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Autocracia e autonomia da vontade

AUTONOMIA DA VONTADE E FATO DA RAZÃO

3.5 Autocracia e autonomia da vontade

Como vimos, na Doutrina do Método da KpV, Kant reconhece as insuficiências do interesse pela moralidade através tão somente do sentimento de respeito. Sendo assim, resta utilizar determinados dispositivos para o cultivo da moralidade em nós, a fim de

Tornar perceptível em exemplos, na apresentação viva da disposição moral, a pureza da vontade, inicialmente apenas como sua perfeição negativa, na medida em que numa ação como dever não entra como fundamento determinante absolutamente nenhum motivo das inclinações. Deste modo o aprendiz é, contudo, mantido atento à consciência de sua liberdade. E, ainda que essa renúncia sempre provoque uma sensação inicial de dor, todavia, pelo fato de que priva aquele aprendiz da coerção até de carências verdadeiras, ao mesmo tempo anuncia-lhe uma libertação do variado descontentamento em que todas essas carências o enredam e o ânimo é tornado receptivo à sensação de contentamento a partir de outras fontes (KpV, AA 05, 160/161).

Na KpV, o objetivo é o de trazer à luz a noção de princípio da moralidade puro, cujo motivo objetivo para uma ação moral tem de ser esse princípio tomado exclusivamente. Entretanto, Kant reconhece que essa é uma tarefa difícil de ser concretizada. Para a execução

115―Wenn nun, wie im Königthume, diese Auctorität auf eine einzelne physische Person, um Selbstherrscher zu seyn, übertragen ist, so ist die Befreiung dieser Person von allem möglichen Widerstreben des Volks das, was ihr den Glanz eines selbstleuchtenden Sterns giebt, während alle Staatswürden der Unterthanen, als Reflexe durch jene ausgesandt, verdunkelt warden‖(ZeF, AA 08, 159).

116 “Ein Wunsch nach einer Neigung ist nicht die Neigung selbst. Die obere Kraft ist eine Kraft, alle andern Vermögen in der Seele zu beherrschen. Selbstherrscher (HN, AA 25, 447).

da moralidade, é preciso recorrer a outras estratégias que cativem o ânimo e possam discipliná-lo para exercer aquilo que se representou para si mesmo. Ou seja, executar a autonomia da vontade. Essas estratégias são abordadas minuciosamente na MS. Isso fica evidente na Didática Ética da MS, na qual a decisão de tomar o dever como fundamento para uma ação é o primeiro elemento capaz de conduzir ao exercício da moralidade. Contudo, essa decisão ainda não é suficiente para a execução da moralidade.

Quanto aos deveres de virtude presentes na MS, o arbítrio tomado como livre das influências sensíveis tem de ser capaz de tomar uma decisão, esta envolve máximas que podem ser adotadas em uma ação. A coerção do arbítrio para executar uma regra da razão prática envolve superar um obstáculo que se interpõe para a concretização na práxis da moralidade. Assim, a coerção e a superação dos obstáculos são chamados por Kant de virtude. Nessa coerção está envolvida a noção de força, isto é, autocracia. O âmbito de aplicação de um dever de virtude às ações concretas só é possível mediante uma casuística117, dois elementos são indispensáveis para isso: 1) que esse ―dever estabeleça uma relação de obrigação entre seres humanos‖ (HAHN, 2005, p. 88) e 2) o de ―não estabelecer outra relação de obrigação que não seja entre humanos‖ (HAHN, 2005, p. 88). O cultivo da virtude tem de seguir esses dois requisitos apresentados, porém

a virtude não pode ser ensinada por meio de meras representações do dever, por meio de exortações (pareneticamente), mas tem de ser cultivada por meio da tentativa de combater o inimigo interior do homem (asceticamente), tem de ser

exercitada; porque não se pode de imediato tudo o que se quer se antes não se tiver

exercitado e praticado as próprias forças (MS, TL, AA 06, 477).

Para Kant, não é possível uma educação da virtude, apenas a apresentação de ações virtuosas por exemplos (MS, TL, AA 06, 479), mas um exercício da própria virtude mediante um uso da força adquirida capaz de desempenhar os princípios outrora formulados. Essa força é a autocracia. Desse modo, se é possível realizar uma ação moral, ou seja, autônoma, é imprescindível o uso dessa força (autocracia) para que essa ação possa, de fato, vir a ocorrer. Pois a ―sua própria razão ensina e ordena aquilo que você tem de fazer‖ (MS, TL, AA 06, 481). Seguir os ditames da razão é por si só um dever ao qual devemos nos comprometer a

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Kant nos fornece uma série de exemplos que operam nesse sentido, alguns são nomeadamente restritivos, tais como, o suicídio, a autoconservação de si como membro de uma espécie, da ―imoderação na ebriedade e da gula‖ (MS, TL, AA 06, 427), ―da mentira‖ (MS, TL, AA 06, 429), ―da avareza‖ (MS, TL, AA 06, 432), ―do servilismo‖ (MS, TL, AA 06, 434), dentre outros. Quanto aos deveres que nos dizem positivamente o que fazer, temos ―o cultivo de suas capacidades naturais (capacidades do espírito, da alma e do corpo)‖ (MS, TL, AA 06, 444), ―ser um membro útil para o mundo‖ (MS, TL, AA 06, 445), ―a elevação da perfeição moral do homem‖ (MS, TL, AA 06, 446), a benevolência para com outros seres humanos e, indiretamente, para como os animais, ―a beneficência, gratidão e simpatia‖ (MS, TL, AA 06, 452), a clemência, dentre outros.

cumprir. Para executar esse dever, é necessário assenhorar-se de si mesmo para que se possa pôr em prática aquilo que foi previamente estabelecido. Nem sempre agir por virtude significa alcançar ganhos materiais ou emocionais em muitos aspectos da vida individual, pelo contrário, Kant admite que

Para vencer os obstáculos com que tem de lutar, a virtude tem de reunir suas forças e, ao mesmo tempo, sacrificar muitas alegrias da vida, cuja perda por vezes pode bem tornar o ânimo sombrio e carrancudo; entretanto, aquilo que não se faz com prazer, mas meramente como trabalho servil, não é amado por e nem tem qualquer valor intrínseco para aquele que assim obedece seu dever; pelo contrário, a ocasião de sua execução é evitada tanto quanto possível (MS, TL, AA 06, 484).

A virtude como exercício cotidiano não promete ganho algum. Mas agir por dever ainda sim apresenta um valor intrínseco e absoluto. Pode-se interpretar que com o passar do tempo, esse esforço contínuo de obedecer aquilo que se autolegislou vai se tornando lentamente agradável ao ânimo. Portanto, ―por meio de tais exercícios, o aprendiz é conduzido inadvertidamente ao interesse pela moralidade‖ (MS, TL, AA 06, 484). Ou seja, a associação entre o princípio da moralidade e a força coercitiva para a execução desse princípio são elementos que propiciam que o ser humano possa tomar interesse em agir moralmente.