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No romance está representada a presença soviética em Angola que ocorreu no período da Guerra Fria. Aparecem os militares soviéticos utilizando seus uniformes pesados em contraste com a temperatura elevada de Luanda. O militar soviético CamaradaBotardov é amigo da AvóAgnette, e recebeu esse apelido das crianças, pois sempre dizia “bótard” para cumprimentar as pessoas. O menino explica que “nós lhe demos esse nome por causa do modo como ele dizia, quase a falar soviético ‘bótard’, mesmo que fosse de manhã cedo ou à noite já bem noitinha. Nós imitávamos para depois rirmos” (ONDJAKI, 2008, p. 15). O brincar com a maneira de o soviético falar português faz parte de uma característica bastante comum ao universo infantil. O espaço lúdico construído pelas personagens crianças apresentado nas brincadeiras com o CamaradaBotardov dão tonalidade divertida ao romance. As crianças e suas gargalhadas apresentadas por Ondjaki podem ser compreendidas através do encanto que as imitações linguísticas das crianças trazem para a narrativa.

As crianças aproveitavam as diferenças linguísticas da fala do CamaradaBotardov para fazer muitas brincadeiras, mas o menino apresenta carinho e empatia pelo personagem. Para descrever o soviético, o protagonista tem uma percepção infantil e terna:

Tinha marcas amarrotadas ao lado dos olhos e devia ser antigo aquele camarada, os dentes também não tinham boa cor, só os olhos dele, todas as crianças sabiam disso, só os olhos dele eram bonitos dum azul mais claro que o do céu, não sabemos se lá na União Soviética todos têm os olhos assim ou se é coisa familiar mesmo (ONDJAKI, 2008, p. 28).

A narrativa vai aos poucos apresentando a empatia do menino com o CamaradaBotardov, observando as dificuldades do soviético em estar longe da família e procurando a amizade da AvóAgnette. A relação de afetos entre o soviético, as avós e as crianças estará presente na narrativa, em especial na participação do soviético no plano das crianças em explodir o mausoléu.

O relacionamento do menino protagonista com o CamaradaBotardov é o responsável pelas percepções juvenis acerca do outro. Estabelece-se nesta relação um entendimento, da parte do menino, da existência de um país culturalmente bastante diverso de Angola. As crianças costumam dar muitas gargalhadas da maneira como os soviéticos se vestem, do português

falado com acento russo e da “catinga”60 que exalam em função do forte

calor de Luanda.

O CamaradaBotardov auxilia as crianças no seu plano, também motivado pelo desejo de preservar a memória do tempo passado em Luanda. Para além, o soviético, sentindo saudade da sua terra, após a explosão regressa ao seu país, família e amigos no “tão-longe”.

Em AvóDezanove o plano para explosão do mausoléu, arquitetado pelas crianças Charlita, Pi e pelo narrador-menino trata-se de uma operação lúdica com relação à violência de Estado. Neste ponto há uma crítica ao modelo estatal que estava sendo desenvolvido, com as suas medidas autoritárias. A construção do mausoléu para o presidente morto relaciona-se com o modelo de homenagens feitas pelos governos soviético e que produziram um abalo na vida dos moradores da Praia do Bispo.

O governo angolano no primeiro período pós-independência era administrado pelo partido político MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola) de inspiração marxista-lenilista, apoiado pelo governo de Cuba e da União Soviética. Quando as crianças descobrem nas páginas do JornalDeAngola uma notícia sobre o novo local destinado para o Mausoléu do presidente Agostinho Neto, revelando que nenhuma das casas do bairro estão incluídas, eles ficam assustados. No jornal eles vêm um desenho do novo local com os

planos do governo para toda a área do Mausoléu, com pequenas figuras que tinham símbolos onde iam ser parques novos, zona com baloiços, uma marginal nova perto do mar, muito espaço com relva de passear cães a fazer cocó em todo o lado, escorregas, fontes de água, árvores já grandes que eu não sei como é que iam crescer tão rápido e um montão de gente para entrar e ver o corpo do camarada presidente embalsamado com as técnicas dos soviéticos (ONDJAKI, 2008, p. 106).

O protagonista, duvidando da notícia do jornal, pergunta ao amigo Pi se ele acha que a notícia é verdadeira, e seu amigo responde: “Achas que o JornalDeAngola anda mesmo a pôr notícias de mentira? Seu burro, tudo o que sai no JornalDeAngola são verdades que o camarada presidente é que autoriza a saírem lá” (ONDJAKI, 2008, p. 107). O JornalDeAngola aparece representado ironicamente no romance e dá a tonalidade política presente

60 Ondjaki muitas vezes utiliza a palavra catinga para referir-se ao mau cheiro que as pessoas exalavam em função do calor de Luanda, o que resulta em situações engraçadas. A catinga funciona como uma marca de memória sensorial, juntamente com outros cheiros e sabores que também estão presentes na narrativa de AvóDezanove e o segredo do soviético.

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nos meios de comunicação no período socialista angolano. Criticando a falta de liberdade oferecida pelo governo angolano, Ondjaki mostra ironicamente a influência que o Estado exercia no período pós-independência com relação às informações veiculadas para a população.

A narrativa de Ondjaki em AvóDezanove apresenta situações em que o poder do Estado em Angola caracteriza-se por um projeto de caráter “modernizante”, inspirado nos moldes soviéticos. A construção do mausoléu para abrigar o corpo do ex-presidente Agostinho Neto, “que andava estes anos todos bem embalsamado por uns soviéticos craques nessa arte de manter uma pessoa ainda com bom aspecto de se olhar” (ONDJAKI, 2008, p. 11), revela o conflito gerado entre o Estado e o povo. Enquanto a população sente-se oprimida pela construção de um mausoléu no bairro onde mora, o governo deseja prestar homenagem ao presidente morto, obrigando-a a se mudar.