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Capítulo 5 Renascimento cultural amazônico: fortalecendo origens, nossa cultura

6.4 Autenticidade e permeabilidade cultural

Esse atual ambiente relacional acontece também para “o branco”, ao menos para os que Biraci disse “vocês nos auxiliam a reencontrar nós mesmos”. Este branco pode bem ser visto como um indígena, um nativo de outro povo que também indigeniza, adapta e seleciona elementos daquela lógica externa para as dinâmicas de seu próprio mundo, primeiro entre seringueiros e extrativistas e hoje, considerando o relato etnográfico, o também restrito perfil de visitantes do Festival Yawa e dos eventos urbanos.103

Porém nesse novo contexto ecumênico dos festivais, visitas em centros ayahuasqueiros urbanos e de acordos econômicos envolvendo a cultura prevalece uma imagem do indígena. Aquela ressaltada em capítulos anteriores de protetor da floresta, que vive em harmonia e conhecedor dos mistérios das plantas; Os rituais renovados104,os instrumentos e as técnicas são interpretados e a eles atribuídos valores, surge uma semântica híbrida, naturalmente etnocêntrica, essencialmente inscrita no cultivo batismal de onde o “índio branco” em questão é oriundo. É a indigenização por outro referencial. Os elementos são resemantizados em ambos os casos, mas não deixando por isso de carregar em si um significado original. Ou seja pelo fato de sermos etnocêntricos no sentido trabalhado, somos impelidos a ao menos “traduzir” elementos exógenos para uma perspectiva nativa, o que também não impede de compreender e incorporar a lógica do outro nativo, em nossos termos. Nahoum (2013, p.11) também sugere algo semelhante em sua Tese ao dizer sobre os visitantes do festival que,

103 O exemplo da gênese do Santo Daime é particularmente interessante pelo seu sincretismo religioso, mas com a predominância de uma cosmologia cristã. É o processo inverso, o “branco”( ainda que o fundador fosse negro) reinterpreta a ayahuasca em seus proprios termos, sem necessariamente desconsiderar seus aspectos de uso e entendimentos nativo.

104 A nova forma de uso de ayahuasca associada ao saiti e nãos usos antigos,para rezas de cura que são realizados com poucas pessoas a noite em espaço recluso.

the processes analyzed here suggests that those who thought of themselves as moderns are employing Indigenous symbols, seeking the savant savages to obtain lessons, which are then interpreted according to the cultural schemes of the moderns, to solve problems that are very modern as well.

E se os ocidentais, brasileiros não deixaram de ser brasileiros nem passaram a ser considerados aculturados por incorporarem tais práticas, porque seria o indígena? Nos processos de afirmação identitária, do renascimento cultural, os próprios Yawanawa com quem conversei questionam o que é legitimo e o que se é bom agregar, havendo ocasionalmente divergências de opinião em relação a forma dos cantos, a costumes alimentícios, os rituais de uni e as dietas, um tipo de reflexividade que se faz presente no cotidiano. Tornar-se outro é vestir-se, alimentar-se, agir, pensar, morar e viver como o outro. Como diz Biraci, “muitas coisas do branco são boas, nos ajudam e mudaram nossas vidas, mas isso não quer dizer que tudo é bom, precisamos selecionar o que eleva nossa cultura, nossa identidade, nossa forma de ser”.

Podemos mais uma vez pelo exercício da abstração nos distanciar do caso e momento atual e perceber que na verdade constitui o âmago da cultura de muitos povos adquirir novas práticas advindas de relações com os vizinhos, o dito “ocidente” se fez assim e nem por isso deixou sua Cultura. O exemplo do homem 100 por cento americano de Linton é eficaz ao mostrar que a identidade é bem mas complexa que o uso ou não de instrumentos, objetos e técnicas advindas de outros povos, até mesmo dos que já não existem.

Por essa mesma linha de raciocínio compreendemos melhor o que seria incorporação de elementos exógenos e o seu uso local. Os violões, os novos cantos, o uso de materiais do branco na confecção de ornamentos, os celulares e gravadores podem ser entendidos no sentido exposto em Oliveira Montardo (2002) ao falar o uso do violão entre os Guarani e a resignificação nas formas de usar e de situá-lo na cosmologia nativa. De maneira mais abrangente o que afirmo é semelhante a proposição de Oliveira Filho (1999, p. 117) de que:

A incorporação de rituais, crenças e práticas exógenas não necessariamente significa que aquela cultura já não seria “autenticamente indígena” ou pertencesse a “índios aculturados” (no sentido pejorativo de “ex-índios” ou “falsos índios”). Operadores externos são ressemantizados e fundamentais para a preservação ou adaptação de uma organização social e um modo de vida indígena.

