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2. O TREZE DE MAIO: RITUAIS, SENTIDOS E SIGNIFICADOS

2.3 O barracão do mercado

O barracão é uma construção feita em madeira e palhas de palmeiras, com cobertura de telha de eternite, medindo aproximadamente 10 metros de largura, por 20 metros de comprimento. É erguido no centro da praça do mercado. Segundo José Raimundo, esse barracão tem uma dijina, “o Axé que nunca morre”. Essa informação me faz interpretar que os diferentes terreiros reunidos para celebrar o 13 de maio no mercado buscavam reatualizar a cada ano, a força vital que deu origem ao barracão.

Segundo os entrevistados, a vivência no mundo implica em fundá-lo, e isto é feito através de preceitos realizados no solo que se irá habitar. A construção do mundo é constituída por meio de encontros que se baseiam nas experiências com as divindades, os elementos da natureza e o sobrenatural. Os lugares são compreendidos a partir de significados subjetivos que podem justificar edificação do terreiro (barracão do

mercado). Neste caso a anuência dos orixás é que determina as regras das oferendas feitas ao chão.

Observei que a terra assumia um destaque significativo, na postura dos adeptos e nos elementos utilizados, como a água, os cânticos de saudação: “Onílè mo juba oÌbà òrisà Ìbà onílè”. O babalorixá diz que é um cântico de saudação aos espíritos, os Onílè, os donos da terra. “Saudamos aos senhores da terra com respeito e devoção, saudamos aos orixás e saudamos aos senhores da terra”. Para ele o barracão é um espaço sagrado e suas portas separam este espaço, que é inviolável, do espaço profano, nesse caso, os arredores que se limitam com a feira.

Para plantar ou reatualizar o axé do barracão56 se realiza um rito, suspender a

cumeeira, que é a parte de cima do mastro, e enterrar os fundamentos no chão. Os adeptos que dele participam são as filhas os filhos de santo, ogãs e equedes. Os adeptos vestiam suas indumentárias, panos, turbantes e colares. Posicionam-se ao redor da cumeeira e realizaram orações para plantar no intótu (chão), elementos que constituem o axé57.

Neste momento a postura é de reverência, os adeptos mantém-se numa posição em que demonstram humildade. Todos situam-se de cócoras ao redor de um centro demarcado por mastro, peça de madeira, iluminada por luz de velas. Os pontos extremos do barracão também eram iluminados por velas enquanto se desenrolam as cerimônias.

A cumeeira é o que sustenta simbolicamente o barracão consagrado a Xangô e se divide em duas partes: (céu) cumeeira, e a (terra) intótu. Coloca-se em cima de uma espécie de prateleira um recipiente com os elementos simbólicos do orixá o qual reinará no barracão. No chão plantam-se também elementos que são diferentes daqueles colocados na parte de cima. As partes de cima e de baixo formam duas estruturas onde se dão os angorossis, linguagens litúrgicas da nação angola, ou os orìkì, que são os cânticos litúrgicos de saudação aos orixás.

Na sequência, o babalorixá aproxima-se do centro onde estão sendo realizados os fundamentos. Ele pronuncia palavras em língua litúrgica, enquanto os outros participantes mantêm uma postura de reverência e com atenção respondem as orações também em língua litúrgica. Uma ebâmi58 coloca um dos elementos litúrgicos (milho 56 Plantar o axé é colocar em lugares apropriados um conjunto de elementos rituais através de ritos específicos que tem por finalidade potencializar os espaços e os objetos.

57 A cumeeira é colocada geralmente dia 10 de maio, antes do inicio do primeiro xirê. 58 Também fala-se ebômim, filha de santo que tem mais de sete anos de iniciada.

branco cozido) no centro do mastro, enquanto os demais respondem às orações ritmadas em melodia e palmas rítmicas. Outros se aproximam de forma a saudarem o centro do barracão como quem estabelece comunicação com orixá, sem que haja incorporações.

Seguindo o movimento do babalorixá, os adeptos se levantam e se movimentam formando um círculo. Nesse momento, observa-se que foi amarrado ao mastro um ojá branco, pano que compõe as indumentárias do sistema religioso. As pessoas ficam em pé, mas a concentração é mantida e acontece desenrolar das seqüências da cerimônia. O babalorixá começa a cantar música litúrgica, se articulando numa linguagem de interação e ao mesmo tempo comanda o toque dos atabaques, estabelecendo uma comunicabilidade com os alabés.

