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2 DAS VIOLAÇÕES À LUTA POR DIREITOS: EXPERIÊNCIAS E DESAFIOS

2.1 Barragens, impactos socioambientais e violação de direitos humanos

Recuperando a noção já trabalhada no capítulo anterior, a estratégia de desenvolvimento tendo como base a construção de barragens, embasou, em grande medida, as políticas governamentais a nível nacional e as voltadas para o Nordeste. No entanto, esse modelo de desenvolvimento se deu a partir da expropriação de direitos de diversas populações, além de ocasionar inúmeros impactos ambientais.

Zen e Ferreira (2012) comentam que entre as consequências negativas da construção de barragens, podem-se destacar o alagamento de grandes áreas, os desvios de rios e barramentos que diminuem, por vezes, a vazão da água em alguns trechos, as modificações na migração e reprodução de peixes e na fauna aquática, e a destruição de florestas e terras agricultáveis.

Na visão de Sevá Filho (2005), também é preciso considerar, que em um processo de construção de uma obra, não somente a natureza se transforma, mas também a sociedade. Para o autor, essas mudanças são subestimadas ao visar-se unicamente a utilização do rio como jazida de riquezas. Nesse sentido, propõe que:

Nas mega-obras, não somente se obriga a Natureza a ser de outro modo, a ser outra coisa, mas a sociedade que ali vive tornar-se outra. [...] São faces da mesma atitude radical: o rio é visto pelos fanáticos da eletricidade apenas como uma jazida; a sociedade local não passa de uma ‘interferência’, quando não empecilho, diante do projeto onipotente. (SEVÁ FILHO, 2005, p. 284).

Segundo dados da CMB (2000), estima-se que cerca de 40 a 80 milhões de pessoas foram fisicamente deslocadas em todo o mundo devido à construção de barragens. No Brasil, conforme dados do MAB, são mais de 1,5 milhões de pessoas atingidas, o que

corresponde a cerca de 300 mil famílias. Destes, cerca de 70% não tiveram seus direitos mínimos garantidos (MAB, 2008).

Vainer (2008), ao analisar a violação dos direitos dos atingidos por barragens, observa que, segundo a concepção dominante, nesses empreendimentos:

[...] Não há propriamente impactos, nem atingidos, e menos ainda qualquer coisa que possa ser entendida como direitos dos atingidos; o que há é o direito de desapropriação por utilidade pública exercido pelo empreendedor, cujo departamento de patrimônio imobiliário negociará com os proprietários o valor justo de suas propriedades. Em face deste direito do empreendedor, o único outro direito reconhecido é o direito de propriedade e, nesse caso, um direito de propriedade restringido pela “utilidade pública” que lhe antepõe. (VAINER, 2008, p. 41).

Para Zen e Ferreira (2012), essa realidade advém de uma visão tecnocrática, na qual as reparações de impactos de barragens são sinônimos de avaliação patrimonial e imobiliária individual por proprietário. Negligencia-se o fato de que nessas áreas existem famílias, comunidades, relações econômicas, sociais, culturais e se reduz essa complexidade socioeconômica e ambiental, tão somente, a benfeitorias e propriedades (ZEN; FERREIRA, 2012).

Azevedo e Fernandes (2016) afirmam que no processo de avanço da construção de barragens hidrelétricas no país, a concepção territorial-patrimonialista, que consistia na ideia de que o atingido é somente o proprietário diretamente afetado com a construção da obra, foi a mais utilizada pelas empresas do setor elétrico e o Estado brasileiro. Semelhante a essa visão, Vainer (2008) destaca que também se perdurou a chamada visão hídrica, que consistia no entendimento de que o atingido era somente aquele que tinha suas terras e bens inundados. Essa concepção, segundo o autor, é limitante, devido à completa omissão frente aos efeitos do empreendimento para as populações vizinhas a obra, que não são atingidas pela água. Efeitos esses, que no mais das vezes, são igualmente dramáticos (VAINER, 2008).

Na visão de Zhouri e Laschefski (2011), as barragens estão vinculadas à noção de subordinação das diversidades ecológicas e culturais locais ao potencial lucrativo dos recursos naturais, como a água, a terra, a energia, entre outros, que passam a ser transformados em mercadorias. As principais consequências dessa subordinação, segundo os autores, são o aumento do êxodo rural, a favelização e as transformações aceleradas das condições naturais nas áreas onde se implantam esses projetos (ZHOURI; LASCHEFSKI, 2011). Nessa mesma visão, Waldman (1997) destaca a destruição de relações econômico-culturais mantidas pelas populações tradicionais com os seus ambientes. Para o autor, “essas relações são ancoradas em valores que não são realocados e não correspondem à lógica dos conceitos tradicionais de

desenvolvimento” (WALDMAN, 1997, p. 82).

Vainer (2004), ao discutir os processos de implantação das barragens de Itaipu, Sobradinho, Itaparica e Tucuruí, identificou uma diversidade de problemáticas relacionadas aos impactos às comunidades locais. O autor aponta que a falta de informação e consulta prévia, os impactos ecológicos, a situação dramática de cidades e vilas afetadas, e o preço irrisório das indenizações oferecidas, são exemplos de situações em que foram submetidos os atingidos pelas obras (VAINER, 2004).

