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b - Territorialidade Colonial

No documento http://www.livrosgratis.com.br (páginas 126-130)

Por fim, cabe ressaltar que, na definição dos povos originários, o conjunto desses procedimentos, hábitos e costumes, levava a um regime harmonizado cujo resultado final era o suma jakaña61, ou o bem-viver. Nas palavras de Choque e Mamani:

Como se atinge o bem viver, ou suma jakaña? Através da satisfação da alimentação, através do controle da produção. O ayllu regula com rigor o sistema de produção agropecuário e de outros recursos, e as decisões tomadas pelas autoridades logo da consulta a seu povo estão revestidas de celeridade. Com o logro de uma boa produção se consegue, por sua vez, (esse que é) um dos objetivos fundamentais (2003, p.166).62

“confusão” com o retorno de Viracocha, uma divindade civilizadora que era, assim como os espanhóis, branca e usava barba, ou mesmo a eficiente estratégia espanhola de se beneficiar dos conflitos internos vividos pelo Império Inca naquele momento64 (Klein: 1991;

Ribeiro:1977).

O que para nós é importante ressaltar, dentro dos objetivos deste trabalho, é a utilização pelos espanhóis das mesmas instituições e práticas vigentes sob a organização indígena, agora como ferramentas utilizadas para a conquista. Se a imposição do domínio dos povos originários sobre o espaço andino, configurando-o como território, se deu através da utilização de um sistema de organização territorial, político e social baseado no ayllu, ao qual correspondiam sistemas próprios de autoridades e de manejo de recursos, e aos quais correspondiam, em última instância, uma filosofia baseada em conceitos como complementaridade e dualidade, a chegada dos espanhóis rompe com toda essa lógica espacial de duas formas: ora transformando, para utilização em proveito próprio, a racionalidade inerente a aspectos da vida indígena, ora impondo toda uma nova racionalidade que subjuga e busca extinguir as marcas deixadas pelas comunidades originárias sobre o espaço andino. Como afirma Haesbaert (2004):

o Estado inicialmente se constitui pela desterritorialização das comunidades pré-capitalistas, destruindo seus agenciamentos, seus territórios, e substitui o princípio da imanência (a terra como corpo pleno onde as sociedades pré-capitalistas se territorializam) pelo princípio da transcendência, onde o Déspota Divino assume todos os princípios de organização do socius” (p. 195).

Encomienda: O primeiro passo para a imposição da conquista foi a desestruturação das unidades territoriais, os ayllus, para imposição de uma nova forma de divisão, que se deu com a imposição da encomienda. Segundo Ribeiro (1977):

A encomienda consistia na atribuição de magotes de índios ou de comunidades inteiras a senhorios espanhóis que passavam a dominar suas terras e usufruir do produto de seu trabalho, em compensação pelos deveres que assumiam com a coroa e com a Igreja de convertê-los ao catolicismo, alimentá-los e assisti-los (p.159).

64 O Império se encontrava dividido pela disputa entre os irmãos Huascar e Atahualpa, que reclamavam para si o título de Qhapaq, autoridade máxima do Império (Klein: 1991).

Os concessionários dessa nova divisão territorial, chamados encomenderos, recebiam assim não só as terras, mas os habitantes que estavam sobre elas, sobre as quais, em troca de algumas poucas obrigações que se destinavam principalmente a aplacar a consciência católica em relação aos índios, podiam agora usufruir da mão-de-obra, além de aplicar impostos.

A encomienda implica, assim, em duas conseqüências. Em primeiro lugar, na desestruturação espacial, pois todas as formas de organização do espaço impostas desde a chegada dos espanhóis, começando pela encomienda, projetavam-se sobre a lógica espacial andina, ignorando-a. Os ayllus, que eram espaços descontínuos, se viram assim fragmentados pela imposição espanhola, que rompia com as lógicas de formação das comunidades indígenas. Em segundo lugar, a encomienda impunha consigo a aculturação dos povos originários, tanto pela questão religiosa, obrigação do encomendero, quanto pela introdução do indígena numa lógica produtiva mercantil, em razão da necessidade de dinheiro para pagamento dos tributos aos quais se viram, repentinamente, obrigados.

A contínua imposição da racionalidade espanhola sobre o espaço andino derivou no surgimento das haciendas e chacras, que além das conseqüências já mencionadas, também colaboravam para o surgimento de uma casta dominante local, uma espécie de novos-ricos formados por espanhóis e seus descendentes, que não faziam parte da nobreza.

Práticas da territorialidade: A destruição dos ayllus se intensificou a partir da cooptação do sistema da mita. O sistema de prestação de serviços compulsórios transformou-se na forma de arregimentar mão-de-obra para o trabalho nas minas, em especial para a região de Potosí. Assim, o serviço e os bens que antes as comunidades destinavam aos Incas, eram agora gozados pelos espanhóis.

As condições de trabalho impostas nas minas de Potosí aceleraram a desintegração dos ayllus: muitos abandonavam as comunidades para escapar do recrutamento forçado, tornando-se trabalhadores que vagavam em busca de lugar nas haciendas. Dessa forma também o yanaconato via seu perfil transfigurado. Muitos desses migrantes tornavam-se pongos: moravam nas haciendas, mas na qualidade prática de propriedade, e não de proprietários, prestando serviços aos senhores de terra em troca da possibilidade de fixação65.

Com a imposição de uma nova lógica de ocupação do espaço, também os sistemas de autoridades se viram alterados. Se antes a designação de um mallku obedecia a regras e a assembléias comunais, agora a definição dessas lideranças era de extrema importância para os espanhóis, que passaram a designar os novos líderes das comunidades indígenas, passando a denominá-los caciques. Estes, por sua vez, como lideranças colaboracionistas, passaram a exercer sua influência no sentido de aumentar o poder particular, intensificando a fragmentação dos antigos ayllus e buscando projetar sua liderança sobre regiões mais abrangentes, e inserindo um componente de corrupção ao qual não se estava familiarizado. Mas, ainda assim, careciam de maior reconhecimento de suas comunidades, que ainda guardavam respeito aos antigos mallkus, fazendo com que fosse principalmente a ligação com os espanhóis a garantia do poder dos caciques.

Cabe, também, ressaltar o papel da evangelização dos indígenas como componente do processo de aculturação a que foram submetidos. A partir da imposição das encomiendas, cada vez mais se impunha a religião católica, empurrando os ritos andinos à clandestinidade. Esse processo somava-se ao processo maior de eliminar as marcas, materiais e simbólicas, deixadas pelos originários no espaço andino. A estratégia utilizada pelos espanhóis foi a de construir centros religiosos ao longo do altiplano, preferencialmente em locais já considerados sagrados ou de culto pelos indígenas, de forma a sobrepor a nova religião. Assim, Igrejas e templos foram erguidos em locais ermos do altiplano andino. Esse processo fica caracterizado em sua plenitude na construção de um Santuário à Virgem da Candelária na localidade de Copacabana, às margens do lago Titicaca. Nessa localidade, assim como em duas ilhas do mítico lago, estavam localizados os centros

65 O pongueaje foi extinto formalmente apenas em 1943, no governo de Villarroel (Ayerbe: 2002).

religiosos dedicados ao Sol e à Lua, divindades centrais na religiosidade dos povos andinos, e por isso foi considerado um ponto crucial para irradiar a evangelização de aymaras e quechuas de toda a região.

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