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3 JUSTICIABILIDADE DOS DIREITOS SOCIAIS NO PLANO

3.2 Baixa densidade normativa

Argumentos contrários à justiciabilidade dos direitos sociais assumem diferentes naturezas, apesar de interligados pelo seu objeto. São eles de ordem jurídica, econômica e até política. Os argumentos essencialmente jurídicos perpassam a questão da baixa densidade normativa dos direitos sociais, o que tornaria inviável a sua aplicação direta ao caso concreto, sob o discurso de que são direitos negativos, meramente programáticos, imprecisos, ideológicos e, consequentemente, não justiciáveis.

Para os autores argentinos Christian Courtis e Victor Abramovich, tanto direitos sociais quanto direitos civis e políticos são, ao mesmo tempo, positivos e negativos, visto que existem diferentes níveis de obrigações do Estado comuns a ambas as categorias de direitos153. Quando o Estado, por exemplo, está encarregado de não lesionar o direito a saúde, de não impedir o acesso à educação, de não depredar o patrimônio cultural e, ainda assim, opta por atuar de forma contrária, a busca de correção dessas ações se dá pela via judicial, o que fortalece o argumento da justiciabilidade dos direitos sociais154.

A distinção conceitual entre direitos civis e políticos em face dos direitos econômicos, sociais e culturais está desestabilizada devido à existência de obrigações tanto de teor positivo quanto de teor negativo pertencentes às duas espécies de direitos.

Já com relação ao suposto caráter meramente programático dos direitos sociais, afirma Canotilho que as normas constitucionais que consagram liberdades e garantias individuais são dotadas de aplicabilidade direta por possuírem densidade normativa suficiente,

153 ABRAMOVICH, Victor; COURTIS, Christian. Direitos sociais são exigíveis. Tradução de Luis Carlos

Stephanov. Porto Alegre: Dom Quixote, 2011, p. 33.

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De outro lado, “o respeito de direitos tais como o devido processo, o acesso à justiça, o direito a casar-se, o direito de associação, o direito de eleger e ser eleito supõe a criação das respectivas condições institucionais por parte do Estado (existência e manutenção de tribunais, estabelecimento de normas e registros que tornem juridicamente relevante a decisão nupcial ou o ato de associação, convocação a eleições, organização de um sistema de partidos políticos etc.).” (ABRAMOVICH, Victor; COURTIS, Christian. Direitos sociais são

enquanto que os direitos sociais seriam dependentes de prestações, razão pela qual não haveria um direito subjetivo autoaplicável155.

O próprio artigo 26 da Convenção Americana de Direitos Humanos – único dispositivo do diploma relativo aos direitos econômicos, sociais e culturais – estabelece que os Estados Partes devem se comprometer a adotar providências para alcançar

progressivamente a plena efetividade dos direitos sociais, na medida dos recursos disponíveis. Da mesma forma, o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e

Culturais determina que cada Estado Parte compromete-se a adotar medidas, até o máximo de

seus recursos disponíveis, que visem a assegurar, progressivamente, o pleno exercício dos

direitos sociais.

De fato, a indeterminação reiterada pela utilização dos termos “progressivamente” e “recursos disponíveis” desperta a ideia de menor especificação do conteúdo dos direitos sociais, o que, certamente, obstaculiza a sua judicialização e intimida o reconhecimento da sua justiciabilidade. No entanto, trata-se de característica comum a diversas normas constitucionais156 – sociais ou não – e a tratados internacionais de direitos humanos. Não é porque a norma demanda a existência de uma legislação integradora que deve ser considerada, apenas por isso, uma norma programática. Ademais, a realização dos direitos sociais por etapas não exclui a possibilidade de imediata aplicação do seu núcleo essencial, visto que a progressividade se apresenta apenas como uma meta para que se alcance a realização plena desses direitos.

