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BABY Dirceu Borges

No documento magazine de ficção científica 02.pdf (páginas 132-136)

Sou uma pessoa simples. Sem muitas letras. Acho que por causa disto sinto tanto apego pelas coisas de Deus, de jeito que são, sem pensar no carreador complicado que tiveram que percorrer para vir a ser. Gostei, amei mesmo de amor Baby, assim que a vi. Chorava triste e forte no deso- lado da invernada. Deus meu! Como pôde aquela criatura surgir de apare- cida daquele modo, em pleno sol queimante, longe de gente, de casa, de povoado? Nada a vestia, nem um trapo, nuazinha como se naquela hora tivesse sido parida ou desabrochada. Nem me lembrei mais da rês alon- gada que campeava. Envolvi com cuidado muito, as mãos grosseiras, mal tocando, aquele corpinho rosado e quente. Ela me notou, parou o choro, roçou o narizinho com o punho e dormiu.

— Que flor de lindeza! — assim disse Marta, minha mulher, na mesma hora que já providenciava banho, roupinha limpa das crianças, bem me parecendo não acreditar piamente na estória que lhe contei de onde achado. E minha família, com quatro filhos, aumentou de um mais. Ela foi um rebuliço, uma alegria na casa, os meninos adorando, rodean- do, rindo de qualquer bobajinha que fizesse, um mexer de cabeça, um espirro. Eu cismado da sua proveniência, mesmo mistério, logo deixado esquecido, preocupação dando lugar ao encantamento da coisa-nova. O apelido nasceu bem antes do nome de batismo, idéia de Carminha, minha mais velha, coisa de escola: Baby. Nós a aceitamos de maneira tal, e tão plenamente, que só enxergávamos a formosura de seus olhos azuis de conta, o frescor de sua pele, sua meiguice. Por isso estranhas nos soaram as palavras da comadre Eudóxia:

— Vocês dizem que Baby só tem seis meses? Ah! qual... é do ta- manho da Nena!

Olhamos nossa caçula de sete anos, Nena, e de fato ela pareceu estranhamente pequena ao lado de Baby. O mais pior do amor é ser cego, de maneira que achamos aquilo vantagem, saúde de bom trato. O preo- cupar veio mais tarde, quando a bebê consumia sozinha mais de meio bal- de de leite, e tivemos que acomodá-la em cama de adulto. Fui à cidade, trouxe o Dr. Camargo, e Baby gostou dele. Brincou com seus aparelhos de exame, fez gracinhas. Mas o doutor pareceu assustado quando me disse:

— Olhe, trata-se de uma espécie de gigantismo, você compreende, um crescimento demasiado... Olhe, vou lhe dar o nome de um médico em São Paulo, uma sumidade em hormônios...

Não que a gente fosse pobre, mas vivia do render do sítio, da cria- ção, do plantio pouco. Naquela hora não estava prevenido, planejei a via- gem para o mês. Sabe, para nós um mês sempre havia sido um dia segui- do do outro, e aquele foi o somar dos dias, um acumulamento de horas, coisa que a gente as tivesse empilhando. Baby crescia de maneira demais rápida. Carecia cuidar muito. Ela rolava na cama, queira engatinhar, um problema para Marta trocar-lhe as roupas. Em duas semanas a pobrezi- nha mal podia passar pela porta. E ao fazer suas brincadeiras com a gente, apesar de coisas de bebêzinho, brutas se tornavam, um perigo. E quando, por fim, consegui dinheiro para a viagem, Baby estava com quase o dobro da minha altura e não podia de nenhum jeito ser retirada do quarto. E mais desatinos: o povo gosta mesmo de comentários. Até gente amiga, que havia visto Baby e nosso martírio, contava aos outros como se o fato de ter visto fosse glória de seus olhos e de sua pessoa. Resultado é que veio gente de longe, estranhos, curiosos, e tivemos que contratar camara- das para ficar na porteira, impedindo a entrada. Procuramos ajeitar nosso paiol, grande e de boa altura, para ser a casa de Baby. Para fazê-la se mu- dar, tivemos que abrir uma parede. Nessa época ela estava principiando a engatinhar. Chamei :

— Vem com o papai, Baby. Vem...

