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Ao tomarmos o Formicarius como objeto de investigação histórica, devemos primariamente considerar que tal escrito se insere em uma conjuntura espaço- temporal específica; que seu autor integra o contexto político, religioso e cultural de uma sociedade em plena e evidente transformação — no caso, o contexto da região ocidental do Sacro Império Romano-Germânico ao fim do medievo, zona de intensa circulação e contato entre indivíduos de diferentes regiões. Para fins de contextualização, tracemos alguns pontos comuns entre a situação vivenciada pela sociedade do período e o autor do manual.

47 “Certainly this new conception of witchcraft was by no means solely the creation of clerical

authorities [...], later imposed on the rest of European society through propaganda and persecution. Many aspects of the witch stereotype arose from common conceptions of magic and popular folklore widely held by the laity, and belief in witchcraft fed to a large degree off common social structures and interactions, not extraordinary waves of official persecution.”

O contexto histórico de produção — e inicial circulação — do documento corresponde a um período de intensas mudanças, as quais viriam a delinear os aspectos políticos, sociais e culturais vigentes na Europa nos séculos posteriores. Entre os acontecimentos-chave estavam a Guerra dos Cem Anos (1337-1453) e a consequente formação do Estado Moderno na França e na Inglaterra, a transição/transformação do Ocidente medieval, especialmente a Península Ibérica, Itália e Alemanha, e, por fim, a profunda “crise” sofrida pelo Sacro Império que daria lugar à ascensão da dinastia dos Habsburgos, cujo poder se perpetuará do final do século XV ao início do século XX.

No Sacro Império, a nobreza e o alto clero se esforçavam por acrescer sua independência e a de seus domínios à custa do Império, ao passo que as cidades se tornavam verdadeiras repúblicas urbanas, geridas por conselhos de comerciantes. Nesse mesmo cenário, parece evidente que a aurora dos novos ideais mercantis trouxesse consigo nova concepção de vida, novos gostos, costumes e comportamentos sociais, além de novas formas de cultura e educação. Evidentemente, dos novos ideais resultariam também novas formas de religiosidade, cujos contornos destoavam da herança e tradição medieval (JIMÉNEZ MONTESERÍN, 2004).

Outra peça-chave dos conturbados contextos do período foi a instituição eclesiástica. A posição hegemônica da Igreja sobre o continente europeu já apresentava indícios de deterioração desde os embates entre Papado e o Sacro Império a partir do final do século XIII — os conflitos entre o imperador Carlos IV e o Papa João XXII, cujos resultados incorreram no definitivo afastamento da autoridade pontifícia dos desígnios imperiais (JIMÉNEZ MONTESERÍN, 2004). Ao cabo desse detrimento de poder temporal, não apenas em âmbito político, a Igreja teve ainda que afrontar-se com os percalços provenientes do Grande Cisma, o qual abordamos na seção anterior.

Tratemos, então, da trajetória do autor do Formicarius.

Pouco se sabe sobre os primeiros anos de vida de Johannes Nider. Estima-se que nasceu em Isny, ao sul da região da Suábia, parte sudoeste da atual Alemanha, entre 1380 e 1385. Era filho de um pobre sapateiro, que faleceu antes de Nider completar sua formação universitária. Sua mãe, preferindo manter-se viúva e casta,

não voltou a contrair matrimônio. Como sugere Bailey (2003b), provinha de uma família bastante religiosa que, muito provavelmente, o influenciou a ingressar na vida eclesiástica. Sua formação inicial teve lugar em um convento beneditino de sua cidade natal, ingressando, posteriormente, no convento dominicano de Colmar em 1402. Após completar seu noviciado, foi enviado a Worms para confirmação e ordenação. Em Colônia, completou sua formação teológica e filosófica por volta de 1413 e, em 1422, deu continuidade a seus estudos em Viena. Nesse ínterim, participou do Concílio de Constança (1414-1418). Logrando o título de doutor em teologia pela Universidade de Viena em 1425, foi nomeado prior do convento dominicano de Nuremberg, entre 1426 e 1429.

Extremamente favorável à reforma da Ordem Dominicana — tal como da Igreja e da sociedade cristã como um todo —, Nider tornou-se prior do convento da Basileia, onde foi encarregado de introduzir a reforma. Ali atuou entre 1429 a 1436, tendo servido ativamente no Concílio da Basileia (1431-1449). Em 1435, retornou à Universidade de Viena, no intuito de dedicar-se ao ensino de teologia e à redação do

Formicarius, sua obra mais difundida. Eleito reitor da Faculdade de Teologia, veio a

falecer em 1438, em Nuremberg, após um período no qual introduziu a reforma nos conventos dominicanos de Colmar.

