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TRAMAS CIDADES ESCRITURAIS

55 B LANCHOT , 2010 56 Ibid.

63 da filosofia de academia. Esse pensador intempestivo – usando uma expressão que lhe é atribuída – aposta na força dos aforismos, num pensamento nômade, sem morada certa, que não se justapõe à palavra praticada pela universidade. Nietzsche, que fora professor na Universidade de Basiléia por quase dez anos, não suportou essa condição institucional por muito tempo. Deixando a vida de professor e as exigências implicadas nesse ofício, entregou-se à peregrinação errante, lançou-se numa escrita estilhaçada, chafurdou-se na densidade de um pensamento por aforismos, irremediavelmente descontínuo e potente.

Com uma fina perspicácia, Blanchot57 nos diz que é possível ler Nietzsche com uma certa linearidade, com uma exigência de continuidade do pensamento filosófico, ligando-o aos grandes problemas que compunham o solo da filosofia moderna. Não obstante, Nietzsche não se reduz a essa forma, a essa modulação do pensamento e da escrita que se atrela à continuidade e à unidade. Na escrita desse pensador do Eterno Retorno, faz-se presente, obstinadamente, uma fragmentação, uma pluralidade que faz titubear a própria filosofia, erigida sobre o firme chão do Uno, do Mesmo e da linearidade. Essa fragmentação nos aponta a presença da diferença na escrita de Nietzsche; diferença que se põe enquanto jogo das relações que rege a escrita, arranjo heterogêneo que traceja as ranhuras, rupturas e interrupções do artifício da grafia. Com uma escrita petulante, que incita os mais diversos incômodos, Nietzsche grita, aos sussurros, para um tempo que ainda viria: “[...] minha ambição é dizer em dez frases o que qualquer outro diz em um livro – o que qualquer outro não diz em um livro...”58.

Numa conversa infinita59, com uma voz fissurada – falada por personagens que conversam às tantas – Blanchot nos diz que mesmo que tentemos remeter os fragmentos escritos por Nietzsche a uma suposta integralidade de sua obra, isso não seria possível, a menos que se faça um livro que não foi escrito pelo filósofo, algo semelhante ao que Elisabeth Förster- Nietzsche, sua irmã, fez ao publicar, postumamente, uma série de anotações, fragmentos, passagens e trechos – alterados pelos editores – como uma obra

57 BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita II - A experiência limite. Trad. João Moura Jr. São Paulo: Escuta. 2007.

58 NIETZSCHE, Friedrich. O crepúsculo dos ídolos, ou, como se filosofa com o martelo. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das letras, 2006, § 51, p. 100.

59 L’Entretien infini, que no Brasil foi publicado em três partes sob o título de A conversa

infinita, constitui-se por diálogos variantes entre duas vozes que percorrem questões

filosóficas e literárias, levando a escrita para um limiar de indiscernibilidade, fazendo-a se abrir para uma diferença que não se sintetiza e que repele, de certa forma, a possibilidade de trancafiar o estilo em uma única forma.

64 sistematizada, sob o título de Vontade de Potência. Blanchot60 assinala que o pensamento de Nietzsche coloca-se para além da concepção de discurso integral, de sistema filosófico, recusa essa forma homogênea que marca a filosofia moderna, abrindo-se para uma linguagem que não é a do todo, da unidade, mas sim, uma escrita da pluralidade e do fragmento. Em Nietzsche, pulula um pensamento que se deixa levar pelo ilimitado da diferença, e uma escrita não dialética que não se contenta com a ideia de síntese da oposição dos contrários.