A título de exemplo, no caso de Sobradinho, uma das principais barragens do Nordeste, Vainer (2004) assinala que a situação dos atingidos foi tão gravemente desconsiderada no plano de construção da barragem, que as obras foram iniciadas sem que houvesse qualquer plano de reassentamento. Werner (2001), ao identificar essa realidade em Sobradinho, adiciona a insatisfação dos atingidos com relação ao valor das indenizações, o aumento do deslocamento para periferias de cidades, as perdas materiais para as populações locais, e até mesmo, a ocorrência de casos de suicídios associados aos impactos da construção da barragem (WERNER, 2001).

Dessa forma, as reivindicações pela garantia de direitos humanos básicos tornaram-se uma bandeira de luta fundamental para os atingidos, e ao passo que se avançaram as reivindicações dessas populações no Brasil e em nível mundial, a compreensão em torno do conceito de atingido e dos direitos dessa categoria, também foi se modificando. Nesse sentido, a CMB (2000) recomenda que nesses processos, sejam considerados que:

[...] O alagamento de terras e alteração do ecossistema dos rios – seja a jusante ou a montante da barragem – também afeta os recursos disponíveis nessas áreas – assim como atividades produtivas. [...] Isso provoca não apenas rupturas na economia local como efetivamente desloca as populações – em um sentido mais amplo – do acesso a recursos naturais e ambientais essenciais ao seu modo de vida. Essa forma de deslocamento priva as pessoas de seus meios de produção e as desloca de seus modos de vida. (CMB, 2000, p. 102).

Para o MAB, a luta pelos direitos humanos deve ser compreendida em conjunto com as lutas políticas. Isso significa dizer que os direitos humanos não devem ser compreendidos como fatos ou como garantias determinadas, por mais que do ponto de vista da legislação aparentem ser. Na verdade, a efetiva garantia desses direitos só se afirma no processo histórico de reivindicações populares (MAB, 2013). Dentro dessa linha, Flores (2009) se refere aos direitos humanos como resultado de lutas que os seres humanos empreendem para a obtenção dos bens necessários à vida.

Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH)3, instituiu, em 2006, a Comissão Especial Atingidos por Barragens. Esse processo se deu a partir do recebimento das denúncias feitas pelo MAB em relação às graves violações de direitos ocorridas na construção de barragens hidrelétricas no Rio Uruguai no Paraná (MAB, 2005).

Nesse sentido, o trabalho da Comissão baseou-se em analisar sete processos de construção, implantação e operação de barragens nas diferentes regiões do país. As barragens selecionadas foram Tucuruí no Pará, Cana Brava em Goiás, Aimorés entre Minas Gerais e Espírito Santo, Emboque e Fumaça em Minas Gerais, Foz do Chapecó entre Santa Catarina e Rio Grande do Sul, e Acauã na Paraíba (CDDPH, 2010).

Através do acompanhamento e da realização de visitas às regiões das barragens citadas, a Comissão produziu o documento intitulado como “Relatório Final da Comissão Especial Atingidos por Barragens”, que aponta a existência da violação sistemática de pelo menos dezesseis direitos humanos nesses processos, a saber:

1. Direito à informação e à participação; 2. Direito à liberdade de reunião, associação e expressão; 3. Direito ao trabalho e a um padrão digno de vida; 4. Direito à moradia adequada; 5. Direito à educação; 6. Direito a um ambiente saudável e à saúde; 7. Direito à melhoria contínua das condições de vida; 8. Direito à plena reparação das perdas; 9. Direito à justa negociação, tratamento isonômico, conforme critérios transparentes e coletivamente acordados; 10. Direito de ir e vir; 11. Direito às práticas e aos modos de vida tradicionais, assim como ao acesso e preservação de bens culturais, materiais e imateriais; 12. Direito dos povos indígenas, quilombolas e tradicionais; 13. Direito de grupos vulneráveis à proteção especial; 14. Direito de acesso à justiça e a razoável duração do processo judicial; 15. Direito à reparação por perdas passadas; e 16. Direito de proteção à família e a laços de solidariedade social ou comunitária. (CDDPH, 2010, p. 16).

Para o MAB (2011, p. 9), o “Relatório Final da Comissão Especial Atingidos por Barragens” é uma comprovação da existência de “um padrão nacional de violação dos direitos humanos em barragens, em que os principais responsáveis são as empresas, os governos e o Estado brasileiro”. Nesse sentido, ainda propõe que, ao considerar que historicamente foram construídas barragens sem a garantia de compensações sociais adequadas aos atingidos, “existe uma dívida social histórica para com essas populações. Esta dívida ainda não foi paga e aumenta em cada construção de novas obras” (MAB, 2011, p. 23).

No contexto das barragens de acúmulo de água no Semiárido, somados aos processos de violações de direitos já citados, é imprescindível retratar a violação recorrente do direito ao acesso a água, o que revela o caráter contraditório das obras. Para Assunção e

3 O CDDPH foi um órgão colegiado, criado pela Lei nº 4.319, de 16 de março de 1964, com representantes de setores ligados aos direitos humanos. O colegiado transformou-se em Conselho Nacional dos Direitos Humanos pela Lei n° 12.986, de 2 de junho de 2014.

