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CAPÍTULO I A FESTA E A CIDADE

CAPÍTULO 2 CENTENÁRIO E PROGRESSO

2.3 Bar, hotel e bairro: três formas de monumentalizar o centenário

2.3.3 Bairro Centenário

O bairro surge como o domínio onde a relação espaço/tempo é a mais favorável para um usuário que deseja deslocar-se por ele a pé saindo de sua casa. Por conseguinte, é o pedaço de cidade atravessado por um limite distinguindo o espaço privado do espaço público: é o que resulta de uma caminhada, da sucessão de passos numa calçada, pouco a pouco significada pelo seu vínculo orgânico com a residência.140

O bairro, como nos disse Pierre Mayol, possui um vínculo orgânico com as residências, consequentemente, este vínculo se estende aos seus moradores, os atores que elaboram esta sucessão de passos por suas calçadas; aqueles que estabelecem um sentido e um enunciado ao bairro.

O bairro pode nascer de várias maneiras: de forma planejada, seguindo padrões impostos por urbanistas e pelo poder público; de forma espontânea, acompanhando o crescimento da cidade e o seu fluxo populacional; e até mesmo a partir de invasões, fruto de uma segregação urbana reprodutora de desigualdades, tornando o bairro um cenário de tensões e lutas.

Mas como surgiu o Bairro Centenário? Apenas como um produto de homenagem e de perpetuação dos cem anos de Caruaru? Se nos atermos apenas à questão da nomenclatura, a resposta é sim. Mas existem outros aspectos por trás da origem deste bairro, inclusive um “outro” bairro, o Bairro do Lixo. O jornal A Defesa publicou uma reportagem especial narrando o trabalho social de grupos católicos no Bairro do Lixo, principalmente o da Ação Católica, liderada pelo Bispo D. Paulo Hipólito. Estes grupos distribuíam roupas, comida, brindes no natal e catequisavam os

140

MAYOL, Pierre. “O Bairro”, in: CERTEAU, Michel de. Et al. A invenção do cotidiano. 2. Morar,

moradores. Junto com a matéria, fotografias do local estamparam a página, assim como uma breve história de sua ocupação

É um bairro pouco populoso, com ruas inconveniências (sic) devido ao terreno que é bastante acidentado e não apresenta estabilidade para urbanização. Surgiu de uma maneira curiosa: no decênio de 1940 a 1950, os mendigos que imigravam nesta cidade, iam pedir aos poderes públicos um abrigo, uma ajuda a fim de mitigarem a fome que os devorava e se protegerem do frio que os consumia. Eram encaminhados então para uma zona da cidade onde se faziam os despejos do lixo (...) Passaram-se os anos, o bairro foi crescendo em população e em miséria e hoje esse recanto da cidade não mais se destina a despejos de lixo, mas sim ao abrigo do povo humilde e pobre141.

De acordo com o jornal, aquele local começou a ser ocupado como uma espécie de “depósito de pobres”, não apenas o lixo era encaminhado para aquela zona da cidade, mas também todos aqueles considerados indesejados na cidade. O Bairro do Lixo seria um tipo de solução imediata para o problema da pobreza e da mendicância no Centro da cidade na década de 1940, promovendo a higienização destas ruas ao paço que criava naquele terreno, composto por ladeiras de terra e lixo, um depósito de pobres. Se Caruaru era uma sala de visitas, o Bairro do Lixo era a parte de baixo do tapete. Aquele bairro se constituiu a partir das desigualdades sociais presentes em Caruaru, como escreveu a geógrafa Ana Fani Carlos, “o espaço urbano se reproduz, reproduzindo a segregação, fruto do privilégio conferido a uma parcela da sociedade brasileira.”142

Com o passar dos anos Caruaru foi expandindo a sua área urbana e o Bairro do Lixo já não estava mais tão distante assim do Centro. Desta forma, o bairro passou de solução para a limpeza das ruas, a um problema estrutural para toda a cidade. Os católicos reagiram a isto criando obras de assistência social já mencionadas, além da construção do Centro Social Vigário Freire, idealizado pela diocese no intuito de melhorar a qualidade de vida daqueles moradores. Para agir de maneira eficiente, os católicos levantaram os seguintes dados sobre os habitantes do Bairro do Lixo:

TABELA 1: Alguns dados sobre a população do Bairro do Lixo levantados pela Diocese de Caruaru

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A DEFESA. 17 de maio de 1957, pg 16

142 CARLOS, Ana Fani Alessandri. A Cidade. São Paulo: Contexto, 2009. Pg. 83

Crianças 650

Crianças em idade escolar 420

Fonte: Jornal A Defesa de 17 de maio de 1957

Pelos dados levantados pela comunidade católica, nota-se as suas principais preocupações em relação aos moradores do Bairro do Lixo: a educação das crianças e o matrimônio dos adultos. Das crianças em idade escolar (420), apenas menos da metade (168) frequentavam instituições de ensino. A educação era considerado um meio de inclusão de meninos e meninas pobres na sociedade, além de possuir outra função que era retirá-los, mesmo que temporariamente, das ruas e do ócio. Já em relação aos adultos a questão religiosa foi um fator de peso, dentre tantos outros aspectos a ser levantados, o casamento foi o que sofreu abordagem. Talvez ao levantar números sobre enlaces matrimoniais – um dos principais sacramentos da igreja – a Diocese estava preocupada em promover uma “inclusão religiosa” naquelas pessoas, ou apenas ampliar a sua área de influência na cidade orientando os moradores de acordo com os preceitos católicos.

