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De acordo com a perspectiva exposta anteriormente sobre a importância da mediação para o processo de ensino-aprendizagem e construção do conhecimento, reconhecemos que esta é elemento catalisador de qualquer processo formativo e que nunca está dissociada da dimensão autoral do processo cognitivo, pois ser autor é uma condição humana inerente à natureza cognoscente do ser. Portanto, também é uma condição histórico-social.

Contudo, a noção de autoria não parece pacificada no que concerne à natureza mesma do conceito de autoria ou suas implicações no que concerne à natureza mesma dos processos cognitivos humanos. Em outras palavras, não se pode divorciar autoria, cognição e formação, que por sua vez não podem estar dissociadas do currículo e da mediação.

A abordagem do problema da produção do conhecimento e da autoria implica em uma análise de questões fundantes para a Ciência Moderna como a noção de linguagem e mediação e o conceito de sujeito. Um outro ponto fundamental para a discussão aqui proposta é a relação que o conceito moderno e romântico de autoria teve com o desenvolvimento do Capitalismo Industrial nos séculos XIX e XX, bem como os impactos dessa noção de autoria no processo de produção hegemônico e no paradigma de produção informacional.

Ao discutir o conceito de autoria a partir dessas premissas, quer-se denunciar a incoerência fundamental entre a emergência de um paradigma informacional de produção, que supõe a lógica do trabalho em rede e a manutenção de uma noção de autoria individual e subjetiva, do ponto de vista pragmático, bem como arguir pela falta de suporte epistemológico para o conceito de autoria moderno-romântico, quando desmontado o paradigma sausurriano e a subjetividade hegeliana.49

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O paradigma sausurriano permite reproduzir no modelo metodológico e nas práticas discursivas a determinação do sentido a partir de uma relação significado/significante fossilizada; a subjetividade hegeliana considera a subjetividade como uma verdade absoluta e legítima por si mesma, juntando deste modo o ente com o universal.

Nessa perspectiva, a discussão a seguir sobre a natureza da autoria é, na verdade, uma outra forma de se discutir cognição e construção do conhecimento, sua natureza e seu processo, uma vez que a noção de autoria aqui em questão leva em consideração o fato de que a interpretação de um texto não pode ser unicamente de quem o escreveu, assim como quem escreve um texto não é nunca seu único autor, pois o discurso não é constituído de uma única voz, ele (o discurso) é polifônico, uma vez que é gerado por muitas vozes, muitos textos que se cruzam no tempo, originando assim a fala do discurso, principalmente quando este texto é construído em um espaço aberto para vários escritores – a rede internet, em um ambiente virtual de aprendizagem –.

Entretanto, não teceremos considerações aqui em torno da autoria material e sim da autoria cognitiva e filosófica, interessa-nos é a ressignificação do processo diante do contexto atual de imersão dos sujeitos no mundo virtual, das tecnologias da informação e comunicação (TIC). Não obstante, reconhecemos que a autoria material se fragiliza consideravelmente ante a compreensão da natureza distribuída da autoria cognitiva que, fortalece a autoria como componente inerente dos processos cognitivos humanos ao tempo em que a compreende como potência difusa no espaço das interações sociais, da intersubjetividade dialogal dos sujeitos no ser-sendo da existência.

Por seu turno, Orlandi propõe que a autoria “[...]se realiza toda vez que o produtor da linguagem se representa na origem, produzindo um texto com unidade, coerência, progressão, não contradição e fim” (ORLANDI, 2004, p. 69) e o entendimento de autor é a noção de “[...] uma função da noção de sujeito, responsável pela organização do sentido e pela unidade do texto, produzindo o efeito de continuidade do sujeito” (IDEM), então o autor aqui será visto como aquele sujeito que se autoriza no discurso, na linguagem a partir de seu contexto histórico- social.

Esclarecendo um pouco mais sobre isso Orlandi (2004) complementa:

[...] – a diferença de Foucault, que guarda a noção de autor para situações enunciativas especiais (em que o texto original, “de autor”, se opõe ao comentário) – procuramos estender a noção de autoria para o uso coerente, enquanto função enunciativa do sujeito, distinta da de enunciador e de locutor. (p. 69)

Assim, a autoria aqui não se limita a um quadro restrito e privilegiado de produtores “originais” de linguagem (que se definiriam em relação a uma obra), como afirma Foucault (1983, apud ORLANDI, 2004, p. 69), pois o autor responde pelo que diz ou escreve no seu contexto social, para si mesmo e para o outro e, considerando o fato de estarmos inseridos na sociedade da informação, as questões relativas à produção da escrita sofrem interferência direta das tecnologias e das transformações sociais referentes a esse mecanismo de existir, implicando assim, numa compreensão de autoria a partir de um redesenho, de uma ressignificação de variadas possibilidades sociais e cognitivas que são encaminhadas pelas tecnologias da informação e comunicação nesse movimento de ser autor e de autorizar-se.

