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Avaliação na organização em ciclos

1 ORGANIZAÇÃO ESCOLAR DOS TEMPOS DE APRENDIZAGEM

1.2 Organização em ciclos

1.2.2 Avaliação na organização em ciclos

Uma organização que visa romper com um sistema tido como exclusivo tem de considerar as condições histórico-sociais que condicionam o processo pedagógico mediante um debate sobre os valores-base dos educadores para justificar muitas de suas atitudes e concepções, sobretudo as relativas à importância da avaliação. Tratar da avaliação mais atentamente nesse contexto significa mudar não os seus procedimentos, mas seus fundamentos, de modo a articulá-los com o desenvolvimento do conhecimento discente (ALAVARSE, 2002).

A avaliação tem sido preocupação central na escola organizada em ciclos, pois desafia dirigentes, professores, alunos, pais e sociedade. Tem de ser vista com atenção porque — como diz Freitas (2003) — os ciclos contrariam a lógica da avaliação na escola seriada: se na escola seriada ela é vista como meio de manter os melhores à frente dos mais fracos, na escola em ciclos ela passa a garantir ao professor uma visão dos ritmos de aprendizagem de cada aluno. Para Menga Lüdke (2001), na organização em ciclos tem de imperar a avaliação em sentido pleno: fornecedora de informações para facilitar o percurso do aluno, porque oferece uma base para se definir um tempo máximo possível para que a aprendizagem aconteça, o que não ocorre na escola seriada, que “[...] nega a capacidade de aprender de alguns seres humanos, ou em melhor hipótese, responsabiliza individualmente aqueles que não aprenderam no tempo previsto dentro do tempo estipulado” (FETZNER, 2009, p. 63).

Alavarse (2007) afirma que há uma resistência a mudanças na forma de avaliar, resultante da quase-identidade que, por tradição, criou-se entre avaliação e escolarização. Mais que isso, graças a uma preocupação técnico-instrumental, a avaliação passou a ser vista como objeto isento de interesses sociais. Por isso, a forma de se concebê-la e praticá-la é central numa mudança no fazer pedagógico. Como quer Freitas (2003, p. 63), a “[...] questão da avaliação e da reprovação tem de ser colocada no contexto das relações que ocorrem no interior da sala de aula, da escola e da sociedade”.

Todavia, a resistência não se resume à avaliação, pois há um discurso docente contrário aos ciclos cujo argumento central é:

[...] incapacidade [dos ciclos] de ensinar as disciplinas escolares tradicionais. Formuladores de políticas, pais, professores e estudantes têm apresentado os ciclos e a progressão continuada como responsável pela existência de crianças analfabetas na escola em séries mais altas a partir da 4ª série de primeiro grau, por exemplo. Contudo, os estudos divulgados pelo Sistema de Avaliação do Ensino Básico do MEC [Ministério da Educação] dão conta de que 51% dos estudantes matriculados nas séries iniciais não sabem ler adequadamente na 4ª série. Não se deve concluir que essa porcentagem de estudantes com dificuldades se deva exclusivamente aos ciclos. (FREITAS,2003, p. 67).

Além disso, a resistência se mostra na medida em que essa forma de organização escolar dá novas ordens às relações entre estudante e professor. Como diz Sandra Sousa (2007), os ciclos vieram para democratizar o ensino (respeitando as diferenças individuais) e reorganizar a escola (minando-se o papel da avaliação como sustentação — frágil — da educação formal), pois — diz Perrenoud (1999, p. 143) — basta modificar a avaliação “[...] para que uma idéia de escola se desfaça [...] mudar o modo de avaliar pode desestabilizar as práticas e o funcionamento da escola”. Assim, mais que universalizar a educação e garantir discursivamente a todos o direito à escola, é preciso que a escola se abra a todos ao abrir suas portas. Ainda segundo Perrenoud (2001), os ciclos correspondem à preocupação de formar o maior número possível de crianças e adolescentes para uma sociedade complexa, planetária e móvel, instalada num mundo marcado pelo desemprego, por evoluções tecnológicas que logo ficam obsoletas, por conflitos culturais, ideológicos e confessionais.

Afora essa resistência, o senso comum vê a organização escolar em ciclos como promoção automática, e essa visão — diz Roberta Diniz (2007) — leva a uma crítica negativa. Em geral, na visão de alguns professores, pais e alunos, a falta de obstáculos (isto é, de reprovação ou retenção no fim do ano letivo) desvaloriza a escola, o trabalho docente e fornece diplomas a pessoas despreparadas. Assim, ainda segundo essa autora, o que deveria ser progressão continuada se tornou promoção automática.

