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O autoquestionamento na literatura

CAPÍTULO 2 – ENTRE OS GRITOS DO SILÊNCIO: AS VOZES VELADAS DA

2.2 O autoquestionamento na literatura

A miragem sedutora do paternalismo literário não ofuscou a perspectiva de um grupo importante de pensadores, merecendo destaque a influência dos postulados defendidos por Adorno (2008) e Benjamin (1994). Não escapou a eles uma simples, porém decisiva constatação: o artista é, antes de tudo, um ser social. Ainda conforme esses teóricos, é preciso aceitar a premissa de que as diferentes formas de arte são inegavelmente produções sociais, resultantes de variadas práticas sociais.

Assim, a estrutura e a linguagem da obra artística poderiam escamotear as contradições existentes no interior da sociedade de classe. O grande dilema que se apresenta para os escritores da modernidade é o eminente perigo de sua representação estético-literária se transformar num poderoso veículo de reificação das mazelas que tanto almejaram denunciar.

Para Hermenegildo Bastos (2009), as lutas políticas e sociais não acontecem somente no campo da realidade imediata; nesse contexto, a literatura também se configura como um território de luta, ocupação e reivindicação. Mesmo sabendo que a arte literária não tem o poder de modificar as estruturas sociais, ela pode, de algum modo, iluminar criticamente as contradições sociais e, paradoxalmente, se autoquestionar como reprodutora do poder hegemônico:

Por política entenda-se, então, não necessariamente a posição do escritor frente às situações políticas no sentido restrito, mas os modos de a imaginação literária lidar com os limites impostos aos seres humanos na sua luta pela sobrevivência. Vale considerar o ponto de vista de classe do escritor manifestado na organização textual. Por política entenda-se ainda a literatura integrada ao conjunto da vida social onde se produz e reproduz o poder. Política é a literatura porque é um território de luta: para a reprodução da hegemonia e para a produção de contra - hegemonias. Aí se produzem significados, tanto os que constroem e perpetuam o poder quanto os que o podem contestar (BASTOS, 2009, p. 2).

Caso a intenção do autor seja representar a realidade de maneira crítica, sua atenção deve se voltar também para essa via de mão dupla percorrida pela literatura, ou sua obra pode, superficialmente, desaguar na mistificação dessa mesma realidade.

A crítica empreendida por Bastos (2009) evita análises reducionistas, pois ao mesmo tempo em que reconhece as grandes obras como produtos sociais e ideológicos, aponta seu poder de iluminar e problematizar seus próprios meios poéticos de expressão como reprodutores da ideologia dominante.

“Autoquestionamento” foi o termo criado pelo autor para caracterizar o posicionamento de alguns escritores que decidiram, em sua práxis escritural, reavaliar seus próprios meios poéticos de expressão. Tais autores apresentam uma aguda compreensão das contradições sociais que permeiam a sociedade de classe e sabem que sua literatura, como produto social, pode se constituir tanto como ferramenta de reificação das mesmas contradições ou, em um gesto de rebeldia, questioná-las.

O autoquestionamento arruína todas as certezas, obriga o escritor e seu narrador a enfrentarem o fracasso ao estabelecer um vínculo mais profundo entre sua literatura e a vida, entre a literatura e as contradições sociais. Nesse entremeio, o autor se vê constantemente obrigado a reconhecer que dificilmente terá condições de abandonar sua posição de intelectual burguês e vislumbrar, pelo menos momentaneamente, a alteridade do Outro de classe.

Por compreender que o liame literatura/vida não é natural, e longe de desejar que a obra seja cópia da realidade, percebemos, em alguns escritores modernos, uma “[...] desconfiança com relação ao poder de representação da linguagem, o que leva os autores a um trabalho incessante e a uma eterna insatisfação” (BASTOS, 1998, p. 33-

34).

Essa tomada de consciência dos escritores em relação aos limites das obras parece coadunar com aquilo que Benjamin (1994, p. 127), em seu polêmico ensaio “O autor como produtor”, já preconizava na década de 1930: “O lugar do intelectual na luta de classes só pode ser determinado, ou escolhido, em função de sua posição no processo produtivo”.

Para o teórico alemão, o intelectual burguês, ao assumir o compromisso de resgate dos miseráveis, cai nas armadilhas do “patronato ideológico”, e seu lugar de protetor dos excluídos se transforma num “lugar impossível”. Dotado de uma aguda visão da dinâmica que movimenta a sociedade de classe, Benjamin (1994) assevera que

a solidariedade do artista deve manifestar-se também na esfera do material, e não apenas servir como tema de sua arte ou se configurar como uma atitude política. No entanto, o pensamento benjaminiano vai além do que chamamos de “marxismo vulgar”. Uma das teorias que dão suporte a essa afirmação é o fato de o autor ampliar sua discussão para o campo da autonomia do artista moderno que se vê, de certo modo, obrigado a colocar sua obra a favor de uma causa.

