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3. VIRTUDE, AUTONOMIA E O OBJETIVO DO

3.2 RESPONSABILIDADE E AUTONOMIA

3.2.1 Autonomia e Heteronomia

As noções de agência epistêmica e autonomia estão diretamente ligadas (Buss, 2014, p.1). É esperado do agente que ele possa agir, e não apenas reagir, em relação aos diversos aspectos que o mobilizam na realidade que o envolve.38 Quando um grupo de alunos exige autonomia em relação a preparação de um evento, por exemplo, tipicamente está exigindo que eles possam ter um autogoverno em relação a este evento. Neste sentido, espera-se que um sujeito autônomo (i.e. uma agência epistêmica)

                                                                                                               

36 Página da internet dedicada a fabricar notícias obviamente falsas com finalidade cômica.

37 A expressão “predominantemente autônomo” é importante na medida em que, em algum grau, sempre há uma parcela de heteronomia dos sujeitos, principalmente no que tange as faculdades epistêmicas mais básicas, como as sensações e as emoções.

38 Novamente, não se trata de uma perspectiva metafísica em que afirmamos o sujeito como possuidor de controle sobre suas crenças, mas sobre a possibilidade de que este sujeito apresente razões a sua comunidade epistêmica para defender as suas crenças.

possua capacidade de auto-regulação em uma área específica, ou em todas elas.

Seguramente, autonomia para realizar um evento não é completamente equivalente à autonomia em relação às próprias crenças. Quando se trata de autonomia em relação às crenças, estamos falando da possibilidade de que um sujeito possa revisar ao menos algumas de suas crenças e aumentar a sua responsabilidade com a comunidade epistêmica ao ofertar as razões pelas quais crê em algo. Autogoverno, neste sentido, é um conceito que remete à possibilidade de ofertar razões na arena cognitiva.

Mas, se a autonomia é apenas um autogoverno, por que ela seria valorosa? Por que deveríamos busca-la? Em um certo sentido, é possível que alguém possa se autogovernar em direção a fins destituídos de valor ou, como afirma Buss (2014, p.1), um sujeito S pode se autogovernar sem necessariamente apreciar adequadamente a diferença entre certo e errado. Este tipo de autogoverno, destituído de valor epistêmico, pode ser considerado como uma autonomia virtuosa em sentido pleno? Seguramente não.

Uma forma de compreensão mais ampla da autonomia pode ser conseguida quando analisamos o seu contraste. O contrário de autonomia é a heteronomia e este termo comumente evoca a qualidade de um sujeito que é regulado pelos outros (Elgin, 2013; Buss, 2014; Roberts & Jay-Wood, 2007; Encabo, 2008). Aplicando os dois termos como extremos de um contínuo, obteríamos, por um lado, um sujeito heterônomo que segue regras de uma outra pessoa (i.e. uma autoridade) e aplica tais regras segundo as orientações dessa autoridade. Trata-se, caricatamente, de um sujeito que não pode pensar por si próprio, mas necessita de um endosso externo para cada ação (verbal ou não) que executa.

No outro extremo, que também é construído caricatamente, encontramos o sujeito autônomo. Como afirmam Roberts & Jay-Wood:

Ele é o único autor (ou pelo menos o desbravador original), sem suporte externo, de todas as regras lógicas que ele utiliza, de todos os padrões experimentais, de todo o vocabulário de investigação, e de todas as questões norteadoras que ele direciona – isto é, de tudo que regula suas práticas intelectuais (Roberts & Jay-Wood, 2007, p.259)

Certamente não podemos pensar em um membro de uma comunidade que esteja completamente em um dos extremos deste contínuo. Pessoas reais se engajam em atividades exercendo qualidades que estão mais ou menos inclinadas para um dos lados dos extremos autonomia-heteronomia (Elgin, 2013, p. 140). Neste sentido, autogoverno não implica em auto-suficiência. Pelo contrário, para que alguém possa se governar apropriadamente, necessita saber interagir com outros membros da comunidade da qual faz parte, compartilhando crenças e atitudes em geral.

Autonomia, portanto, não é contrastada com a existência de relações de dependência (Encabo, 2008, p. 55). Pelo contrário, não consideraríamos um aluno autônomo a menos que ele tenha se envolvido suficientemente no contato com fontes epistêmicas derivadas da rede de testemunhos39 (Coadi, 1973) que é característica do processo educacional. A autonomia, então, envolve um processo de auto-regulação, mas sempre em relação a regulação dos outros. Diz-se de um sujeito autônomo que possui a capacidade de, a partir do aprendizado social, entender a realidade física e social em seu entorno e construir uma perspectiva pessoal sobre tal estrutura. Em uma expressão, a autonomia é uma virtude social (Roberts & Jay-Wood, 2007, p. 259).

A concepção de que um agente autônomo deve ser apropriadamente regulado pelos outros, ao mesmo tempo que deve construir uma perspectiva pessoal a partir dessa regulação, está em pleno acordo com formulações psicológicas que consideram o autocontrole e a auto-regulação como derivadas do processo de intersubjetividade. Para Luria (2001), por exemplo, um sujeito não consegue se auto-regular antes de aprender os standards da

                                                                                                               

linguagem e cognição sociais de sua comunidade40. Para além de uma perspectiva psicológica, em uma formulação epistêmica o testemunho dos outros é essencial na construção de um sujeito que possui autonomia para agir em comunidade:

Pessoas se tornam menos autônomas, e não mais, por se recusarem a conhecer e entender a hetero-regulação, e como consequência falham em estar no seu melhor estado epistêmico. (Roberts & Jay-Wood, 2007, p. 261)

Se a autonomia é essencial para a construção de uma agência epistêmica que seja capaz de regular suas próprias ações, precisamos fornecer uma caracterização mais apropriada desta qualidade epistêmica, bem como fornecer argumentos sobre o porquê considera-la como uma virtude (i.e. explicar porque a autonomia possui valor epistêmico).