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4.1 O teatro baiano a partir dos anos 80: a formação de um mercado

4.1.1 A baianidade em cena

Um dos tentáculos do sucesso do teatro baiano está na incorporação cênica de elementos inerentes às matrizes estéticas e ao composto identitário da baianidade. Então, para se compreender o extraordinário sucesso de “A Bofetada” e, por conseguinte, o empreendimento do sucesso do teatro baiano, há que se considerar, ainda que brevemente, seus aspectos cenológicos. Em cena, inicialmente cinco, depois, com a saída do ator Ricardo Castro do elenco, quatro atores que exploravam ao máximo o humor de homens travestidos. Para arquitetar a montagem de “A Bofetada”, os patifes Lelo Filho, Frank Menezes, Fernando Marinho e Moacyr Moreno, sob a direção de Fernando Guerreiro, foram buscar inspiração em textos consagrados da comédia brasileira carioca do gênero besteirol da década de 80.

No primeiro quadro, “O Calcanhar de Aquiles”, baseado em texto do premiado autor Mauro Rasi (Pérola, Batalha de Arroz Num Ringue Para Dois, etc.) a crítica e a vanguarda são os alvos, ao confrontar a crítica teatral Vânia Leão e sua amiga Dirce Mendonça com Eleonora, atriz decadente que se dispõe a interpretar sozinha os 60 personagens de uma

tragédia grega. Mero pretexto para o uso de falas e expressões típicas do vocabulário popular de Salvador.

Os dois esquetes seguintes, pérolas do besteirol, foram escritos por Miguel Magno e Ricardo de Almeida com o título original de “Quem tem medo de Itália Fausta”. Em “O Ponto e a Atriz”, vários gêneros teatrais são ironizados ao resgatar a função do ponto, figura que lembrava o texto para as divas das grandes companhias de teatro durante as apresentações.

No último esquete, “Fanta e Pandora”, o ensino do teatro é o foco, ao transformar a platéia em mais um personagem com quem duas professoras universitárias desmioladas passam a interagir, numa improvável aula sobre a influência de dois fonemas no teatro javanês, durante os últimos quinze dias do século XII a.C. O fio que unia os quadros do espetáculo é a discussão do teatro dentro do teatro, mas a questão central em cena, com estabelecimento da vigorosa empatia com o público, era a apropriação de expressões e signos próprios de um jeito baiano de ser e falar, numa transposição/transfiguração de alguns elementos constituintes da propalada baianidade.

No texto “Matrizes estéticas: o espetáculo da baianidade”, Armindo Bião (2005) define que:

a baianidade seria essa forma claramente mestiça, que associa tradição, novidade tecnológica e comércio... Nesse contexto, o teatro se desenvolveu como uma forma espetacular quase sempre anacrônica, como costuma ocorrer praticamente em todo o mundo, enquanto a música, tanto a popular quanto a erudita das mais diversas matrizes estéticas, e até mesmo a dança de carater erudito e de matriz estética expressionista européia e moderna – e pós-moderna – norte americana acompanhariam mais de perto a dinâmica cultural típica da baianidade (BIÃO, 2000, p. 22).

Assim, ao integrar à cena elementos como o humor, a musicalidade e a auto-referência, o teatro baiano, através de “A Bofetada”, contrariou o anacronismo apontado por Bião e deu um passo decisivo em direção à construção da identificação com o grande público.

Sucesso da mesma época, o “Recital da Novíssima Poesia Baiana” com o grupo Los Catedrásticos (Meran Vargens, Círia Coentro, Maria Menezes, Ricardo Bittencourt, Jackson Costa e, na primeira temporada, Iami Rebouças), dirigido por Paulo Dourado, levava ao extremo essa textualidade auto-referencial utilizando a estrutura de um jogral aparentemente sério.

Criado inicialmente pelos alunos da Escola de Teatro da UFBA citados acima como uma estratégia de mobilização da comunidade acadêmica durante a greve da Universidade em

1989, o recital fundia poesias de Gregório de Mattos e outros autores, com letras de músicas de carnaval cantadas, principalmente, nas populares festas de largo e do carnaval soteropolitano, reunidos pelo roteiro costurado pela dramaturga e professora Cleise Mendes.

Deslocadas de seu contexto original, estas letras soavam díspares e absurdas, levando o público à expiação do ridículo ao flagrar-se como protagonista daquela festa carnavalesca, na qual a migração de receptor para a condição de emissor e difusor daquelas canções era quase instantânea. Era catártico poder rir de si mesmo ao ser confrontado com frases como “Tá ficando apertadinha, por favor, abre a rodinha” ou “Pega ela aí. Pra quê ? Pra passar baton”, que, recitadas/declamadas/interpretadas, soavam grotescas.

As inúmeras polêmicas em que o Recital esteve envolvido com setores da imprensa e com alguns movimentos sociais contribuíram ainda mais para a visibilidade do espetáculo, e incrementaram o contínuo interesse do público, possibilitando que o espetáculo sobrevivesse apenas de bilheteria por muito tempo. Naquela época, ainda não havia os mecanismos de fomento das leis de incentivo. A condição de sustentabilidade inaugurada por “A Bofetada” e experimentada pelo “Recital da Novíssima Poesia Baiana”, seria alcançada também por “Os Cafajestes”. Este último, um musical com texto de Aninha Franco e direção de Fernando Guerreiro, lançava mão de conhecidas músicas e de ditados e provérbios machistas do imaginário e cotidiano baiano para empreender a desconstrução do preconceito.

Os três espetáculos citados lograriam não só a constituição de uma nova perspectiva de produção para o teatro baiano, como alcançariam inserção nacional, com turnês realizadas por diversos Estados brasileiros, sempre com grande sucesso e, em alguns casos, recebendo prêmios.

Independente das especificidades dramatúrgicas e dos atributos encenatórios, um dos traços comuns dos três espetáculos citados, como já ressaltado, é a estetização cenológica da baianidade. Portanto, é válido supor que o interesse geral do público de outros Estados para a nova cena baiana, já que foram espetáculos que fizeram grande sucesso também fora da Bahia, estaria calcado na atração pelo diferente, pelo outro, numa dimensão oposta e complementar ao aspecto auto-referencial dessas montagens.

Por fim, é fundamental recuperar o elemento determinante da baianidade como identidade matricial da brasilidade. Foi em Salvador que Tomé de Souza fundou a nossa primeira capital, em 1549, a partir de antigas aldeias indígenas e, sobre elas, e nessa mistura entre colonizados e colonizadores, é que se deu início à formação do povo e do Estado brasileiro. A velha cidade da Bahia, importante entreposto portuário ao longo de mais de três

séculos, ao servir de confluência entre costumes, tradições e tecnologias oriundas de vários lugares, acabou por ensejar uma fulgurante troca entre vários elementos formadores de identidade: artes, ofícios, etnias, religiões, línguas, idéias, etc., elucidados no artigo de Bião e que dariam esteio aos múltiplos brasis. Portanto, falar em baianidade é reconhecer o profundo e contínuo processo de interação e tensão entre matrizes estéticas, das mais variadas, e que formam um caldo difuso e prolixo.

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