Linvigstone (1993), presume-se que a acumulação de água nos reservatórios deveria estender o acesso à água de forma regular para a população, a pecuária e as culturas, além de permitir estabilizar a disponibilidade de água de um ano para o outro, porém, ainda segundo os autores, na prática, esses benefícios não são realizados, principalmente pela ausência de um plano integrado de desenvolvimento associado à construção dos açudes.

Oliveira (2018), ao analisar obras desse tipo no Semiárido, sublinha que entre as diversas violações de direitos em que são submetidas às populações da região, se destacam as violações dos direitos de acesso a água potável, à melhoria continua nas condições de vida, o direito ao trabalho e a um padrão digno de vida, e o direito a proteção à família e a laços de solidariedade social ou comunitária.

Na visão de Campos et al. (2017), um limitante nesses processos é o fato de que, muitas vezes, mesmo as populações atingidas, não dominam quais são os direitos que possuem, e que por isso, estão sendo violados. Essa é, para os autores, uma problemática que depõe contra os atingidos, já que resulta, na maioria das vezes, na completa omissão por parte dos responsáveis pela obra.

Essa problemática é agravada devido ao fato de que, no Brasil, não há uma legislação específica que ampare os direitos das populações atingidas por barragens. A ausência de dispositivos legais para essas populações é uma questão histórica, como aponta Felipe (2016):

A única política pública para atingidos por barragens era o decreto-lei 3.356 de 1941 que permite a desapropriação de terras para implantação de empreendimentos que possuam utilidade pública para o país. [...] Dessa forma, os atingidos que tinham direitos jurídicos legais acerca da mitigação dos impactos sociais decorrentes desses empreendimentos eram os que possuíam a escritura pública da terra. (FELIPE, 2016, p. 22).

O referido decreto corrobora com a definição restritiva e limitada do conceito de atingido, de modo que não assegura processos de negociação coletiva de preços, o direito ao reassentamento e a livre opção, assim como nega os direitos daqueles que não são proprietários das terras e benfeitorias alagadas, mas que tem todas as suas dinâmicas de vida modificadas com a construção da obra (MAB, 2013).

Somente em outubro de 2010, o então presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, a partir de ampla articulação do MAB com a Secretaria Geral da Presidência da República e o Ministério de Minas e Energia (MME), assinou o Decreto nº 7.342, de 26 de outubro de 2010, instituindo o cadastro socioeconômico para identificação, qualificação e registro público da população atingida por empreendimentos de geração de energia

hidrelétrica, criando o Comitê Interministerial de Cadastramento Socioeconômico, no âmbito do MME, e adotando outras providências (BRASIL, 2010). Entre outros aspectos, o Decreto consolida a formalização da ampliação do conceito de atingido, como é possível verificar a seguir:

Art. 2º O cadastro socioeconômico previsto no art. 1º deverá contemplar os integrantes de populações sujeitos aos seguintes impactos: I - perda de propriedade ou da posse de imóvel localizado no polígono do empreendimento; II - perda da capacidade produtiva das terras de parcela remanescente de imóvel que faça limite com o polígono do empreendimento e por ele tenha sido parcialmente atingido; III - perda de áreas de exercício da atividade pesqueira e dos recursos pesqueiros, inviabilizando a atividade extrativa ou produtiva; IV - perda de fontes de renda e trabalho das quais os atingidos dependam economicamente, em virtude da ruptura de vínculo com áreas do polígono do empreendimento; V - prejuízos comprovados às atividades produtivas locais, com inviabilização de estabelecimento; VI - inviabilização do acesso ou de atividade de manejo dos recursos naturais e pesqueiros localizados nas áreas do polígono do empreendimento, incluindo as terras de domínio público e uso coletivo, afetando a renda, a subsistência e o modo de vida de populações; e VII - prejuízos comprovados às atividades produtivas locais a jusante e a montante do reservatório, afetando a renda, a subsistência e o modo de vida de populações. (BRASIL, 2010, s. p.).

Mesmo considerando a importância do citado Decreto, esse instrumento ainda possui muitas limitações e não contempla a diversidade de barragens e de diferentes tipos de impactos ocasionados por essas obras no país, a exemplo das barragens de acúmulo de água. Como proposição, o MAB sugere a criação de uma Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Barragens (Pnab), que defina quem são os atingidos, quais são os direitos básicos dessas populações, os órgãos governamentais responsáveis pela implementação da política, assim como as fontes de financiamento.

A proposição da Pnab foi apresentada em fevereiro de 2015 como o Projeto de Lei nº 29/2015, que “Institui a Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Barragens (Pnab), e dá outras providências” (LEITÃO, 2015, p. 01). Essa proposição foi levada a arquivamento e desarquivada recentemente em janeiro de 2019, após o rompimento da Barragem I da Mina de Córrego do Feijão, no município de Brumadinho, em Minas Gerais.

2.2 Territorialização, desterritorialização e reterritorialização de comunidades rurais