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Autonomia: a possibilidade de legislar

No documento Discutir o aborto: um desafio ético (páginas 109-111)

3. O ABORTO: UMA DISCUSSÃO ÉTICA

3.1. Os princípios que norteiam a ética moderna

3.1.2. Autonomia: a possibilidade de legislar

Para Kant, a autonomia da vontade é a capacidade de dar a si mesmo a sua própria lei de acordo com princípios universais da razão:

A autonomia da vontade é a constituição da vontade, pela qual ela é para si mesma uma lei - independentemente de como forem constituídos os objetos do querer. - O princípio da autonomia é, pois, não escolher de outro modo mas sim deste: que as máximas da escolha, no próprio querer, sejam ao mesmo tempo incluídas como lei universal.241

A relação intricada entre autonomia e dignidade, ou seja, com “aquilo que

não tem preço... e que não admite equivalente”242 consiste exatamente no fato de

que cada um é legislador universal e está submetido a sua própria legislação. Assim, a autonomia abrange outros conceitos, como o respeito e a dignidade humana, que é o que não tem preço nem é passível de substituição.

Nossa própria vontade, se agisse somente debaixo da condição de uma legislação universal possível por suas máximas, essa vontade possível para nós na idéia, é o objeto próprio do respeito, e toda dignidade humana consiste precisamente nessa capacidade de ser legislador universal, ainda quando sob a condição de estar, ao mesmo tempo, submetido justamente a essa legislação.243

Porém pode-se inferir da leitura de Kant que a autonomia está relacionada com o dever de respeito que existe em relação ao outro, que não é um meio, e sim um fim em si mesmo.

Pois nada tem valor diverso do que o que a lei lhe determina. Contudo a própria legislação, que determina todo valor, deve, por isso mesmo, ter uma dignidade, digamos, um valor incondicionado, incomparável, para o qual só a palavra respeito dá a expressão conveniente da estima que um ser racional deve tributar-lhe. A autonomia é, pois, o fundamento da dignidade da natureza humana e de toda natureza racional.244

241 KANT, Emmanuel. Fundamentos da metafísica dos costumes. p. 92. 242 KANT, Emmanuel. Fundamentos da metafísica dos costumes. p. 85 243 KANT, Emmanuel. Fundamentos da metafísica dos costumes. p. 91-92. 244 KANT, Emmanuel. Fundamentos da metafísica dos costumes. p. 87.

Na mesma linha de pensamento: “Mas o homem não é uma coisa; não é, pois, algo que se possa usar como simples meio; deve ser considerado, em todas as ações, como fim em si mesmo. Não posso, pois, dispor do homem, em minha pessoa, para mutilá-lo, estropiá-lo, matá-lo.” KANT, Emmanuel. Fundamentos da metafísica dos costumes. p. 79-80.

Para Kant, o ser humano deve agir em conformidade com a legislação universal e considerar o outro como fim, mas sempre e ao mesmo tempo, considerar-se como fim, porque o respeito ao outro, por ele encerrar um fim em si mesmo, é o mesmo respeito que cabe a mim, pois, como legislador universal e submetido a essa legislação, para que eu respeite o outro, devo igualmente respeitar-me.

O princípio: “age com respeito a todo ser racional - a ti mesmo e aos demais - de tal modo que em tua máxima valha ao mesmo tempo como fim em si”, é, portanto, no fundo, idêntico ao princípio: “age segundo uma máxima que contenha em si ao mesmo tempo, seu valor universal para todo ser racional”. Pois se no uso dos meios para todo fim devo eu limitar minha máxima à condição de seu valor universal como lei para todo sujeito, isto equivale a que o sujeito dos fins, isto é, o próprio ser racional, não deva nunca pôr-se como fundamento das razões qual simples meio, mas sim como suprema condição limitativa no uso de todos os meios, isto é, sempre ao mesmo tempo como fim.245

A idéia de liberdade entrelaçada com o conceito de autonomia é o alicerce para o agir humano. A partir dessas definições, tem-se a compreensão da ação humana para Kant como algo livre e autônomo, lembrando que o outro não pode jamais ser utilizado como meio, mas unicamente como fim.

Como ser racional e, portanto, pertencente ao mundo inteligível, não pode o homem intuir senão debaixo da idéia de liberdade, pois a independência das causas determinantes do mundo sensível (independência que a razão deve sempre atribuir-se a si mesma) é a liberdade. Com a idéia da liberdade se acha, contudo, inseparavelmente unido o conceito de autonomia, e com este o princípio universal da moralidade, que serve de fundamento à idéia de todas as ações de seres racionais, do mesmo modo que a lei natural serve de fundamento a todos os fenômenos.246

O princípio do dever kantiano tem sua expressão mais clara neste enunciado – uma bela forma de mencionar como se deve agir para respeitar o outro: “Age de tal

modo que possas usar a humanidade, tanto em tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre como um fim ao mesmo tempo e nunca somente como um meio.”247

Ronald Dworkin, ao explicar o papel da autonomia na vida do ser humano, considera que autônoma é somente a pessoa que tem condições de decidir por sua própria conta e risco. São os seres que podem decidir sobre qualquer aspecto de

245 KANT, Emmanuel. Fundamentos da metafísica dos costumes. p. 89. 246 KANT, Emmanuel. Fundamentos da metafísica dos costumes. p. 109. 247 KANT, Emmanuel. Fundamentos da metafísica dos costumes. p. 79.

sua vida, mesmo que pareça aos outros não ser essa a decisão mais acertada. A autonomia não pode compreender como fato que as escolhas da pessoa serão sempre em prol de seu bem-estar, pois ela tem desejos e interesses dissonantes daquilo que se idealiza como um bem universal e, sendo assim, nem sempre age em conformidade com a manutenção de um nível saudável de vida (por exemplo, todos sabem que o cigarro é prejudicial à saúde, mas, mesmo assim, muitos fumam). Logo, a autonomia não está diretamente relacionada com o bem estar da pessoa, e seu pressuposto é de que ela conheça melhor do que qualquer um o seu interesse, mesmo que sua ação pareça, aos outros, imprudente. Assim, “a autonomia encoraja e protege a capacidade geral das pessoas para guiar suas vidas conforme seu critério, o critério do que é mais importante para elas.”248

No documento Discutir o aborto: um desafio ético (páginas 109-111)