“Desconfio de todos os sistematizadores e os evito. A vontade de sistema é uma falta de retidão”61. Esse aforismo – disparado por entre as máximas e flechas do Crepúsculo dos ídolos, livro de uma filosofia forjada a golpes de martelo – recusa o sistema, desvia-se do pensamento contínuo e unitário aprontado na tradição filosófica ocidental moderna. A recusa à vontade de sistema nos lança no abismo sempre inacabado dos fragmentos, na superfície acidentada de uma escrita lascada, de um pensamento feito na violência das marteladas, necessárias para despedaçar certos empecilhos. Largar a possibilidade de fazer sistemas nos força a abandonar também o modelo. Não se trata de colocar o pensamento descontínuo e a escrita fragmentada como modelos a serem copiados, reproduzidos sabe-se lá onde. Esse modo de escrita afiado por Nietzsche e por Blanchot não pretende tornar-se um molde ideal que determinará as escritas por vir. A força do fragmento se coloca justamente na sua abertura assistemática, nos traços parciais que o constitui, na tendência à dispersão que o empurra para fora de todo fechamento teórico.

A escrita contínua – que tenta suprir as interrupções, as rupturas inexplicáveis, as pausas demasiado assustadoras, os abismos entre trechos, as distâncias entre palavras – emerge para responder a exigências transcendentes, deitando seu pescoço ao cabresto triangular da lógica, fazendo-se refém da universidade moderna e da aspiração unitária e homogênea da dialética. Será que ainda é preciso manter a escrita e o pensamento sob o jugo dessa continuidade formal? Não seria justamente pela descontinuidade, pela força dos estilhaços, que se torna possível inventar outras maneiras de pensamento, numa escrita transpassada pela diferença e por uma fragmentada experiência urbana?

A conversa infinita dos personagens meio cansados e silenciosos – que

mesmo assim insistem em trocar palavras no prumo da conversação – instiga

60 BLANCHOT, 2007.

65 uma escrita feita de multiplicidade, uma palavra plural que não tende para a homogeneidade, que se desvia das tentativas de unificação e de superação da diferença. Essa palavra plural, escrita da multiplicidade, afirma insistentemente a interrupção e a ruptura como forças, qualidades potentes da escrita que se livra do enfado mortificante da univocidade. Nessa perspectiva, a descontinuidade e a fragmentaridade precisam ser tomadas como potências da escrita, e não como defeitos que nos distanciariam cada vez mais da coesão da verdade. Diante dessa palavra plural, resta-nos perguntar: estamos riscando uma escrita com caráter homogêneo, que deseja encontrar uma unidade essencial independentemente da condição de fragmentaridade da experiência urbana? Ou, em outra direção, tendemos para uma escrita povoada por rupturas, descontinuidades e diferenças, atravessada pela experiência do fora, por esse vazio de presença perspicaz que arrasta a linguagem para regiões de indizibilidade e de estranhamento? O estilo estilhaçado, sem autor – que rabisca as linhas labirínticas do próprio forasteiro –, escreve com murmúrios heterogêneos do cotidiano, transpassando-se por vozes taciturnas e gritos ardilosos que urram nos veios escancarados da cidade escritural, desse cruzamento infinito de corpos imersos em tempos díspares. Esse estilo desenrola-se como uma espécie de fala errante que ressoa fora de si, ecoando distante da interioridade de uma fala íntima62.

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O fora enquanto essa zona vazia e murmurante que arrasta a escrita, atraindo-a para o desconhecido, coloca-se com força no traçado da questão, no delineamento da pergunta, na obstinação da interrogação. A escrita descontínua da qual nos fala os personagens anônimos escritos por Blanchot63 encontra na questão uma potência perspicaz que leva a ruptura, o salto, cada vez mais longe, abrindo-se para um horizonte que não se encerra pelas respostas. A insistência da pergunta, a indiscrição de sua irrupção, não é apaziguada pela resposta que

62 “Essa fala é essencialmente errante, estando sempre fora de si. Ela designa o de fora infinitamente distendido que substituí a intimidade da fala. Assemelha-se ao eco, quando o eco não diz apenas em voz alta o que é primeiramente murmurado mas confunde-se com a imensidão sussurrante, é o silêncio convertido em espaço repercutente, o lado de fora de toda a fala” (BLANCHOT, 2011a, pp. 47-48)

66 lhe responde, apesar de, na pergunta, haver uma lacuna que clama por um preenchimento. A pergunta distende essa estranha lacuna, que poderá ser habitada por uma resposta – por afirmações e negações – mas que, mesmo assim, permanece inacabada, murmurando outras aberturas que podem fazer aumentar vertiginosamente o buraco, essa exterioridade da escrita que a atrai para uma zona de indeterminação.

