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Barbárie e cultura: teses sobre o conceito de história

No documento Estado de exceção em Giorgio Agamben (páginas 65-68)

2.3 WALTER BENJAMIN: CRÍTICO AO DIREITO E À VIOLÊNCIA

2.3.1 Barbárie e cultura: teses sobre o conceito de história

Os interesses da história estão mais bem representados [...] na memória dos sem-nome.

Walter Benjamin

Na tese VII se lê: “Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, [...] considera sua tarefa [do materialista histórico] escovar a história a contrapelo”161. Ao longo dessa tese, Walter Benjamin acena para a compreensão do movimento da história na perspectiva do vencedor que reduz a experiência dos vencidos, dos oprimidos, à mera pilhagem arrastada pelo cortejo triunfal que continua, ainda hoje, em pleno curso, no seio da própria história sobre aqueles que jazem por terra.

O conceito de história que Walter Benjamin tem como panorama de análise, o historicismo162, na compreensão de Reyes Mate163, ‘representa uma má universalidade’, pois nele se assentam e estão abarcados e presentes os interesses e até os bens dos vencidos, embora se apresentem como bens culturais da humanidade. Esses bens são resultados da expropriação, criados à custa da escravidão anônima, razão pela qual se afirma que ‘não há um só documento de cultura que também não seja de barbárie’, o que, por consequência, contamina e carrega em si o processo de produção e transmissão desses eventos, entendidos, por conseguinte, como bárbaros e violentos. No tocante a essa questão da produção e

161 BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política, p. 225.

162 Para Reyes Mate, “o termo ‘historicismo’ está entre os mais equívocos. Debaixo desse guarda-chuva foram

abrigadas ou colocadas todas as variedades historiográficas”. [Ainda este entende que os fatos são os fatos, o que chegou a ser; o resto é irrelevante] (MATE, Reyes. Meia-noite na história: comentários às teses de Walter Benjamin “Sobre o conceito de história”, p. 175). (LOWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses “sobre o conceito de história, p. 70-82).

163

MATE, Reyes. Meia-noite na história: comentários às teses de Walter Benjamin “sobre o conceito de história”. Trad. Nélio Schneider. São Leopoldo, RS: Ed. Unisinos, 2011, p. 175.

transmissão da barbárie, Ricardo Timm de Souza esclarece esse processo nem sempre facilmente compreensível. Assim,

[...] evidencia-se que nenhum tipo de sublimação resolve completamente a questão da barbárie original, como o que é mais importante e difícil perceber – os grandes paradigmas de barbárie final têm origem nos laboriosos processos de superação da barbárie original. Ainda mais: o próprio processo de transmissão da cultura reproduz a cada passo o processo genético original, exteriorizando, objetivando uma situação apenas depurada pela retrospecção historiográfica [...]164.

Ligado a essa compreensão de barbárie resultante da própria cultura ocidental, Walter Benjamin destaca um aspecto de fundamental importância que reside na proposição de se ir ao encontro da história contra a correnteza, ou seja, ‘escovar a história a contrapelo’, superar a apresentação dessa enquanto transmissão da violência. Neste exercício aparece a relevância do particular, de se fazer esse exercício de análise crítica levando em conta cada particular165, mesmo aquilo que não chegou a ser história, ou mesmo os ‘restos da história’, o que revela o caráter de abrangência para além de meros fatos, mas, precisamente, ‘o que não pôde ser e está em potência de ser’. Dito de outra forma, esse exercício requer que se leve em conta os espectros que ficaram sem existência ao longo do caminho, cada particularidade é importante para articular a história e pensar o universal. Dessa maneira, “[...] se o que queremos é aprofundar o conhecimento da história, ou melhor, ‘que nada se perca’, então é preciso escovar a história a contrapelo, isto é, atentar para o outro lado do espelho, fixar-nos no lado oculto da realidade”166.

Este fixar-se na realidade, conforme Jeanne Marie Gagnebin167, indica na concepção histórica de Benjamin, uma palavra-chave, a ‘interrupção’, que significa romper com o tempo linear e concatenado da história sem brechas, fazendo saltar a intensidade do instante, na

164 SOUZA, Ricardo Timm de. Justiça em seus termos: dignidade humana, dignidade do mundo, p. 29. [grifos

do autor].

165

Na compreensão de José Carlos Moreira da Silva Filho, “Percebe-se nos escritos de Benjamin uma atenção ao singular de cada momento [...] na tentativa de contraposição à voragem da história como progresso, que mergulha o singular no esquecimento e projeta o presente em uma repetição”. (SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. O anjo da história e memória das vítimas: o caso da ditadura militar no Brasil. In: RUIZ, Castor Mari Martín Bartolomé. (Org.) Justiça e memória: para uma crítica ética da violência. São Leopoldo: Unisinos, 2009, p. 127).

166 MATE, Reyes. Meia-noite na história: comentários às teses de Walter Benjamin “sobre o conceito de

história”. Trad. Nélio Schneider. São Leopoldo, RS: Ed. Unisinos, 2011, p. 185.

167

Cf. GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. 2. Ed. São Paulo: Perspectiva, 2004, p. 96.

perspectiva de captar o singular expresso nesse instante próprio. A proposta de ‘escovar a história a contrapelo’, entendida como ato em sentido tanto historiográfico como político significa explicitamente recusar-se a estar no mesmo caminho do cortejo da marcha triunfal sobre aqueles que são oprimidos na história. Nessa acepção, conforme Michael Löwy, o imperativo ‘escovar a história a contrapelo’ contempla este duplo significado, conforme destaca:

a) histórico: trata-se de ir contra a corrente da versão oficial da história, opondo-lhe a tradição dos oprimidos. Desse ponto de vista, entende-se a continuidade histórica das classes dominantes como um único e enorme cortejo triunfal, ocasionalmente interrompido por sublevações das classes subalternas; b) político (atual): a redenção/revolução não acontecerá graças ao curso natural das coisas, o “sentido da história”, o progresso inevitável. Será necessário lutar contra a corrente. Deixada à própria sorte, ou acariciada no sentido do pêlo, a história somente produzirá novas guerras, novas catástrofes, novas formas de barbáries e de opressão168.

Em suma, aprofundar a história indica uma exigência primeira que reside em dedicar- se a recordar os sem-nomes, os oprimidos, os vencidos, em que “o sentido da história tem de ser passado a limpo; e, com este exame difícil, a própria noção de “sentido” construída historicamente será colocada definitivamente em questão”169. Este sentido que urge ser rebuscado, neste exercício complexo de prospecção, indica revisitar as estruturas que, ainda, em que pesem os avanços das sociedades, a instalação das democracias liberais, o Estado social de Direito, o prestígio do discurso acerca da democracia, da liberdade e dos direitos humanos em nível mundial, a riqueza mundial resultante da globalização, ainda não conseguiram banir os pesadelos presentes nas sociedades atuais, nas quais se vive ainda sob a égide do exposto magistralmente na tese VIII: o ‘estado de exceção permanente’ que continua demarcando estruturas desumanizantes.

168 LOWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses “sobre o conceito de história, p.

74.

169

Cf. SOUZA, Ricardo Timm de. Justiça em seus termos: dignidade humana, dignidade do mundo, p. 30. [grifo do autor].

No documento Estado de exceção em Giorgio Agamben (páginas 65-68)