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2. DOMINAÇÃO DOS CORPOS NEGROS: O INÍCIO DE UM PROJETO POLÍTICO

2.2 A Ausência do “Outro”

Deste modo, os colonizadores, ao invés de tratarem a diferença como apenas diferença, os discursos foram construídos de forma a tratarem-na como uma diferença indicativa de subalternidade, atrasada, simples, objetiva e desenharam o lugar de autoridades políticas que dominam o território e também o discurso, se atribuem a

25 Para mais detalhes de como foi a expedição de Colombo pelas Américas e como foram as primeiras

impressões, checar: TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América. A Questão do Outro. Tradução de

responsabilidade moral de ‘modernizar’ a realidade daqueles povos. Assim, essa objetificação, inicialmente dos nativos e posteriormente do povo negro, engendra uma estrutura de poder que parece impenetrável até os dias contemporâneos. Estrutura esta que se baseia em discursos fundamentados e produtores de estereótipos, racismo, preconceitos e estigmas. Quijano completa, dizendo que:

[...] a estrutura colonial de poder produziu as discriminações sociais que posteriormente foram codificadas como “raciais”, “étnicas”, “antropológicas” ou “nacionais”, segundo os momentos, os agentes e as populações implicadas. Essas construções intersubjetivas, produto da dominação colonial por parte dos europeus, foram inclusive assumidas como categorias (de pretensão “científica” e “objetiva”) de significação a-histórica, isto é, como fenômenos naturais e não da história do poder. Tal estrutura do poder foi e ainda é o marco a partir do qual operam as outras relações sociais, de tipo classista ou estamental. Com efeito, ao observarmos as linhas principais da exploração e da dominação social em escala global, as linhas matrizes do atual poder mundial, sua distribuição de recursos e de trabalho, entre a população do mundo, é impossível não ver que a vasta maioria dos explorados, dos dominados, dos discriminados são exatamente os membros das “raças”, das “etnias”, ou das “nações” em que foram categorizadas as populações colonizadas, no processo de formação desse poder mundial, da conquista da América em diante (QUIJANO, 1992, p.1).

O discurso central, oriundo de dominadores, ao sistematizar o ‘outro’ dentro de conceitos próprios, dominadores, muitas vezes limitadores, simplistas e incompletos, como raça e etnia, por exemplo, não se interessaram em personificar as pessoas, isto é, negros e negras não eram sujeitos, mas sim coisas, objetos abstratos, corpos trabalhadores, sem história ou civilidade, sem conhecimento ou racionalidade, portanto sem alma e sem possibilidade de expressão como sujeitos. São considerados como animais, sendo assim não fazem parte da construção e da vivência histórica, pois:

A radical ausência do “outro” não somente postula uma imagem atomística da existência social em geral. Isto é, nega a ideia de totalidade social. Como o mostraria a prática colonial europeia, o paradigma faz possível também omitir toda referência a todo outro “sujeito” fora do contexto europeu, isto é, fazer invisível a ordem colonial como totalidade, no momento mesmo em que a própria ideia de Europa está se constituindo precisamente em relação com o resto do mundo em colonização. A emergência da ideia de “Ocidente” ou de “Europa” é uma admissão de identidade, isto é, de relações com outras experiências culturais, de diferenças com as outras culturas. Mas para essa percepção “europeia” ou “ocidental” em plena formação, essas diferenças foram admitidas, antes de tudo, como desigualdades no sentido hierárquico. E tais desigualdades são percebidas como de natureza: só a cultura europeia é racional, pode conter “sujeitos”. As demais não são racionais. Não podem ser nem almejar “sujeitos”. Em consequência, as outras culturas são diferentes no sentido de serem desiguais, de fato inferiores por natureza. Só podem ser “objeto” de conhecimento ou de práticas de dominação. Nessa perspectiva, a relação entre a cultura europeia e as outras culturas se estabeleceu e, desde

então, se mantém como uma relação entre “sujeito” e “objeto”. (QUIJANO, 1992, p. 6).

Assim, quando inferimos que a produção de conhecimento na modernidade tem a marca da racionalidade europeia e um componente de uma estrutura de poder a qual pressupunha a dominação colonial dos europeus sobre o resto do mundo, é possível perceber, então, que está construída a narrativa de dominação colonial e, nela, o lugar de fala do colonizador e o lugar de fala do colonizado. As imposições hegemônicas eurocêntricas colocaram os sujeitos em determinadas posições sociais pré-estabelecidas e geralmente imutáveis, desta maneira, Grosfoguel (2010) aponta que, na América Latina, os sujeitos falam sempre a partir de um lugar de fala estabelecido “[...] nas estruturas de poder. Ninguém escapa às hierarquias de classe, sexuais, de gênero, espirituais, linguísticas, geográficas e raciais do ‘sistema-mundo patriarcal/capitalista/colonial/moderno’” (GROSFOGUEL, 2010).