A pergunta seria apenas um simples momento ligeiro que precede a resposta em sua altivez? Tratar-se-ia de um prelúdio desimportante que prepara o terreno para a suposta gargalhada final da resposta? A interrogação aloja-se numa posição da escrita que escapa à negação e à afirmação, abrindo um oceano de descontinuidades, levando-nos à insistência inacabada do próprio movimento escritural, que se compõe com traços de ruptura, no alento de fragmentos heterogêneos que proliferam nas fendas da pergunta. A presença do questionamento incita uma ruptura, às vezes bem imperceptível, que introduz uma certa descontinuidade na escrita, mesmo quando uma resposta consistente tenta tapar a fissura aberta no instante da pergunta. Há uma força própria à interrogação, diferente da negação e da afirmação, que faz titubear o pensamento, interrompendo, mesmo que rapidamente, a linearidade da escrita com desvios variados64. Uma escrita inventada nos cruzamentos com a experiência urbana – nas peripécias desse fora que engendra anotações e narrativas – encharca-se de interrogações sem respostas, que seguem perguntando através de fragmentos dispersos nos diferentes tempos e modos de escrita.

Escrever é um movimento muito diferente do olhar, como nos conta Blanchot65, indicando que a própria escrita – não apenas a pergunta – é um desvio, uma experiência de dilaceramento, um corte, uma curva. Nessa escrita ligada ao movimento de busca, procura indefinida que anima os traçados, a palavra volta-se para aquilo que desvia e que se afasta, tende para um abismo atraente, livrando-se, mesmo que momentânea e parcialmente, da função de representar e de dar sentido. Essa escrita desviante, atraída pelas curvas do fora, é inútil, não mais tem finalidades a alcançar. Trata-se de uma experiência de

64 “Questionar é jogar-se na questão. A questão é esse convite ao salto, que não se detém num resultado. É necessário um espaço livre para saltar, é necessário um solo firme, é preciso um poder que, a partir da imobilidade segura, transforme o movimento em salto. O salto, a partir e fora de qualquer firmeza, é a liberdade de questionar. Mas, na profundidade da fuga em que, questionando, fugimos, nada há de seguro, nada de firme” (BLANCHOT,

2010, p. 53, grifo do autor). 65 Ibid.

67 criação estética da escrita que só pode se efetuar quando escrever não mais se submete à pretensão de representar o mundo e de fornecer significados.

Estávamos diante de um caminho bifurcado da linguagem, ou, antes, víamos apenas essa bifurcação: por um lado a linguagem se colocava como representação de pensamentos, acontecimentos, vontades, práticas, realidades; por outro, ela fornecia sentidos determinados e os recebia. Entretanto, a escrita da qual Blanchot66 fala, recusa esses dois caminhos. Não se trata mais de representar o mundo, os homens, as relações, as coisas, e muito menos, de fornecer significados. A escrita torna-se, e desde muito, a plena interrupção, o movimento que se volta para a descontinuidade, ato de composição de um mundo fragmentário que não se deixa confundir com as pretensões transcendentes do discurso verdadeiro.

A partir do movimento de autonomia, em relação à comunicação, à representação e ao significado, foi possível à escrita se articular ao seu fora. A exterioridade que fazia a escrita submeter-se unicamente à comunicação e à representação colocava-se enquanto uma exterioridade utilitária. Por outro lado, essa exterioridade do pensamento da qual nos fala Blanchot e Foucault não tem uma finalidade; trata-se de um fora não utilitário, que intensifica a possibilidade de criação estética da escrita. Assim, não falamos de qualquer fora, já que as finalidades que remetiam a escrita à representação também eram exteriores ao ato escritural. Aquilo que Blanchot e Foucault pensam enquanto fora seria um vazio de indizibilidade, uma zona murmurante – e ao mesmo tempo de um silêncio denso – que arrasta a escrita para um além de si, para esse limiar de nascimento e de morte das palavras.