Como salienta Chène (1999), Nider legou uma importante obra literária — entre tratados, sermões e cartas —, desenvolvendo uma teologia baseada na prática em consonância à tradição patrística e escolástica. É descrito por alguns autores como um altamente educado, ambicioso e proeminente dominicano (GALBRETH, 1964). Em decorrência de sua filiação dominicana, recorreu de maneira especial à autoridade de Tomás de Aquino. Sua singular trajetória foi marcada pelo compromisso com o ideal de reforma religiosa e defesa da fé cristã. De fato, Nider

protagonizou o assim chamado “Movimento Observante” (observantia), como era

conhecido o processo de reforma das ordens mendicantes ao fim do medievo, estando à frente do processo de reforma de toda a província dominicana da Teutônia, que se estendia do Reno à Viena e dos Alpes aos Países Baixos, e de várias importantes casas de sua Ordem. Longe de se limitar às relações mantidas com a reforma dominicana, os escritos de Nider também se estenderam às demais ordens (BAILEY, 2003b).

Muitos desses trabalhos foram desenvolvidos no decorrer de sua participação no Concílio da Basileia. Por algum tempo, a Basileia tornou-se o centro do cristianismo ocidental e Nider, por sua vez, converteu-se em uma das mais importantes figuras daquela região. Como ressalta Bailey (2003b), não atuou no referido concílio apenas como representante da Ordem Dominicana, mas também como prior do convento dominicano da Basileia, que naquela ocasião era considerado o principal centro das atividades do concílio. Como membro do concílio, Nider atuou nas negociações com os Hussitas da Boêmia e nas considerações sobre o questionável status dos Begardos e Beguinas nos Países Baixos, suspeitos de serem heréticos.

Como exposto anteriormente, o alvorecer do século XV foi marcado por profundas transformações no que diz respeito às práticas mágicas e pela elaboração de inúmeros tratados, dedicados a desenvolver o novo conceito de bruxaria. No conjunto de tais escritos demonológicos e eclesiásticos, se inserem valiosos trabalhos produzidos por Nider. O dominicano alemão e reformador religioso apresentou, em vários de seus tratados teológicos e morais, importantes contribuições no que concerne às concepções tardo-medievais de magia, superstição e bruxaria, além de discorrer sobre outros temas como heresias, crises religiosas, questões de ordem moral e de fé. No entanto, é preciso ter em conta que em nenhum de seus trabalhos Nider se dedica exclusivamente às bruxas — nem mesmo o Formicarius, seu mais significativo trabalho. Para Nider, a bruxaria constitui apenas um aspecto do vasto mundo religioso que ele percebe estar em crise. O objetivo de seus escritos foi, antes de tudo, promover uma reforma espiritual da cristandade. Dessa forma, suas reflexões acerca das bruxas e suas ações podem e devem ser, primeiramente, entendidas no bojo de seu espírito reformador (BAILEY, 2003b).

Ainda assim, Johannes Nider pode ser considerado um dos primeiros e mais importantes teólogos a se ocupar, na primeira metade do século XV, do emergente fenômeno da bruxaria, tanto pela quantidade de material produzido, quanto pela influência legada por seus escritos. Sua postura a respeito das representações do diabo e seus maléficos agentes permitem identificar as atitudes sustentadas pelas autoridades eclesiásticas de época em seu âmbito político e cultural (CAVALLERO, 2011). Sua obra tem importante papel no desenvolvimento da conceituação da bruxaria demoníaca. Nider não apenas realizou uma reinterpretação dos modelos

teológicos e inquisitoriais anteriores, mas reinterpretou também os relatos de eventos do final do século XIV sob a luz das novas concepções sobre a bruxaria — ou seja, de pressupostos que os informantes aos quais ele recorreu não possuíam (KORS; PETERS, 2001).

Por fim, parece oportuno observar que as obras do reformador dominicano forneceram importantes perspectivas de um novo fenômeno de maneira praticamente simultânea à sua emergência, sob uma perspectiva acadêmica, eclesiástica e reformada. Ademais, os escritos de Nider, em especial o Formicarius, serviram como importantes fontes de informação para a elaboração do mais polêmico tratado tardo-medieval sobre bruxaria, o Malleus Maleficarum: “Kramer se baseou fortemente nas descrições anteriores de seu companheiro dominicano Nider, reproduzindo largas seções dos textos de Nider, praticamente literais, no Malleus e referindo-se a ele em um ponto como o mais eminente doutor” (BAILEY, 2003b, p. 3, tradução nossa, grifo do autor).48 O quinto livro do Formicarius foi, posteriormente, incluído em muitas das primeiras impressões do grande manual de inquisição.