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Autorrepresentações dos tradutores

Esses dois aspectos, fidelidade e invisibilidade, são importantes para a nossa discussão porque ainda estão arraigados no imaginário do tradutor e da sociedade ocidental sobre ele próprio e sobre a tradução — e, portanto, formam uma espécie de enquadre mental que orienta o modus operandi do tradutor (MOSSOP, 1983, p. 244). E o modelo vigente é, de modo geral, o das concepções cientificistas sobre as quais discorremos no primeiro capítulo.

Para Bohunovsky (2001, p. 51), os comentários de alguns tradutores sobre esses dois conceitos ―evidenciam uma visão já considerada ultrapassada por parte dos teóricos‖. De fato, a matéria da Folha de Pernambuco que citamos na introdução, por exemplo, traz trechos de entrevistas com os ganhadores do Prêmio Jabuti de Melhor Tradução de 2008. Algumas das ideias expressas pelos entrevistados foram ―O texto traduzido deve não apenas trazer o sentido original, mas soar análogo a ele‖; ―parte-se do ideal sentido por sentido‖; ―procura-se ter um conhecimento intenso da linguagem do autor‖; ―toda tradução depende do domínio de ambas as línguas‖. Bohunovsky encontrou uma visão semelhante numa matéria intitulada Traduzir, o caminho árduo de quem ama a palavra, que foi publicada no jornal O Estado de S. Paulo, em 2001. Nessa matéria, os tradutores também comentam sua atividade. Segundo ela (2001, p. 55-56), ―os tradutores parecem defender uma visão tradicional e essencialista em relação à fidelidade e ao papel do tradutor‖; de modo geral, eles se preocupam em ―transferir o sentido de cada palavra‖, ―valorizam a invisibilidade‖ e ―parecem aderir a uma concepção de tradução que corresponde muito mais àquela de teóricos como Nida ou Catford que àquela defendida por teóricos mais contemporâneos‖.

49 Essas declarações não estão muito longe do que Coracini (2005) encontrou em seu estudo sobre autorrepresentações dos tradutores50. Em artigo relatando seus resultados, Coracini diz que, entre as imagens mais recorrentes no discurso dos tradutores, está a da fidelidade (ao texto, ao autor, à sua intenção, à cultura, ao contexto, à língua-fonte). A autora (2005, p. 93) destaca ―a concepção de linguagem como transparente que vigora nesses excertos‖. É a crença de que, como diz Mittmann (2003, p. 59), ―se há regularidade na língua, se cada língua é uniforme, os sentidos se ‗ajeitam‘ de forma estável, pacífica, quando são transpostos de uma língua para outra‖, uma ilusão que vai de encontro à prática da tradução. Segundo Coracini (2005, p. 95), o problema está em tentar ser fiel à intenção do autor, mas não qualquer intenção inventada ou interpretada: a ―real‖ intenção, o que ele diz ao escrever — é a luta contra o sentido que teria sido determinado pelo autor, contido nas suas palavras (sentido imanente), um inimigo escorregadio que o tradutor persegue incansavelmente.

Discorrendo sobre o que ela chama de mito da transparência, essa postura subserviente e seu objetivo utópico, Folkart (1991, p. 370-371) conclui:

O tradutor se torna, assim, aquele que restitui (ou que deixa) o texto tal como o achou, aquele que não o toca, aquele que, sobretudo, não coloca nele nada de si mesmo […]. A tradução se torna uma espécie de não-interferência e transparência […]; a transparência também da operação tradutória, que se torna então um não-trabalho; a transparência do tradutor, enfim, sacerdos (ou sacerda ou ancilla) que cumpre sua vocação se fazendo ausente, que oferece sua subjetividade em holocausto sobre o altar do autor.51

Para Bohunovsky (2001, p. 59), o fato de os tradutores ainda se encontrarem no ―segundo plano‖ está estreitamente ligado à própria postura teórica deles quando tentam se adequar aos preceitos estabelecidos pela tradição essencialista. É como se houvesse algum tipo de técnica, estilo ou estratégia alcançada por uma opção consciente — uma espécie de Santo Graal do tradutor — que seria fórmula da fidelidade e da invisibilidade totais, ideia que desmistificamos neste trabalho.

De acordo com Coracini (2005, p. 94), os tradutores demonstraram uma consciência parcial da impossibilidade de ser fiel, mas misturada ao desejo (ideal) de fidelidade. Reconhecem também, alguns com tom de frustração, que a subjetividade, no sentido da marca pessoal que o tradutor imprime ao seu texto, é inevitável.

50

O corpus analisado por Coracini é composto da série de entrevistas publicadas no livro Conversas com Tradutores (2003), organizado por Ivone Benedetti e Adail Sobral.

51 Le traducteur devient ainsi celui qui restitue (ou qui laisse) le texte tel qu’il l’a trouvé, qui n’y touche pas, qui,

surtout, n’y met rien de lui-même. […] La traduction devient de la sorte non-intervention et transparence […] ; transparence de l’opération traduisante aussi, qui devient ainsi un non-travail ; transparence du traducteur, enfin,

sacerdos (ou sacerda ou ancilla) qui accomplit sa vocation en se faisant absence, qui offre sa subjectivité en

50 Constatando a influência da concepção cientificista na tradução, reiteramos a importância de apresentar argumentos contra tal visão, mesmo que outros autores já o tenham feito. É preciso compreender que, como diz Mittmann (1999, p. 223),

Não há uma via de mão única do autor para o leitor, com o tradutor servindo de instrumento neutro intermediário, capaz de apagar os obstáculos de comunicação, eliminando as diferenças entre os códigos, mas há produção de sentidos pelo autor, pelo tradutor, pelos leitores, ou ainda entre todos os participantes do processo. O discurso, então, não pode ser considerado como fechado sobre si mesmo, mas é necessário referi-lo aos sujeitos envolvidos no processo.

Como ficou claro até este ponto, as raízes dessa concepção do ato de traduzir que os tradutores se recusam a abandonar estão na visão de língua abstrata. Por isso, no próximo capítulo, avançamos à discussão sobre as concepções de língua que servem de base a essas teorias tradutórias. Depois, explicamos a teoria dialógica da linguagem — que entendemos ser mais adequada para descrever o funcionamento da língua viva, concreta, em discurso. Com base nela, apresentaremos um conceito sobre a natureza da tradução.

51 2 DIALOGISMO E TRADUÇÃO

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