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2. CAPÍTULO 2: ANTISSEMITISMO E AUTO-ÓDIO NA MODERNIDADE

2.2 O Auto-ódio

Em No exílio (2005), a construção da figura do judeu exilado no Brasil o coloca ora como guardião da memória, no que simbolizaria a preservação e a recriação de um lugar cultural, de onde se possa resgatar o mínimo senso de pertencimento; ora, como agente no processo de transculturação, mas, sobretudo, a construção do judeu imigrante como signo de um sofrimento partilhado, advindo do processo de exclusão, seja ela explícita, com a expulsão de seus países de origem, ou introjetada e reproduzida, por vezes entendida como auto-ódio, sob a ótica de Sander L. Gilman, em seu texto O que é auto-ódio?, publicado em 1994, como encontramos na obra de Elisa Lispector, na comparação do judeu com as figuras do rato ou do cordeiro, ou ainda comparados a vultos, seres sem corporeidade, distantes da sua condição humana.

O auto-ódio surge quando as miragens de estereótipos são confundidas com realidades dentro do mundo, quando o desejo de aceitação força o reconhecimento da própria diferença. É, portanto, um dos produtos universais da maneira como somos forçados a ver o mundo. (GILMAN, 1994, p.38)

Esse imperativo coloca a questão da segregação, que nunca poderá ser superada, tendo em vista os padrões de alteridade culturalmente impostos e a questão de sermos sempre inerentemente outros para outros grupos. Daí nasce a construção de estereótipos que findam por segregar alguns grupos e também a intolerância e a introjeção de um sentido de inferioridade por não atingir os padrões impostos pelo grupo maioritário.

Segundo Gilman (1994), esses grupos de referência rotulam os que consideram diferentes, assinalando categorias como etnia, religião ou classe como fatores imutáveis. Esses rótulos findam por estabelecer mitos sociais que se pautam em questões como raça ou identidade étnica para construir uma realidade em torno da qual os grupos minoritários passarão a pautar seus desejos.

Vendo a si mesmos como marginais, esses outsiders8 tornam-se dependentes dessas categorias construídas, independentemente de serem reais ou imaginárias, para construir um horizonte de aceitação, no qual poderá adentrar nesse universo outro que lhe permitirá os privilégios do grupo de referência.

8 Termo utilizado por Sander L. Gilman em seu texto O que é auto-ódio?, publicado em 1994 no livro intitulado Construindo a Imagem do Judeu, com organização de Nelson H. Vieira.

Nas referências feitas aos judeus, em No exílio (2005), no que concerne às fugas e ataques sofridos, é possível ver se delinear a ideia de auto-ódio, ou seja, a assunção do discurso do perseguidor como forma de olhar para si e para o outro que também é parte de sua comunidade. No romance, a comparação dos judeus com animais, com seres acuados e perdidos, passivos, domesticáveis, incapazes de reagir à opressão, buscando sempre uma fuga ou uma resignação simula, muitas vezes, a construção de uma forma de auto-ódio. As imagens sugerem judeus desumanizados, ora como se estivessem cumprindo o destino de estarem apartados da humanidade, ora como forma de trazer uma fuga possível tentando amenizar a realidade circundante.

[...] a casa estava sendo evacuada. E novamente, quais ratos estonteados, foram saindo para a luz e dispersando-se pelas ruas. (LISPECTOR, 2005, p.45, GRIFO NOSSO).

Quedaram-se em tensão silenciosa, amontoados uns sobre os outros, como gado no matadouro. (Ibid., p. 12)

Obedecendo à voz de comando, vultos começaram a saltar em terra, parecendo suicidas ao mar. (Ibidem.)

Havia na voz do cossaco solidez rude e tranquila, um tanto melancólica, a contrastar pateticamente com a acuidade e a leveza de pássaro dos emigrantes, as vidas por um fio. (Ibid., p. 13)

Em outro momento, compara a tia Dora, irmã de Marim, a uma aranha venenosa. Essa é, curiosamente, uma das imagens utilizadas pelos antissemitas na Itália para caracterizar os judeus em uma das edições dos Protocolos dos Sábios de Sião. Há uma mescla de sentimentos e pensamentos que permeiam a narrativa e acentua seu caráter de trauma e exílio. Em muitos momentos da narrativa torna-se tarefa árdua descobrir qual fio da meada deve ser seguido.

Tinha pena da irmã, levando vida tão difícil. E a culpa de quem era, senão dele, de Pinkhas? E começou a desenrolar um novelo de gosmentos fios de aranha, inoculando-lhe secreção venenosa de aranha. (Ibid., p. 111)

A confusão estabelecida entre as comparações feitas no romance e aquelas que são constantemente utilizadas pelos antissemitas fica bem demonstrada pelo trecho abaixo, que surge durante a viagem de navio ao Brasil, terra do exílio. A viagem na terceira

classe, quase os porões do navio, num ambiente sujo e desconcertante, exposta a situações humilhantes, a pequena Lizza é surpreendida por uma ratazana que lhe roça o rosto enquanto tenta dormir. Mostra então, que o nojo e a revolta expressa pela ratazana, é instantânea, sem titubeios. A figuração de um suposto auto-ódio surge então ao compararmos os trechos nos quais o judeu figura no mesmo patamar daquilo que suscita tais sentimentos.

E quando uma ratazana enorme e lerda, os pequeninos olhos fuzilando por entre o pelo cinzento e repelente, passou sobre o travesseiro, roçando-lhe o rosto, toda a sua tensão nervosa explodiu em asco e revolta. (Ibid., p. 93)

2.3 Modernidade e testemunho

A era das catástrofes que se inaugurou no século XX, com as Grandes Guerras e a instauração de regimes totalitários, entre outros quadros que compõem o cenário da história mundial, criou a necessidade de uma literatura permeada por traços característicos do testemunho. E, embora não se tenha inaugurado um novo gênero, pois a prática testemunhal antecede o período histórico acima salientado, houve a abertura um espaço maior para a tessitura de uma literatura fortemente entrecortada pelo testemunho e pelas releituras outras que essa categoria torna possível.

Se atos literários testemunhais tiveram momento desde o século XVIII, foi no século XX que assistimos ao surgimento de uma literatura com forte teor testemunhal. Não diria que existe a partir de então um novo gênero, a literatura de testemunho, mas antes que neste século tanto se desenvolveu uma literatura com forte teor testemunhal, como também, por outro lado, aprendemos a ler nos documentos de cultura traços, marcas da barbárie. (SELIGMANN-SILVA, 2009, p.133)

Faz-se importante salientar que o testemunho constitui tarefa sempre impossível porque sempre outro, porque duela com a verdade que se deseja revelar e ao mesmo tempo esquecer. O testemunho instaura e se insinua a distância que existe entre o habitar e o pertencer. Há um abismo de silêncio de onde não se consegue sair.

Diante deste panorama, desde a década de 1970, tem se mostrado de grande importância o estudo da literatura nascida do testemunho. O estudo dessa literatura nascida de contextos de exceção, de exílio e de guerras, de colapsos individuais que