas entre os tribunais ibéricos nas matérias da remissão de presos não deixam dúvidas: se não houve acordo entre as partes, ao menos a posição adotada pelo inquisidor geral português, Cardeal D. Henrique, foi tratada como regra. Os inquisidores se referiam às “concórdias” ou “assentos” tomados entre as duas inquisições para estabelecer os termos da cooperação entre os tribunais ibéricos. O Cardeal infante nunca foi favorável à extradição de presos. Posicionou-se, nos mais diversos momentos, favorável ao envio das culpas e troca de informações dos arquivos inquisitoriais entre os tribunais ibéricos. Os diferentes registros documentais deixados nas cartas aos inquisidores espanhóis e ao seu embaixador, lembrando o “assento” tomado entre ele e o inquisidor geral de Espanha, embora nunca tivessem sido comprovados pelos tribunais de distrito, serviram de referência para os inquisidores que se reportavam a estes documentos para estabelecer as normas de cooperação entre as inquisições.

Posteriormente, quando ocorreram as tensões entre os tribunais de Évora e o de Lherena no final da década de 1570, D. Henrique novamente se posicionou contra as extradições. Seus capítulos redigidos neste contexto mais uma vez foram seguidos pelos tribunais de ambos os lados. Embora esteja claro (conforme os tribunais espanhóis informaram ao Consejo) de que estes capítulos nunca foram aceitos, não há dúvidas de que eles moldaram as relações entre os tribunais. Os capítulos de 1570 mais uma vez recusavam o envio de presos. Os tribunais deveriam enviar as culpas para o réu ser processado onde tivesse sido preso, independente de qual lado da fronteira tivesse desviado da fé católica. Assim foi seguido pelos tribunais. A cooperação em matérias de fé foi realizada com a circulação da informação inquisitorial, enviando as culpas e as ratificações para o tribunal que tinha efetuado a prisão do desviante, além de demais diligências para o prosseguimento da causa, como será exposto no terceiro capítulo. Embora nunca aceito do lado espanhol, mesmo assim os capítulos de D. Henrique serviram como argumento quando das investidas portuguesas a favor da extradição. No momento em que o reino de Castela presenciava a entrada de portugueses em seu território, os inquisidores gerais da Espanha

mar-19 | Página 124

utilizaram os argumentos portugueses para defenderem a não extradição de presos. Mais uma vez, sem acordo entre os lados, seguiu-se o estilo já implementado, ou seja, o envio das culpas testificadas.

De fato, a extradição de presos foi um ponto polêmico e que causou algumas tensões nas relações inquisitoriais. Contudo, como visto, mesmo durante as tensões entre os inquisidores gerais, os tribunais de distrito mantiveram a cordialidade em alguns casos. Sem o consentimento ou anuência dos conselhos, os inquisidores tomaram para si as decisões de enviar ou não os presos. Enquanto isso, os inquisidores gerais pressionavam seus tribunais a não efetuarem qualquer troca de prisioneiros sem consulta e autorização. Houve casos, porém, que os tribunais se recusaram a cumprir com as demandas de envio de prisioneiros, causando inquietações entre os tribunais.

No âmbito das relações de colaboração entre as inquisições ibéricas, a extradição de presos foi, no entanto, pontual. Este tema nunca foi suficiente para paralisar as relações entre os tribunais de Espanha e Portugal. Enquanto os inquisidores de distritos trocavam correspondência argumentando contra ou a favor da extradição de alguns presos, ao mesmo tempo mantinham a colaboração de envio de diligências necessárias para outros casos. Conforme Lopez-Salazar Codes afirma, as extradições ocorreram em situações de fuga dos cárceres inquisitoriais em processos que já tinham iniciado em um tribunal antes do réu atravessar a fronteira. Mas mesmo quando ocorreu a negativa do envio, os inquisidores mantinham a colaboração nos processos de outros réus cuja atenção não estava voltada para extradição.

Na tentativa de regulamentar a extradição, as inquisições regularam os aspectos de colaboração nas perseguições religiosas. Isso teve reflexo nas normas internas de cada inquisição. Do lado espanhol os inquisidores gerais emitiram cartas acordadas. Nelas ordenavam aos inquisidores de distrito solicitarem as culpas que haviam em Portugal, ao mesmo tempo em que buscavam centralizar as decisões a respeito da extradição. No reino português ocorreu o mesmo, com as regras redigidas por D. Henrique aparecendo nos regimentos inquisitoriais de 1613 e 1640. De ambos os lados, a mesma opinião: se enviem as culpas e troquem informações, não os presos.

Contudo, as comunicações inquisitoriais não estavam restritas à perseguição religiosa. Elas também diziam respeito às investigações de

mar-19 | Página 125

linhagem dos candidatos à agente inquisitorial. Neste aspecto, porém, nem sequer houve tentativa de regulamentação. Os tribunais mantiveram estreita colaboração nas diligências de limpeza de sangue sem contar com tensões a respeito da jurisdição. A carta acordada de 1669 que restabeleceu as comunicações entre os tribunais espanhóis e os portugueses regulamentou a questão conforme o estilo já praticado entre os tribunais ibéricos. Continha praticamente o mesmo informado pelos tribunais de Lherena e Valhadolid quando da consulta a respeito das formas de comunicação. A ausência de normas criou as regras da colaboração. A falta de um acordo formalizado não impediu a formalização das relações inquisitoriais. Se a colaboração não ocorreu pela norma, ocorreu pelo estilo e este foi-se impondo porque era pragmático e flexível.

mar-19 | Página 126

Documentos relacionados