Os sons dos atabaques equacionados aos cânticos estabelecem a seqüência dos movimentos. Esses instrumentos que se localizam ao lado direito do barracão, são os três ilus ou atabaques de tamanhos diferenciados: o rum, atabaque maior, rumpi, de tamanho médio, e lé, o atabaque menor. Enquanto as pessoas dançam e cantam no movimento de continuidade, o babalorixá sai do círculo, pega um dos vasilhames que contém elementos feitos com mistura de azeite de dendê e farinha, enche as mãos, e vai até a frente do barracão ao mesmo tempo em que pronuncia palavras místicas, espalhando aquela substância na entrada do barracão.

O babalorixá despacha Exu, no intuito de evitar brigas, aborrecimentos. Afirma que aquele “ato” são os pedidos ao mensageiro, Exu que propicia comunicação entre os dois mundos, veicula situações de conflitos bem como garante a realização de acontecimentos benéficos. Após o despacho, forma-se um círculo onde os adeptos realizam cânticos litúrgicos de saudação a Exu e a alguns outros orixás.

Para José Raimundo erigir a cumeeira é transformar o espaço num centro de força, ali se estabelece o centro do mundo. No alto, o mundo do orun, embaixo, o àiye. Esse poste de madeira que se localiza no centro do barracão é o local onde circulam as diferentes formas de danças e é o elemento que une os dois espaços: o “o céu e a terra”. É neste espaço onde os diferentes terreiros da cidade desenvolvem laços de intimidade com seus orixás pedindo-lhes proteção e garantia de vida para o povo de santo, como também para os moradores da cidade.

Há um conjunto de normas para a realização dessas cerimônias, uma vez que os ritos privados incluem também aqueles realizados nos assentamentos de Iemanjá e Oxum. O rito para Exu, e a instalação do barracão são um dos elementos que dão sentido e garantem o desenvolvimento dos rituais públicos. Os elementos que compõem

a parte de cima do Ixé, são colocados em uma vasilha branca, perto de um recipiente azul. Percebi que havia alguns objetos que os adeptos consideram de fundamento, como as ferramentas de Xangô, quais sejam o oxé (machado de duas lâminas), pilão pequeno, velas e outros elementos.

Essa cerimônia compreende um conjunto de pequenos e significativos ritos que se configuram como os fundamentos da festa. São realizados orações, cânticos, as danças apropriadas, os gestos e a saudação a Exu59. Os atores envolvidos assumem uma

postura litúrgica, por meio dos gestos que fazem, cantam e rezam para os orixás, enquanto depositam os elementos, velas e acaçás, que compõem a força que protege o barracão. Relembram os ancestrais, a saudar os antigos pais de santo que iniciaram o Bembé, sobretudo, Tidú, que institucionalizou a festa.

Dando prosseguimento aos ritos, o babalorixá Pote, ou José Raimundo, despacha a rua com a colaboração de um dos iniciados que sai para o lado externo do barracão, derrama cachaça e espalha farofa. Um dos ogãs circula o barracão e, em seguida, realiza um pequeno rito. Enquanto os outros ogãs tocam os atabaques, ele soltava fogos avisando a abertura pública do Bembé, a alvorada.

José Raimundo explica que os rituais precedentes ao levantamento ixé ou da cumeeira, constituem-se parte do processo, e que há cerimônias para os mensageiros, os guardiões e os ancestrais masculinos e femininos, sendo que cada um destes princípios receberam através dos ritos propiciatórios suas oferendas. Para Exu as oferendas foram diferenciadas. Ele citou alguns deles como Exu alaketu, Onã, lona. Afirmou também ter feito oferendas para as Iamis, representação dos ancestrais femininos. Não detalhou como se desenrolaram os ritos, mas afirmou que são realizados de forma restrita, pois exigem cautela e conhecimento60. Desta forma o Axé do barracão foi “plantado”, ou

seja, instituído o centro, a base mística onde se realizariam as cerimônias públicas do Bembé.