A suposta dicotomia entre a precisão dos direitos civis e políticos e a vagueza dos direitos sociais também contraria a justiciabilidade destes últimos e, assim como os demais argumentos, pode ser facilmente refutada. Em primeiro lugar, porque a previsão, nos tratados internacionais de direitos humanos, sobre direitos civis e políticos é tão imprecisa e vaga quanto a previsão dos direitos sociais. Em segundo lugar, porque a simples abertura semântica do dispositivo não é capaz de retirar o seu efeito normativo, tampouco inviabiliza a efetivação dos direitos ali previstos. Platon Teixeira de Azevedo Neto assevera que:

Na realidade, a diferença cinge-se ao desenvolvimento histórico que cada ramo teve. Enquanto as cortes nacionais e internacionais se dedicaram, ao longo das décadas, à interpretação e casuística dos direitos civis e políticos, os direitos sociais foram

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CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 524-526.

156 Peculiar a normatização dos direitos sociais na atual Constituição brasileira, que especifica, em vários

dispositivos, o seu conteúdo, a exemplo do que ocorre nos artigos 6º, 7º, 196 e 205, ao elencar, sem ressalvas, o direito à educação, à saúde, à alimentação, ao trabalho, à moradia, ao transporte e à assistência aos desamparados.

condenados ao oblívio, tendo algumas aplicações esparsas a partir da Declaração de 1948 e, somente a partir da década de 1990, principalmente, recebeu o devido tratamento. De tal modo, justifica-se a dificuldade de determinar a “precisão” dos direitos sociais, pois é com a prática que os direitos, sobretudo os humanos, ganham os seus contornos e limites157.

Quanto ao caráter ideológico dos direitos sociais, é inevitável reconhecê-lo, visto que não é razoável eliminar a carga de ideologia158 – no sentido de opção política – presente em qualquer direito fundamental. Mais do que isso, nenhuma ciência é capaz de oferecer um conhecimento integralmente objetivo da realidade, razão pela qual todo conhecimento possui, em maior ou menor grau, caráter ideológico. O que não se justifica é a caracterização exclusiva dos direitos sociais como ideológicos, pois os direitos civis e políticos, da mesma forma, decorrem de opções políticas circunstanciais e, por isso mesmo, torna-se desproporcional retirar a juridicidade dos direitos sociais meramente em razão dessa característica.

A falta de especificação das normas é comum em constituições e em tratados de direitos humanos e, se assim não o fosse, verificar-se-ia verdadeira incompatibilidade do procedimento com o caráter geral desses diplomas. Determinar o sentido e o alcance da norma é possível pela via regulamentar, jurisprudencial, dogmática ou mesmo fática159. Em certas situações, apesar da baixa densidade normativa, o contexto fático não deixa muitas opções de ação a respeito daquele direito, ou seja, os fatos limitam a discricionariedade do Estado através das normas gerais sobre direitos sociais.

Em resumo, não há – no plano teórico – diferença operacional entre os direitos civis e políticos e os direitos econômicos sociais e culturais. Assim como os direitos civis e políticos, os direitos sociais podem ser postulados individual ou coletivamente. Assim como os direitos civis e políticos, os direitos sociais não são meras aspirações. Assim como os direitos civis e políticos, os direitos sociais pretendem concretizar-se de forma plena. Assim como os direitos civis e políticos, os direitos sociais jamais alcançarão a plenitude, em virtude do dinamismo e da complexidade das relações sociais.

157 AZEVEDO NETO, Platon Teixeira de. A justiciabilidade dos direitos sociais nas cortes internacionais de

justiça. São Paulo: LTr, 2017, p. 61.

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Segundo Manuel Atienza: “Ideologias são sistemas de ideias, concepções de mundo que funcionam como um guia de ação no campo da política, do Direito e da moral, bem como a projeção que tais ideias têm na consciência dos indivíduos.” (ATIENZA, Manuel. El sentido del Derecho. Barcelona: Ariel, 2014, p. 145, tradução nossa).

159 ABRAMOVICH, Victor; COURTIS, Christian. Direitos sociais são exigíveis. Tradução de Luis Carlos

Ocorre que a baixa densidade normativa não é o único entrave à justiciabilidade dos direitos sociais. As questões da reserva do possível e da separação dos poderes também se apresentam como grandes empecilhos ao reconhecimento da juridicidade desses direitos.