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2.3 Normas fundamentais aplicáveis aos negócios jurídicos processuais

2.3.1 Autonomia Privada Aplicada ao Processo

A autonomia privada consiste em uma interação entre o poder de compreensão de si mesmo e do mundo ao seu redor, com estabelecimento de relações baseadas em tais percepções (autonomia crítica) e o poder de criar comportamentos, determinados por essa

9 Enunciado 369 do Fórum de Permanente de Processualistas Civis: (arts. 1o a 12) O rol de normas fundamentais

previsto no Capítulo I do Título Único do Livro I da Parte Geral do CPC não é exaustivo.

10 Enunciado 370 do Fórum de Permanente de Processualistas Civis: (arts. 1o a 12) Norma processual fundamental

autonomia crítica (NAVES, 2014, p. 95). É, portanto, a capacidade de se autorregrar, com liberdade para determinar comportamentos de acordo com sua própria vontade.

Historicamente, esta evolui da concepção clássica de autonomia da vontade - presente no Estado Liberal no qual as partes tinham um verdadeiro direito de liberdade, podendo contratar como e com quem lhe apetecesse, obedecendo-se à isonomia formal - a um entendimento moderno de autonomia privada, proveniente de um Estado Social, onde há um direito objetivo dos contratantes de regrarem suas relações, mas que é submetido à isonomia material (tratar os iguais igualmente e os desiguais desigualmente, na medida de sua desigualdade) que deve ser garantida pelo Estado (MENDES, 2015a, p. 20).

Processualmente, a presença da autonomia privada é controversa, em razão da divergência entre as correntes publicista e privatista. Existe uma relação direta dessas correntes com os modelos adversarial e dispositivo, que serão tratados mais a frente neste capítulo.

A corrente publicista entende a prestação jurisdicional como forma de concretização de interesses públicos, relegando a tutela dos interesses das partes a um segundo plano. Tem como características marcantes a presença de juiz gestor, o qual concentra em si todos os atos processuais, seja determinando-os, fiscalizando-os ou chancelando-os; a ausência de liberdade das partes; a outorga de poderes instrutórios ao juiz, priorizando a perseguição à verdade real; e a predominância da oralidade (ALMEIDA, 2015, p. 72, 74)

Em se tratando do neoliberalismo processual, a jurisdição é tratada como serviço oficial de resolução de controvérsias, cujos objetivos são tutelar os interesses privados e evitar a prática da autotutela. Destaca-se a predominância do princípio dispositivo, que tira do juiz a maioria de suas funções, restando a eles apenas fiscalizar as atividades das partes e decidir o litígio; a não exigência de comportamentos que prezem pela cooperação e pela boa-fé, já que nesta perspectiva as partes são tidas como verdadeiras adversárias; e a delegação da responsabilidade sobre a gestão do procedimento sobre a produção probatória às próprias partes (ALMEIDA, 2015, p. 78, 80).

São dois pontos extremos. Entendemos que a presença de autonomia, mesmo que limitada em razão do caráter público do Direito Processual, é essencial para o desenvolvimento de um processo em um Estado Democrático de Direito. O diálogo entre as partes e o juiz, de modo que elas possam exercer sua autonomia, quando permitido pela legislação processual, democratiza o processo, fazendo que este deixe de ser uma situação adversarial, para tornar-se um ambiente de cooperação.

Corroborando com a tese de que existe autonomia privada dentro do processo, Godinho (2015, p. 87) traz excelente exemplo: a existência do processo em si é uma

demonstração de autonomia, porque ele só pode ser iniciado com a provocação da parte. Se o próprio processo só existe em razão do fato de o autor ir a juízo para perseguir um direito, iniciando-o, é evidente que a vontade tem relevância nesse campo, apesar das limitações trazidas pelo caráter público do processo.

2.3.1.1 Princípio do respeito ao autorregramento da vontade no processo

A evidente presença da autonomia privada no novo processo civil brasileiro consagrou um novo princípio, implícito no CPC/15: o autorregramento da vontade, que se traduz em conjunto de poderes que podem ser praticados pelas partes, com liberdade variada (NOGUEIRA, 2016, p. 136). O objetivo deste princípio é propiciar as partes um ambiente processual onde seja possível o exercício da autonomia privada, apenas com as limitações estritamente necessárias.

Afinal, as partes, como destinatárias principais do provimento jurisdicional, muitas vezes, estão mais aptas do que o juiz para tomar decisões sobre seus rumos e providências, em consonância como os objetivos publicísticos do processo (GRECO, 2011, p. 721).

O autorregramento se distribui em quatro zonas, sendo a presença de uma delas suficiente para configurar uma situação de autonomia:

a) liberdade de negociação (zona das negociações preliminares, antes da consumação do negócio); b) liberdade de criação (possibilidade de criar novos modelos negociais atípicos que mais bem sirvam aos interesses dos indivíduos); c) liberdade de estipulação (faculdade de estabelecer o conteúdo do negócio); d) liberdade de vinculação (faculdade de celebrar ou não o negócio). (DIDIER JUNIOR, 2016, p. 134).

Analisando caso a caso, veremos que em algumas hipóteses há uma abertura maior para a liberdade, e em outras, é possível apenas a concordância ou não do sujeito do negócio. Na primeira situação, a liberdade de negociação, é permitida a alteração em cláusulas de um negócio, antes que ele se concretize. No que tange à liberdade de criação, possibilitada, em âmbito processual, pela cláusula geral de negociação do art. 190, há a zona com mais predominância de autonomia, pois os agentes criam o negócio da forma como preferirem, respeitando alguns limites pré-determinados.

A liberdade de estipulação relaciona-se ao conteúdo do negócio, demonstrando também parcela considerável de autonomia. Finalmente, a zona na qual a liberdade é exercida em menor grau é a de vinculação, pois nesse caso, à parte é facultado somente a anuência ou

não com o negócio, sem possibilidade de modificação ou criação de seu conteúdo. É a única existente em atos processuais em sentido estrito.

Didier Jr. (2016, p.137-139) elenca uma série de situações que demonstram a presença do princípio do autorregramento da vontade no CPC/15, como a estruturação deste de modo a estimular a solução do conflito por autocomposição, por meio da mediação e da conciliação, situações em que as partes transacionam acerca de suas vontades e necessidades; a delimitação, na petição inicial, do objeto litigioso do processo; a cláusula geral de negociação processual, que possibilita a criação de diversos acordos de procedimento, pelas próprias partes, respeitando certos limites; e a existência de uma série de negócios processuais típicos, como o negócio de anuência prévia para aditamento ou alteração do pedido ou da causa de pedir até o saneamento (art. 329, II11) e a indicação prévia sobre a preferência de penhora de um bem em específico (art. 848, II12).

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