Por isso, que ao compreendemos que o conhecimento é construído dialogicamente ao limite do argumento e, pode em algumas situações de construção coletiva, invalidar toda subjetividade em virtude do caráter social e coletivo de sua gênese, percebemos que, nesse contexto, a autoria pessoal desaparece substituída por uma autoria coletiva que, de tão imbricada na sinuosidade da coletividade, já não pode mais ser entendida como autoria em sentido estrito: se todos são autores

per se, já ninguém é autor propriamente, posto que a individualidade está perdida

em sua submersão ao coletivo, mesmo que esse fato ainda não seja sustentado por um fundamento epistemológico denso.

Nesse processo de simbiose a subjetividade já não mais se distingue da coletividade, pois a vivificar a autoria, o processo de interpretação apresenta, dá nomes aos co-autores cognitivos, sociais e históricos da construção.

Então, como conceituar autoria nesse contexto? Essa pergunta encaminha o debate não para uma discussão sobre direitos autorais ou propriedade intelectual. O foco dessa discussão é a natureza mesma do conhecimento e de seu processo de construção da qual a natureza da autoria se nutre e é constituída, portanto, não é a autoria material propriamente dita.

Foucault (2005) afirma que “o novo não está no que é dito, mas no

acontecimento de sua volta” (p. 26 - grifos nossos), e desta forma encaminhamos

refletirmos sobre a formação do sujeito autor/leitor, pois nessa dinâmica faz-se necessário que o sujeito aprenda a lidar e apropriar-se do conhecimento, implicando-se e exercendo a autonomia que é sempre preterida na maioria dos espaços de formação. Nos ambientes virtuais de aprendizagem, essa autonomia é essencial para que a mediação e a autoria aconteçam numa dinâmica colaborativa de construção do conhecimento e que o “novo” seja visto e compreendido.

Então, qual o fundamento epistemológico para o conceito de autoria que perpassa a Modernidade quando se descarta como fundamento válido a perspectiva estruturalista de base saussuriana ou como convergir o conceito de autoria, em sua dimensão mais radical e individualizante, com o paradigma do dialogismo bakhtiniano e da produção coletiva de sentidos preconizada pelo conceito vigotskiano de zona proximal? Esta parece ser a questão fundamental que, do ponto de vista da Filosofia da Linguagem e das Ciências da Cognição, emerge ao se discutir o problema da autoria.

A produção do conhecimento, sob o paradigma saussuriano, pode ser concebida como um processo, explicado a partir da premissa do binômio significado/significante, isto é, como o resultante de um movimento subjetivo, ou melhor, individual, organizado sob a estrutura cristalizada interna pela conformação estrutural da linguagem e manifestada externamente sob a forma de um reordenamento individual, subjetivo, único e, por conseguinte, inédito, pressupostos da autoria atual, das estruturas da linguagem na forma de uma produção autoral do conhecimento.

Posto que esse argumento tenha consistência interna – do ponto de vista da dialética interna do argumento – e adira à concepção hegeliana de subjetividade em voga na Contemporaneidade – ele fenece diante de uma perspectiva linguística que desmonte o esquema saussuriano binominal significado/significante, libertando o significante da ditadura de um significado estático e pré-definido, em si distinto de qualquer interferência dos sujeitos dialogantes e resgatando o sentido das amarras de uma linguagem como que cristalizada em seus próprios parâmetros semânticos. Bakthin e Vigotski oferecem um fundamento epistemológico dialógico e dialético que, ao passo que fundamenta uma compreensão de linguagem e de conhecimento sócio-interacionista, questionam os fundamentos mesmos dos parâmetros

contemporâneos de autoria e propriedade intelectual, conforme afirma Nonato (2006).

Assim, o problema da autoria parece ser bem posto ao modo de silogismo: se a linguagem é dialógica e a autoria se dá em um processo de mediação linguística (portanto dialógica), logo a autoria em si é um processo social, sendo um processo social não é estática, não é de alguém pura e simplesmente. Sob essa perspectiva sócio-interacionista e dialógica, todo o conhecimento se constrói em diálogo incessante entre os sujeitos do processo cognitivo, tornando o conceito de autoria stricto sensu inaplicável, permitindo apenas uma abordagem que considere a co-autoria como um processo possível, posto que toda produção do conhecimento é sempre um diálogo, sempre uma relação dialógica entre os sujeitos cognitivos e que são, a título de sua condição humana, sujeitos da linguagem consigo mesmo, com os outros sujeitos e o objeto do conhecimento. Assim, os sujeitos autores são smepre sujeitos co-autores entre si, dialogantes e cooperantes.

Para Bakhtin, o Dialogismo não é uma solução mais ou menos talhada para resolver uma questão dada da Filosofia da Linguagem, mas é uma episteme a partir da qual se estrutura a compreensão de linguagem e de mundo, pois já a ideia é “interindividual e intersubjetiva, a esfera da sua existência não é existência individual mas a comunicação dialogada entre as consciências” (BAKHTIN, 2002, p. 87). Tal radicalidade impõe a abordagem do problema da Dialogia sobre bases mais sólidas que a discussão circunstancial acerca de um processo cognitivo dado, sob condições mais ou menos definidas. O Dialogismo como abordagem epistemológica redefine os processos cognitivos sobre bases intersubjetivas, rejeitando no nascedouro a tese da razão iluminista individualista que fundamenta a Modernidade ao ser alçada à condição de novo absoluto, de poder de unificação (HABERMAS, 2002).