Parece que ela compreendia os problemas e queria agradar a gen- te. Parou no meio do quarto, onde mal e mal estava cabendo, começou a brincar, escondia o rosto com as mãos, fazendo vergonha. Era um bebê muito lindo, meigo e gentil e nós todos o amávamos muito. Marta come- çou a chorar, foi para dentro, e Baby, como para tranqüilizá-la, engatinhou

me seguindo, até o paiol. Naquela noite reunimos toda a família, os ami- gos, rezamos dois terços para N. Sra. das Dores, pedindo-lhe que olhasse por Baby. Na manhã seguinte embarquei para São Paulo, com uma carta do Dr. Camargo. Dentro de cinco dias voltava com o Professor da Facul- dade e mais dois doutores. Quando a gente já ia chegando, ouviu uma gritaria medonha, e de longe a cabeça de Baby, enormidade, furando o telhado do paiol. Rodeando, como uma quermesse, com vendedores e tudo, o povo, assanhado. Não sou homem de perder estribeiras, porém naquela hora, fiquei que nem louco e nem me lembro como consegui en- xotar toda aquela gente. Baby me reconheceu, mas seu choro ainda era sentido e assustado, Marta e as crianças estavam derreadas.

— Ela está com fome, papai.

Os doutores aplicaram injeções em Baby. Retiramos as paredes do paiol para que ela pudesse se deitar. Dormiu soluçando. Examinaram-na de todas maneiras, e, mal comparando, eram como moscas em cima de um boi. Usaram aparelhos complicados, tiraram sangue dela.

— Essa rapidez de reprodução celular é inconcebível num ser hu- mano!

Um deles me pediu para ver o lugar onde achara Baby; examinou longo tempo as plantas e a terra de perto. Conversava simples comigo, como se fosse criança. Depois fomos visitar alguns vizinhos, perguntar. To- dos faziam o pelo-sinal e juravam não ter visto ouvido nada de estranheza, barulho, nada no céu ou terra, no dia em que encontrei Baby. Voltamos.

A noite vinha chegando, havia um ventinho de chuva. Cobrimos o bebê com encerados e acendemos perto uma fogueira. Os doutores es- tavam inquietos, nervosos. Um foi em busca de telefone. Fiquei, mais as crianças, zelando por Baby, que dormia lindo de bonito, calma. A noite esfriava, eu temia que chovesse. O povinho que havia ficado espiando de longe já tinha ido embora, Os doutores discutiam lá dentro de casa, as crianças dormiam ao pé do fogo.

Daí um pensamento foi tomando conta de mim. Baby era o nos- so nenê e o amor que tínhamos por ela maior que o seu tamanho. Todo aquele movimento não nos levaria a nada, e não estávamos tranqüilos com aquilo. Conhecia um lugar, além da invernada, o Varjão, terra-de- ninguém. Uma pedreira, lugar bonito e sossegado. Por que não esconder Baby ali, até que passasse a zoeira, a curiosidade? Cheguei-me de manso até seu rosto. E êle era quase de minha altura. Mexi em seu cabelo louro;

sua face fresca e vermelhinha de nenê. — Baby.

Ela dormia, sono pesado.

— Acorde, anjinho do papai. Vamos!

Mexeu-se. Abriu os olhos, resmungando. “Baby”. Sorriu. — Vamos, Baby.

Ficou feliz, entendia. Corri na frente, ela arrastou-se de mansinho, mesmo que cuidadosa, corri, ouvia ela me seguindo. Ouvia e sentia os arbustos, as árvores, sendo esmagados por suas pernas. “Vamos, Baby. Vem com o papai! Depressa, depressa!”. Meu peito doía do esforço, cor- ria de perder o fôlego. “Venha, Baby!” Voltava-me e via meu bebê cada vez: maior, crescendo sempre, uma montanha, um mundo. Passamos pela invernada, pelo local onde a vira pela primeira vez, a tomara no colo, cor- ria, tudo muito confuso, as coisas deixando de existir, tudo ficando sem importância, só grande o nosso fôlego branco e espesso, espuma de água, turbilhão. O esforço muito que me abateu. Acordei de dia, a chuva grossa batendo em meu rosto. À minha canhota a pedreira, um rasgo, um lanha- do como se aberto na rocha por um gigantesco machado de fogo. E paz. Uma grande paz no verde teimando em nascer por entre as pedras. No horizonte ali pertinho se encontrando com o céu. Na chuva de Deus que mistura as poeiras dos séculos. Meu coração apressou-se por meu nenê. Levantei-me, olhei para os lados e para o alto.

O PRIMEIRO METAL

No documento magazine de ficção científica 02.pdf (páginas 132-136)