Já o poder público municipal queria construir uma nova imagem para aquela zona da cidade. Não poderia existir propaganda mais negativa para Caruaru como um bairro com uma denominação tão agressiva como “Bairro do Lixo”. Isto era algo que batia de frente com todo o discurso de cidade centenária e progressista que estava sendo propagado na segunda metade da década de 1950, sem contar que iria ser motivo de vergonha junto aos visitantes aguardados nas festas centenárias, caso estes tomassem conhecimento da existência de um bairro que carregasse em si um estigma tão forte de sujeira e miséria.

A primeira medida tomada pela prefeitura de Caruaru para tentar apagar o aspecto negativo daquela parte da cidade foi justamente a mais fácil, mudar o nome do Bairro do Lixo para Bairro do Centenário. Nada de pavimentação das ruas, saneamento ou urbanização – O “Prefeito do Meio-fio” ainda estava distante de lá. A única novidade física daquela região em 1957 foi exatamente a construção do Centro Social Vigário Freire por iniciativa da Diocese.

Crianças que não frequentam escolas por falta de meios

252 Pessoas não registradas civilmente 356 Pessoas casadas no religioso e contratadas no civil

554 Pessoas casadas somente no religioso 158

Mudar o nome do bairro foi a medida mais fácil e imediata diante do desconforto público que o Bairro do Lixo gerava. Apesar da lei que modificava o nome para Bairro do Centenário só ter sido aprovada somente em 1958143, já no início de 1957 ouve uma espécie de campanha informal de divulgação do novo nome para que a população já se adaptasse à mudança. A própria reportagem do A Defesa já classificava como “vulgar” chamar o Bairro Centenário de Bairro do Lixo.

Pierre Mayol ao escrever sobre a relação entre sujeitos e bairro, afirmou que; “Assinatura que atesta uma origem, o bairro se inscreve na história do sujeito como uma marca de pertença indelével na medida em que é a configuração primeira, o arquétipo de todo processo de apropriação do espaço como lugar da vida cotidiana pública”144. Mas que tipo de espaço era apropriado pelos moradores do então Bairro Centenário em 1957? A mudança do nome teria gerado uma grande mudança na sua “marca de pertença”? Isto é pouco provável. Como mencionei anteriormente, as mudanças estruturais no Bairro Centenário praticamente não ocorreram em 1957, mas de maneira gradual ao longo dos anos que se seguiram. A título de exemplo, o bairro só recebeu asfalto em algumas de suas ruas nos anos de 2012 e 2013. Foi também no ano de 2013 que o Bairro do Centenário, de acordo com levantamento da Polícia Civil, foi considerado o bairro mais violento de Caruaru145, tudo isso 56 anos depois da mudança de nome.

Mudar o nome do Bairro do Lixo para Bairro do Centenário além de mais uma tentativa de monumentalização da data comemorativa dos cem anos, foi uma espécie de maquiagem numa zona problemática da cidade. Um lugar sempre esquecido pelo poder público foi lembrando em 1957 justamente para deixar de existir. Quando ainda se chamava Bairro do Lixo aquela parte da cidade possuía uma visibilidade que incomodava, que era negativa diante da elite letrada e dos políticos. Ao passar a se chamar Centenário esta própria elite foi que se viu confortada e não os seus moradores que continuaram vivendo com as mesmas mazelas de antes, algumas delas presentes até os dias de hoje. O Bairro Centenário acabou adquirindo uma dupla função a partir de 1957, a de perpetuação da memória dos cem anos de Caruaru, e a do lugar de morada daqueles foram esquecidos, dos que não foram convidados para a festa.

143 CÂMARA MUNICIPAL DE CARUARU. Projeto de Lei Nº 673 de 28 de fevereiro de 1958. 144

MAYOL, Pierre. “O Bairro”, in: CERTEAU, Michel de. Et al. A invenção do cotidiano. 2. Morar,

cozinhar. Op. Cit, pg. 44.

145 Dado publicado na reportagem: http://m.g1.globo.com/pe/caruaru-regiao/noticia/2013/12/cresce- numero-de-homicidios-em-relacao-ao-ano-passado-em-caruaru.html (Acessado no dia 03 de janeiro de 2014)

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