Na mesma linha, a perspectiva vigostskiana de que os processos cognitivos se desenvolvem a partir da interação do sujeito com outros sujeitos, com o meio e com as situações que circunstanciam a existência humana, não descarta, em nenhum momento, as bases intersubjetivas apontadas por Habermas (2002), pois a intersubjetividade em Vigostski aparece e está presente em todos os momentos em que o dialogismo é a base para compreensão de mundo a partir do

uso da linguagem (VIGOTSKI, 2003a), assim como não está distante da compreensão de Maturana e Varela (2007) quando afirmam que os processos cognitivos quando situados encaminham o aprender como conhecer e, isto, é inerente e próprio da participação e vivência de um sujeito aprendiz em situações e contextos diferenciados, portanto, interagindo com os outros e o meio também50. Nessa direção, o processo de aprendizagem está intimamente ligado à produção de sentido e posições de autoria.

Assim, a autonomia possibilita, nos processos formativos, a formação de sujeitos-autores atuantes, críticos, autônomos e com condições de intervir na sua própria formação, interpretando e analisando a realidade que os rodeia e autor- izando-se a partir do seu dizer/escrever. No entanto, para que de fato esse processo ocorra na formação, às práticas curriculares implementadas pelas instituições educacionais precisam desenvolver nos sujeitos alguns mecanismos que encaminhem a prática da autoria tais como: “a) mecanismos do domínio do processo discursivo, no qual ele se constitui autor; b) mecanismos do domínio dos processos textuais nos quais ele marca sua prática de autor” (ORLANDI, 2001, p. 80) e assim possibilitem o domínio do “falar” e do “escrever”, pois a aprendizagem como processo interacional, também é interdependente; sendo assim, o sujeito pode estabelecer relações entre os enunciados51, dialogando, interpretando, apresentando posições autoras.

Tais mecanismos no ambiente virtual de aprendizagem (AVA) são potencializados a partir de práticas curriculares desenvolvidas em recursos como o

wiki, o fórum de discussão, o chat, dentre outros, que de forma síncrona ou

assíncrona solicitam uma comunicação direta e transversal, de todos para todos, não minimizando o espaço para práticas autoritárias e reprodutivistas serem copiadas, uma vez que a exigência pela colaboração é permanente, além da necessidade de autor(iz)ação para que o sujeito produtor do conhecimento assuma seu lugar de produtor do que está sendo posto, deixando as marcas de sua identidade com suas experiências, errâncias e alternâncias apontadas no desenvolvimento da linguagem, dos discursos no processo comunicativo.

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Abordagem de cognição a partir do que os autores chamam de cognição situada, exposta de forma mais clara no capítulo anterior.

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O autor é o sujeito capaz de criar discursos com sentido, a partir da interrelação de palavras e teorias construídas no seu meio social e cultural, conforme afirma Bakhtin (2011). Por outro lado, percebemos que a partir de tais perspectivas o autor se constitui num momento subjetivo individual do sujeito-autor com seu outro eu social.

No entanto, acreditamos que o autor nunca exerce o processo de autoria sozinho, sempre está acompanhado das ideias, das histórias, dos silêncios, dos Outros e seus discursos, de enunciados outros, pois através da linguagem e da escrita o sujeito-autor exerce sua prática criadora inserido no contexto da criação que é social, histórico, cultural, intelectual, filosófico etc, e assim se autoriza junto, com e a partir do que o contexto lhe ofereceu como propulsores para a autoria. Dessa maneira, concordamos com Orlandi (2004) que “[...] o autor não realiza jamais o fechamento completo do texto, visto que aparecem [...] ao longo do texto pontos de deriva possíveis, oferecendo lugar à interpretação, ao equívoco, ao trabalho da história da língua” (p. 77) e nos ambientes virtuais de aprendizagem, principalmente nos fóruns de discussão esses pontos de deriva possíveis são as marcas deixadas no sentido de não fechar a discussão, de sempre estar expondo um ponto de vista na perspectiva de uma contribuição e não da formalização de uma teoria, no sentido de expor uma interpretação no processo de autoria coletiva.

Assim, a autoria é exercida sempre a partir da autor(iz)ação do eu em relação ao que posso contribuir com o(s) outro(s), com a construção do conhecimento no processo formativo e com a minha própria formação, pois ao se autorizar o sujeito escreve e inscreve sua “fala”, sua linguagem, traça um perfil próprio a partir do que diz, como diz e onde diz, apresentando sua identidade, que confunde-se com a formação em si, pois o “[...] sujeito está, de alguma forma, inscrito no texto que produz” (ORLANDI, 2001, p. 76), nos enunciados anunciados na representação comunicacional que oraliza com e no coletivo, no discurso.

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