Todos querem gravar os cantos dos “pajés”, especialmente aqueles que estão dedicados ao xamanismo. Pedem para esses anciões fazerem os cantos enquanto gravam com a intenção de

recordarem para cantar e também registrar a memória de seus parentes sobre a história do povo. O violão tem um aprendizado intuitivo e local, sua sonoridade é adaptada as músicas na maior parte dos casos gerando progressões de acordes e sequências rítmicas que tem semelhanças com outras. Uma das filhas de Raimundo Luiz me dizia que tinha gravações antigas de seu pai contando várias histórias dos Yawanawa e observava ao comparar com as versões dos outros velhos que cada um tinha uma maneira própria de contá-las. A pedido dela Yawarani fez vários cantos mëka que foram registrados em um gravador para estudar.

Entender cultura e “cultura” requer ter em conta as circunstâncias históricas mas quais a ‘indigenização da modernidade’ e a ‘modernização da indianidade’ não são excludentes e nem distintos. São nessas circunstâncias, como propus com Sahlins anteriormente, que os indivíduos exercem suas ações, interagem com o ambiente. Se “cultura” é a possibilidade reflexiva da cultura, ela sempre existiu, mas se realiza em diferentes contextos e a delineação dessa característica curiosamente se faz ao perceber a intensificação desse processo na atualidade, nas relações entre “populações tradicionais” e o Estado, as ONGs e o comércio, como propõem os Comaroff (2009).

Considerando a cultura nesses termos não poderia existir produção de autenticidade porque também não existe culturas inautênticas. Evidencia-se que ocorre a resemantização de elementos culturais intraespecíficos destacados nas relações interétnicas, estes adquirem outros significados, inclusive o de “produção de autenticidade” quando isto é reconhecido enquanto significativo para a conquista de espaço na sociedade envolvente. É necessário entender o engajamento na aldeia, o entusiasmo em pintar-se com jenipapo e urucum, cantar e dançar saiti no pátio central, o engajar-se com as práticas xamânicas. A ideia de etnoturísmo, como constava em sites de divulgação do festival, pode ser reduzida por uma visão estreita a um festival performático no sentido de indígenas se preparam receber turistas de passagem interessados em vivências com indígenas. Essa visão desconsideraria as trajetórias pessoais e coletiva que envolve toda a atualidade e acontece acionando os fundamentos das relações sociais locais que, pelo recorte da pesquisa, remontam ao início no seringal até a última década. Existe sim uma reorganização local buscando vitalizar um ethos Yawanawa através desses modos de sociabilidade, o que inclui também esses outros como parte do seu renascimento cultural.

No âmbito interétnico estes eventos envolvem relações sociais duradouras, questões políticas e amizades, nas dinâmicas internas da aldeia pode representar desde as melhoras no atendimento de saúde, da infraestrutura e recursos da aldeia a processos sutis que envolvem a

retomada de práticas xamânicas, influências de “forças espirituais” 105, um universo amplo com complexidades das quais delineio o que pude compreender no convívio durante poucos meses.

Na medida em que a cultura enquanto fenômeno não é “estática”, a ‘reinvenção’ é parte do fazer-se da cultura. A questão que concerne ao caso estudado é onde, como e quando a reinvenção e reflexividade cultural acontece. Para pensar o resgate e a “cultura” foi necessário situá-los historicamente, compreender a inserção Yawanawa na gênese do movimento indígena em um contexto global de mudanças de mentalidade e política nacional e internacional.

Constatei que quando se faz um novo cocar ou se “resgata”, “revitaliza”, “retoma” a ‘cultura”, já é autêntico resultado de uma Cultura. Como o renascimento cultural europeu,que a partir das origens ancestrais greco-romanas trouxeram as coordenadas para orientar a cultura. Para isso estavam situados em seu tempo utilizavam de coisas da contemporaneidade para encontrar esses valores e não foi por isso que deixou de ter seu sentido impresso na mentalidade, no ethos europeu e ocidental, na estética e em todas suas dimensões sociais. Não foi considerado inautêntico, mas uma revolução.

Por isso, ainda que o uso de sinais diacríticos para situações de encontro interétnico possam surgir como forma de “produzir autenticidade” nas políticas de legitimidade, essa intenção de diferenciação aparece no âmago do que caracteriza a identidade étnica, a expressão estética, bem se sabe, é uma das formas de tornar a diferença evidente. Com certeza é por meio dela, associada as “medicinas da floresta” que parte significativa dos grupos são atraídos a terra indígena para vivenciar a cultura indígena, mas é por meio dela que também os reconhecem enquanto indígenas, Yawanawa.

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