Outra ideia que ganhou considerável espaço nas rodas intelectuais e não escapou às críticas empreendidas por Benjamin (1994) foi a “tendência” de se exigir do artista duas premissas básicas que deveriam orientar seu ofício: por um lado, elaborar uma arte voltada ao cotidiano do proletariado e, por outro, manter a qualidade de sua produção. Debate considerado estéril pelo crítico alemão, pois ainda não resolveria os impasses que envolvem uma obra artística compromissada com as minorias. Vejamos as pertinentes observações feitas por Benjamin (1994, p. 120):

Mas a questão que vos é mais ou menos familiar sob a forma do problema da autonomia do autor: sua liberdade de escrever o que quiser. Em vossa opinião, a situação contemporânea o força a decidir a favor de que causa colocará sua atividade. O escritor burguês, que produz obras destinadas à diversão, não reconhece essa alternativa. Vós lhe demonstrais que, sem o admitir, ele trabalha a serviço de certos interesses de classe. O escritor progressista conhece essa alternativa. Sua decisão se dá no campo da luta de classes, na qual se coloca ao lado do proletariado. É o fim de sua autonomia. Sua atividade é orientada em função do que for útil ao proletariado, na luta de classes. Costuma-se dizer que ele obedece a uma tendência.

Seguindo sua linha de raciocínio, Benjamin (1994) aponta para o terreno minado percorrido por aqueles que aderem facilmente às “tendências”, principalmente quando essa adesão é esvaziada de uma reflexão mais profunda das condições de produção inseridas e que estão fora da obra literária. Desse modo, o teórico define a postura da obra e da crítica literária que se quer politicamente orientada:

Pretendo mostrar – vos que a tendência de uma obra literária só pode ser correta do ponto de vista político quando for também correta do ponto de vista literário. Isso significa que a tendência politicamente correta inclui uma tendência literária. Acrescento imediatamente que é essa tendência literária, e nenhuma outra, contida implícita ou explicitamente em toda tendência política correta, que determina a qualidade da obra. Portanto, a tendência política correta de uma obra

inclui sua qualidade literária, porque inclui sua tendência literária (BENJAMIN, 1994, p. 121).

Em “O autor como produtor”, Benjamin (1994) estabelece uma dura crítica ao que ele chama de “debate estéril” acerca de questões como forma e conteúdo. Seu pensamento dialético convoca o artista e a crítica especializada a estreitarem os laços entre a Literatura e a vida, entre a Literatura e as contradições sociais. Ainda segundo o filósofo, a arte verdadeiramente crítica “[...] não pode de maneira alguma operar com essa coisa rígida e isolada: obra, romance, livro. Deve situar este objeto nos contextos sociais vivos” (BENJAMIN, 1994, p. 122).

Para que o intelectual situe sua obra nos contextos sociais vivos, é preciso reconhecer que sua arte, como qualquer outra forma de produção, é dependente de certas técnicas produtivas. Estas, por sua vez, envolvem um conjunto de relações sociais entre o produtor artístico e seu público.

Assim sendo, o reconhecimento da obra artística inserida nas relações de produção seria, paradoxalmente, o primeiro princípio para a produção de uma arte que se quer autônoma. Tal constatação gera desconforto para alguns, ao mesmo tempo em que aguça a criatividade de outros. Para os mais lúcidos, a arte passa a exigir uma representação estética cada vez mais refinada e atenta para os riscos de uma obra pretensamente “engajada”. Em sua obra Marxismo e crítica literária, Terry Eagleton (2011, p. 112) define com propriedade o pensamento benjaminiano:

O artista verdadeiramente revolucionário, portanto, nunca se ocupa apenas com o objeto artístico, mas com os meios de produção. O “engajamento” não se limita à apresentação de opiniões políticas corretas pela arte; ele se revela no grau em que o artista reconstrói as formas artísticas a sua disposição, transformando autores, leitores e espectadores em colaboradores.

A capacidade de reconstrução das formas artísticas disponíveis apresenta-se como um dos principais desafios para os autores da modernidade, pois é preciso driblar os mecanismos de reificação escamoteados no próprio discurso literário e que nem sempre são perceptíveis. O autor perspicaz constata que as formas artísticas disponíveis encontram-se desgastadas e contaminadas pelos “velhos clichês” e que sua arte também pertence ao mundo da mercadoria; daí, muitas vezes ele adota uma postura pessimista em relação à sua literatura, por não encontrar saída para esse impasse.