Tendo em vista que foram impostos lugares de fala específicos aos dominadores e aos subalternizados, estes lugares também foram caracterizados. Segundo as contribuições de Grosfoguel (2010), ele especificou ramificações desses lugares que funcionam de forma hierárquica e nada imparcial. São elas: 1- uma hierarquia que se baseia nas questões étnico-raciais, em que os povos europeus estão no topo e os outros povos são atrasados e irrelevantes; 2- uma hierarquia patriarcal, ou seja, que beneficia e privilegia os homens em detrimento das mulheres; 3- uma hierarquia que se refere à orientação sexual que discrimina e violenta o homossexual e exalta o heterossexual; 4- uma hierarquia religiosa/espiritual que condena as outras manifestações e crenças religiosas que não a católica apostólica romana; 5- uma hierarquia linguística e da comunicação que hostiliza as manifestações e expressões linguísticas dos povos originários, e que, de acordo com Mignolo (2000), as subalterniza ao classificarem-nas como apenas produção folclórica e ou cultural e não como produção efetiva de teorias/conhecimento válidos (GROSFOGUEL, 2010).

A ‘colonialidade do poder’ será exitosa, pois se ramificará atingindo todas esferas das questões sociais no que diz respeito às subjetividades que constituem o sujeito (as hierarquias quanto à raça/etnia; patriarcado; orientação sexual; religião; modo de se comunicar). Assim, Quijano (1993) aponta que o que a colonialidade do poder traz de novidade e que, por consequência, foi o fator que propiciou que ela fosse tão intrínseca e

naturalizada pela sociedade, foi a maneira como o discurso sobre a raça e o racismo se tornaram a força motriz e o princípio organizador responsável por sistematizar e ordenar todas as hierarquias citadas acima que o sistema-mundo26 apresenta (QUIJANO, 1993).

Desta maneira, ao mencionarmos que tais hierarquias funcionam como o princípio ordenador da sociedade a partir daquele momento, a questão da raça será central para definir o lugar do sujeito, pois segundo Quijano (2005), “a ideia de raça, em seu sentido moderno, não tem história conhecida antes da América”. Sendo assim, é a partir da colonização das Américas que:

A ideia de raça organiza a população mundial segundo uma ordem hierárquica de povos superiores e inferiores que passa a ser um princípio organizador da divisão internacional do trabalho e do sistema patriarcal global. Contrariamente ao que afirma a perspectiva eurocêntrica, a raça, a diferença sexual, a sexualidade, a espiritualidade e a epistemologia não são elementos que acrescem às estruturas econômicas e políticas do sistema−mundo capitalista, mas sim uma parte integrante, entretecida e constitutiva desse amplo "pacote enredado" a que se chama sistema−mundo patriarcal/capitalista/colonial/moderno europeu (Grosfoguel, 2002). O patriarcado europeu e as noções europeias de sexualidade, epistemologia e espiritualidade foram exportadas para o resto do mundo através da expansão colonial, transformadas assim nos critérios hegemônicos que iriam racializar, classificar e patologizar a restante população mundial de acordo com uma hierarquia de raças superiores e inferiores (GROSFOGUEL apud GROSFOGUEL, 2010, p.7).

Sendo a raça a característica central, que determinaria se o sujeito era ou se não era alguém merecedor de respeito, reconhecimento social e equidade dentro da pirâmide hierárquica hegemônica colonial, as identidades sociais se formam e se localizam a partir desta condição. Deste modo, como explica Quijano, a identidade racial se torna elemento fundamental para o ordenamento assimétrico populacional:

A formação de relações sociais [...] produziu na América identidades sociais historicamente novas: índios, negros e mestiços, e redefiniu outras. Assim, termos como espanhol e português, e mais tarde europeu, que até então indicavam apenas procedência geográfica ou país de origem, desde então adquiriram também, em relação às novas identidades, uma conotação racial. E na medida em que as relações sociais que se estavam configurando eram relações de dominação, tais identidades foram associadas às hierarquias, lugares e papéis sociais correspondentes, com constitutivas delas, e,

26 Para maiores informações sobre o que é o Sistema-Mundo, checar: WALLERSTEIN, Immanuel. La

creación del sistema mundial moderno. In: BERNARDO, L. Un mundo jamás imaginado. Bogotá:

Editorial Santillana, 1992.

———— . World-System Analysis: The Second Phase. Review, XIII, 2, 287-93, Spring, 1990.

consequentemente, ao padrão de dominação que se impunha. Em outras palavras, raça e identidade racial foram estabelecidas como instrumentos de classificação social básica da população (QUIJANO, 2005, p. 117).

Deste momento em diante, a classificação social básica da população se tornou o elemento central na construção não só do povo latino-americano como um todo, mas também, particularmente, da nação brasileira. Assim, na próxima seção procuramos discutir sobre a formação social do Brasil e as influências dessa classificação na produção de desigualdade social, também reconhecida como ‘racismo’, que se evidencia no discurso da sociedade para a determinação dos lugares sociais assimétricos que cada um deve ocupar.