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Capítulo 1: Dando um rolê: sujeitos, disputas e negociações

1.2 Disputando o Oito de Março

1.2.1 Sapatonas autônomas

1.2.2.2 Baderna e vandalismo

Nesta seção, trato da mobilização de termos como vandalismo e baderna por parte de atores/as externas para classificar práticas do rolê feminista assim consideradas apolíticas ou politicamente ineficientes.

Carla Gomes (2017) traz contribuições para esse debate ao tratar das controvérsias no campo feminista em torno da Marcha das Vadias do Rio de Janeiro, enquanto coletivo não institucionalizado que também se ancora nos ideais de autonomia e horizontalidade. Ela conta que o fato de o corpo ser elemento chave da performance provocadora do coletivo angaria tanto reações apaixonadas quanto de rejeição – seja por parte da mídia, ou por parte de setores dos movimentos sociais e feminista, os quais apresentam objeções em relação ao nome do protesto, ao uso da nudez e duvidam da sua capacidade de representação política.

45 Como tem colocado Esther Solano, essa ênfase de setores conservadores vê a corrupção como um problema moral

e de caráter.

46 Vide, por exemplo, as agressões físicas a militantes que portavam bandeiras de partidos políticos de esquerda

durante manifestações de rua nas chamadas Jornadas de Junho, e a predileção pelas cores da bandeira do Brasil em manifestações anti-Dilma nos últimos anos.

Dado o de uso de repertórios emocionais caracterizados pela jocosidade, na relação intergeracional é recorrente a acusação por parte de pesquisadoras e ativistas mais velhas de que as vadias são apolíticas, ineficientes ou antifeministas (GOMES, 2017).

De um lado, as ativistas pesquisadas por Gomes (2017) rejeitam uma militância vista como hierárquica e institucionalizada atribuída, de forma mais ou menos generalizada, às feministas da geração anterior, pertencentes a organizações, partidos e sindicatos. Por sua vez, muitas dessas feministas criticam grupos como a MdV em função do que consideram como uma incapacidade de incidência nas políticas públicas e um uso “contraprodutivo” do corpo e da sexualidade.

Como mencionado acima, a estratégia das interlocutoras dessa pesquisa está baseada no uso da provocação, deboche e ironia. A inversão do lugar de enunciação de categorias acusatórias, como sapatão e bruxa, é parte desse repertório, o qual diversas vezes é lido por atoras/es externos como bagunça, arruaça ou vandalismo47 - como visto na cena do bloco das sapatonas autônomas e que pode estar também entre as motivações da resposta das Mulheres do PT.

Por fim, a frase proferida pelo bloco LBT no Oito de Março consiste em uma provável referência e reelaboração do lema do feminismo anarquista do final do século XIX, “nem Deus, nem patrão, nem marido”. Na historiografia, a frase é atribuída ao jornal “La Voz de la Mujer”, publicado na Argentina entre os anos de 1896 e 1897, tendo como redatoras mulheres imigrantes de origem europeia (MOLYNEUX, 1986).48

Na Argentina, as flutuações do anarquismo seguiam um modelo similar ao internacional: na década de 1890 o anarquismo se encontrava sob influência do Comunismo Anarquista propagado por Peter Kropotkin e Elisee Reclus (na Europa), e Emma Goldman e Alexander

47 MacRae (1982) aborda as relações de conflito entre o que chama de “os respeitáveis militantes” da esquerda e as

“bichas loucas” no contexto da imprensa alternativa brasileira da década de 1980. A atuação do tipo “fechativa” dos últimos, baseada no poder de ridicularização, no humor iconoclasta, no uso da palavra “bixa” e na adoção de atitudes de autoafirmação era objeto de críticas por parte de “militantes mais sérios”, para os quais tais estratégias somente confirmariam preconceitos, reforçando estereótipos do homossexual como “palhaço” e “ridículo”. Por outro lado, o ator discute como a desmunhecação e o escândalo colocavam em questão a própria ideia do “normal”, assim como a noção de que haveria um substrato de naturalidade subjacente a padrões de masculinidade e feminilidade – dois pilares da militância homossexual de período anterior.

48 A edição, impressão e distribuição de panfletos, jornais e folhetos eram algumas das formas principais de atividade

anarquista nas décadas 1880 e 1890 naquele país. “La Voz de la Mujer” era um desses jornais pequenos, semiclandestinos e de distribuição irregular. Durou um ano e foram impressas entre mil e duas mil cópias de cada edição – segundo Molyneux (1986), um número respeitável para uma publicação anarquista daquele momento. Ele surgiu entre mulheres trabalhadoras dos centros urbanos, especialmente entre as comunidades de imigrantes italiana e espanhola que se identificavam como pertencentes à classe trabalhadora. De acordo com o censo de 1898, as mulheres imigrantes ocupavam cerca da metade do contingente de mulheres registradas empregadas na capital Buenos Aires, se concentrando no serviço doméstico, na indústria de costura e têxtil e na cozinha (MOLYNEUX, 1986).

Berkmann (nos Estados Unidos). Era a essa tendência que se afiliava La Voz de la Mujer. O Comunismo Anarquista estava orientado à “eliminação violenta da sociedade existente” e a criação de uma nova ordem social (MOLYNEUX, 1986, p.123).49 Em função da sua afiliação à vertente anarquista que defendia atos de violência, o jornal era publicado de modo semiclandestino, sem edições regulares. Suas redatoras se opunham à autoridade da religião e do Estado, e eram hostis em relação à polícia e outros representantes do direito.

Dados os preceitos centrais do anarquismo em direção à luta contra a autoridade, na visão de Molyneux, o feminismo anarquista da época direcionava suas energias ao poder exercido sobre as mulheres no matrimônio e na família, buscando a liberdade de ter relações fora dessas instituições. Como expresso na edição quatro de La Voz de la Mujer, “nós odiamos a autoridade porque aspiramos a ser seres humanos e não máquinas dirigidas pela vontade de um ‘outro’, seja a autoridade, a religião, ou qualquer outro nome” (p. 129).50 Essa ideia apareceu resumida na assinatura de uma das apoiadoras do jornal como “Ni Dios, Ni Patrón, Ni Marido” (MOLYNEUX, 1986).51

A reelaboração do slogan sinaliza também as relações com determinados setores do campo anarquista, como discutirei na próxima seção.