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Auto-imagens dos alunos brasileiros face ao francês

IV. IMAGENS DOS ALUNOS DE FLE SOBRE A CULTURA FRANCESA

4.3 Auto-imagens dos alunos brasileiros face ao francês

Se, nas respostas às perguntas anteriores sobre os franceses, sua língua e seu país, o aluno já falava grandemente de si próprio ao falar do outro (Coracini, op. cit.), a questão seguinte pede que ele compare explicitamente suas diferenças e semelhanças: “Estabeleça uma comparação entre suas concepções a respeito da cultura brasileira e da francesa.” Transcrevemos algumas respostas.

I) “O brasileiro é um povo solidário (...) acho que pela França que teve uma colônia na África, este poder todo dominou o seu jeito de ver o mundo, pela ganância de querer e conseguir qualquer coisa, não pensa no seu semelhante.”

II) “Os franceses são muito mais patriotas que os brasileiros. Todos os itens socio-econômicos na França são melhores do que no Brasil. Mas na França não existe o calor humano que encontramos no Brasil.”

III) “Os franceses são muito mais típicos que os brasileiros. Eles têm comidas típicas, danças típicas.”

Por meio da confrontação, verifica-se novamente a presença de qualidades positivas atribuídas à França e a seu povo. Os franceses “são patriotas” (cf. II), “típicos” (cf. III), ou seja, são o retrato da nação fundada na origem comum e na tradição, e têm “itens sócio-econômicos melhores” (II), ou seja, são a concretização da estrutura, da ordem, da civilização, como já pôde ser observado em respostas analisadas anterioremente. Ao brasileiro, restaria a outra face da

moeda, composta por “curiosidades”72 resultantes da tentativa de formar o “um” brasileiro, que é no entanto marcado por uma origem multi-étnica e pela exploração histórica externa. Tais “curiosidades”, visando a fundar um sentimento de brasilidade, encontram-se, no caso destas respostas, apoiadas em valores afetivos que seriam tipicamente brasileiros (como a solidariedade), e que, na verdade, funcionam como um fundamento da nação, que se encontra inviabilizada de se instituir por meio de uma origem comum, por meio de uma origem étnica fundadora. Assim sendo, os brasileiros, como um todo, são “solidários” (cf. I) e possuem “calor humano” (cf. II).

Enquanto a França se mostra como a civilização, a estrutura, o Brasil se mostra, pelo contrário, como deficiente de estrutura, mas detentor de um povo cordial (como compensação, como percebemos em II – “Mas na França não existe o calor humano que encontramos no Brasil”). A cordialidade, associada a um jeito de ser brasileiro, já se encontrava nas palavras de Sérgio Buarque de Holanda (1999:141):

A hospitalidade e a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal. Seria engano supor que essas virtudes possam significar “boas maneiras”, civilidade. São antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante. Na civilidade há qualquer coisa de coercivo – ela pode exprimir-se por mandamentos e sentenças.

Conforme assinala o autor, o povo brasileiro seria detentor de uma característica positiva, digna de elogios por parte dos estrangeiros que nos visitam, ou seja, a cordialidade. Na “cordialidade”, que seria nossa marca, não há, no entanto, “civilidade”; há sentimento, há um

“fundo emotivo”. A civilidade, marcada pela ordem e pela estrutura, tem algo de “coercivo”, na medida em que exige dos cidadãos o cumprimento de “mandamentos” e “sentenças”; dito de outro modo, exige o cumprimento de leis. Segundo essa visão de “brasilidade”, que exclui a civilidade, continuaríamos sendo um país “sem rei, sem lei, sem fé”, tal como os colonizadores teriam descoberto, logo nos primeiros contatos com os índios, por intermédio de uma visão etnocentrista73. O apego à idéia de cordialidade, generalizado num todo brasileiro nacional como se coloca, resulta em um auto-estereótipo que funciona na formação imaginária da identidade brasileira.

Na pergunta seguinte, pediu-se ao aluno que dissesse se mudaria de país. “Se você tivesse a oportunidade de mudar de país e ir morar na França, você iria? Explique.” Vejamos algumas respostas.

I) “Eu iria com certeza porque meu sonho é conhecer a França.” II) “Não. Em parte, eu prefiro o calor humano do Brasil.”

A expectativa positiva em relação à França, como esperado, se reafirma nessas respostas. Pode-se notar que, na resposta I, o aluno não só afirma que “iria” como reafirma seu desejo dizendo “com certeza” e, ainda, que esse é seu “sonho”; ou seja, o enunciado do aluno afirma três vezes seu desejo de integrar-se à comunidade francesa. A resposta II, ainda que explicite de início uma rejeição ou negação ao fato de o aluno mudar de país, acaba, no entanto, reafirmando, assim como a resposta anterior, a superioridade da França. Isso porque é afirmado “em parte eu prefiro o calor humano do Brasil”, ou seja, o aluno reconhece que prefere o Brasil,

teriam “curiosidades”.

73

Segundo Bosi (1994:17), a afirmação é de Gândavo (cap.XX), um dos primeiros informantes sistemáticos sobre o Brasil: “[a língua tupi] é mui branda, e a qualquer nação fácil de tomar. (...) carece de três letras, convém a saber,

porém com ressalvas, e justifica essa preferência unicamente por nossa cordialidade, sem mais razões.

As respostas seguintes, por sua vez, reafirmam algo que já se mostrava na resposta I, quando o aluno diz que “seu sonho” é conhecer a França. Vejamos.

III) “Se eu morasse na França, iria querer passear sempre ao entardecer por praças e jardins floridos, essa seria uma razão pela qual eu me mudaria para este país.”

IV) “Iria, porque lá teria condições de realizar todas as vontades que tenho de realizar aqui, tais como estudar, praticar esportes, sair para me divertir à noite, etc.”

Mais do que a imagem de uma França detentora de aspectos unicamente positivos, as respostas apontam para a imagem de uma França idílica, local onde todos os sonhos do aluno poderiam ser realizados. As respostas ressaltam as praças e jardins franceses (cf. III) e a possibilidade de estudo, de prática de esportes e de acesso a lazeres (cf. IV), imagens que sugerem a internalização, pelo aluno, do discurso do livro didático, cuja ênfase se encontra nos itens mencionados, sobretudo nas primeiras unidades do livro, como pudemos observar no momento da análise da representação do povo francês. O livro, por meio da retratação que efetua das personagens e seus hábitos, coloca essas atividades como diárias e abertas a todos, o que é certamente falacioso. É interessante observar que a resposta III (“Se eu morasse na França, iria querer passear sempre ao entardecer por praças e jardins floridos, essa seria uma razão pela qual eu me mudaria para este país”) funciona como uma clara paráfrase de uma passagem do livro didático, encontrada na unidade 3, que tinha por objetivo ensinar a correlação de tempos verbais do passado, como o Pretérito Perfeito e o Imperfeito. Essa passagem afirmava: “Quand j’habitais à Paris, j’allais tous les jours au jardin du Luxembourg

et tous les soirs j’allais au cinéma ou au théâtre.”74 (LD1, p.130, grifos do livro). Parece confirmada, assim, a hipótese de que o livro contribui fortemente para a criação dessa atmosfera idílica em relação à França, que, como vimos, é reproduzida nesse discurso do aluno e em outras respostas que observamos anteriormente.

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