Essa associação entre ciclo, promoção automática e educação de pouca qualidade foi construída no imaginário sociocultural, mas os dados da realidade contestam tal entendimento. Assim, convém diferenciar promoção automática de progressão continuada, à luz de Mainardes (2001). Segundo ele, a progressão continuada não prejudica a avaliação na aprendizagem do aluno, pois prevê estudos de recuperação para os alunos com defasagem de aprendizagem e sua retenção ao fim do ciclo caso não atinjam níveis desejados de aprendizagem. A promoção automática não se compromete com a aprendizagem, e sim com o tempo de permanência do aluno na escola.

Nesse sentido, quando o ensino se baseia na promoção automática, o aluno permanece na escola durante o tempo mínimo previsto. Por exemplo, no caso do Ensino Fundamental, o tempo é de nove anos. A seqüência dos estudos dos alunos, dentro dos nove anos, independe dos seus resultados nas avaliações, nos estudos de recuperação e, em geral, independe do compromisso com a educação. Ele poderia freqüentar a escola por nove anos. É fato que a garantia da aprovação pode gerar um desestímulo, tanto a professores, quanto a alunos, e, assim, colocar em xeque a qualidade do ensino e a da instituição. (DINIZ,2007, p. 44).

Para Diniz (2007), a progressão continuada teria de manter avaliações e estudos de recuperação para suprir defasagens, pois isso possibilitaria respeitar o tempo de

desenvolvimento do aluno no ciclo e conforme os tempos de cada processo de aprendizagem. Caso o aluno não tenha amadurecimento nem adquirido as habilidades propostas no ciclo, poderia permanecer na etapa mais um ano.

A essa associação de ciclos com promoção automática e progressão continuada, acrescenta-se um olhar que vê a correção de fluxo e a organização da escolaridade em ciclos como modelos economicistas para se obterem produtividade e eficiência (MAINARDES, 2001). Se a passagem de uma série à outra descongestiona o sistema educativo e reduz gastos, a organização por ciclos (pensadas no conjunto das políticas públicas) vem facilitar o fluxo escolar, acabar com a repetência (logo, com os gastos com a educação) e melhorar os índices estatísticos cobrados pelos órgãos de fomento. Por isso, Maria A. Setúbal (2000, p. 17) afirma que,

[...] se programas de aceleração são fundamentais para romper o ciclo da repetência, eles por si sós não têm o alcance de reverter o quadro do fracasso, em direção a um projeto democrático de sistema educacional, se não forem acompanhados de outras políticas que busquem enfocar não apenas a avaliação e o descongestionamento do fluxo escolar, mas o repensar da desseriação em termos de continuidade da aprendizagem, de conteúdos, habilidades, valores e competências que a sociedade considera relevantes que os jovens detenham ao final dos ciclos de ensino.

Para João Pooli e Márcia Costa (2004), algumas das intenções que estruturam a lógica de implantação dos ciclos são intenções políticas de governo que mostram pouco da realidade em que deveriam se fundar as práticas pedagógicas. Assim, essas mudanças, ora vistas pelo viés pedagógico, ora pelo viés político, confundem o entendimento de como deve ser a prática docente do professor na organização por ciclos. Conforme Fetzner (2007, p.147)

Do ponto de vista político, os ciclos afirmam que todos têm direito à aprendizagem escolar, e que esta é responsabilidade da escola. [...] Do ponto de vista pedagógico, segundo as perspectivas que orientam as descobertas do último século na área educacional, a aprendizagem é possível a todos e se realiza um processo contínuo, mediado pelos coletivos dos quais fazemos parte e individualizado no caminhar de cada aprendiz.

Também cabe dizer que, das numerosas políticas implantadas no Brasil para se garantir o direito a uma educação para todos (democratizar o ensino), os ciclos são mais uma, que ora se reveste de discurso acadêmico — alterar os tempos e espaços escolares —, ora de discurso político — acabar com a repetência, logo melhorar o fluxo escolar pra diminuir gastos públicos com a educação. Com efeito, os ciclos de que se trata aqui derivam de propostas acadêmicas que, uma vez implantadas na escola, encontram problemas para se concretizarem, ora por não ter apoio docente — ponto-chave para o êxito dessa proposta —, ora por serem políticas implantadas de forma descentralizada — só para aumentar o fluxo

escolar. Como a escola não consegue acompanhar esse processo, os professores ora não aceitam as mudanças, ora não as incorporam como algo significativo para transformarem a conduta docente/discente nem a prática pedagógica no sistema educacional.

Assim, se não se duvida de certos objetivos das políticas públicas (diminuir gastos públicos com a educação), também não se duvida de que, às vezes, esse discurso tem tom pedagógico (flexibilizar espaços e tempos escolares) e de que as mudanças são implantadas vertical e autoritariamente no sistema educacional, sem considerar o entendimento que o professor tem delas. O resultado prático inclui só o descongestinamento do sistema escolar (como na seriação) e o descontentamento docente, pois os professores não conseguem, nem de longe, fazer os alunos aprenderem mais e com mais significação para deles — objetivo central da organização escolar por ciclos.