Se o conceito de fora não se fez muito claro, se não foi muito bem precisado, é por que se trata de um conceito obscuro, cuja visibilidade sempre escorre para zonas opacas, não totalmente pensadas. Não seria possível representar esse conceito com uma linguagem, que por sua vez, fosse contínua, expositiva, homogênea e unificada, visto que o fora se constituir como algo que, no limite, volta-se ao exterior da própria linguagem. Tentando nos fazer cúmplices dos traços que compõem esse conceito múltiplo – tentativa demasiado precária –, acabamos pendendo para uma escrita também fragmentada, repleta de rupturas e fissuras, que, pelo menos, se alia a esse

68 outro modo de escrever, insistindo num pensamento descontínuo voltado não para a eliminação da diferença, mas sim, para sua afirmação.

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A experiência urbana a partir da qual se escrevem narrativas tortuosas, anotações dispersas, pequenos ensaios e muitas perguntas, dispõe-se na radicalidade de um fora, de uma zona móvel de acontecimentos que fulguram por instantes e depois caem no mar incontido do esquecimento cotidiano. Essa experiência se abre como limiar de nascimento da escrita, abismo do qual jorram as muitas notações, região obscura de onde emergem blocos e blocos narrativos que insculpem uma frágil, heterogênea e inacabada cidade escritural. O próprio forasteiro, enquanto personagem da escrita, constitui-se da experiência urbana, brota dessa superfície sem fundo que é exterior ao texto, mas que, simultaneamente, é condição mais do que necessária para que as palavras possam se combinar em múltiplos jogos de grafia. Exterioridade não transcendente: seria possível tal pensamento? O esquecimento cotidiano dispersa- se em pequenas poças, arrasta imagens, gestos, palavras, desejos, violências, gritos, encontros e temores para a morte de todo dia, para o desaparecimento banal. Entretanto, é justamente dessas pequenas poças de esquecimentos, espalhadas à toa pela cidade, que a escrita se traça e se troça, nascida de vestígios e resíduos dos acontecimentos, riscada insistentemente por meio desse

fora que também a arrasta para um apagamento vindouro.

O forasteiro, que encarna o conceito pulsante e estilhaçado de fora, torna- se condição para a escrita. É preciso estar fora para escrever a experiência, urge simular-se forasteiro para fazer as experiências com o cotidiano da cidade virarem escritas. Pelo fora, através dessa condição de forasteiro, faz-se possível uma escrita da experiência que se transfigura em experiência da escrita. Nessa zona de cruzamento, as escritas e a própria experiência urbana se constituem, sempre com traços inacabados e fragmentários, à maneira do rascunho. A condição de forasteiro cria-se, delineando um corpo frágil que deriva pelas densidades da cidade, pelos espaços praticados, pelos tempos engendrados e pelos movimentos que se disparam. Essas experiências abrem horizontes de escrita, emprenham o forasteiro de rabiscos, penetram o pequeno caderno com

69 notas avulsas, incitam narrativas parcas entalhadas a duras penas durante o retinir exasperado das teclas do laptop. É pelo forasteiro – por esse rascunho de uma vida, multidão de vozes, vazios e estranhezas – que a escrita toma corpo, vai emergindo em blocos heterogêneos e descontínuos de uma memória do presente. O forasteiro, personagem real o qual nunca tocamos em absoluto, é quem avia a escrita, fazendo-se superfície que fornece um precário suporte para o ato de escrever. No entanto, trata-se de um suporte extremamente fino, de uma espessura quase inexistente, transparente e transpassada, que por vezes se estilhaça nas curvas, saltos, descidas, subidas, acelerações, vagarezas, tremores e paradas da própria escrita. No instante confuso do estilhaçamento, a escrita desliza, insuportável, para um fora mais longínquo e mais desconhecido ainda.

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