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1.1. A Ficção: Refazendo Mundos

1.1.4. Bartleby

Sabe-se que na conferência que não chegaria a escrever, Calvino se referiria a Bartleby,

The Scrivener, de Herman Melville46. O conto de Melville é um caso a observar.

A história do estranho escrivão, empregado como copista num escritório de notário, que pronuncia, como resposta às interpelações do seu empregador, apenas a frase “I would prefer not to”47, na sua recusa, primeiro a conferir as cópias, depois a fazer recados, posteriormente na desistência das suas funções de copista, e, progressivamente, de sair do escritório, do edifício, e, finalmente, na prisão, de comer, acabando por morrer e por despertar rumores após a sua morte, tem sido alvo de inúmeros estudos, interpretações e apropriações. A perplexidade

45 CALVINO, I., As Cidades Invisíveis. Lisboa: Editorial Teorema, 2006. p. 165.

46 Esther Calvino menciona-o na sua introdução a Seis Propostas Para o Próximo Milénio. 47

Ver MELVILLE, H., «Bartleby, The Srivener». In SCHOLES, R., Elements of Fiction: An Anthology. New York: Oxford University Press, 1981. pp. 143-174. Na edição portuguesa da Assírio e Alvim a frase é traduzida como “preferiria não o fazer”. Ver MELVILLE, H., Bartleby. Lisboa: Assírio e Alvim, 2005.

23 e o fascínio que o conto tem despertado em escritores e filósofos, para além de estudiosos da literatura, não serão alheios à curiosa ‘fórmula’48

empregue pelo escrivão Bartleby.

Gilles Deleuze considera que Bartleby não é uma metáfora do escritor nem um símbolo do que quer que seja, mas sim um texto que significa apenas o que diz literalmente: e o que diz é, designadamente, a fórmula ‘I would prefer not to’. Para Deleuze, esta literalidade consiste na agramaticalidade da expressão pronunciada pelo escrivão. Deleuze define uma expressão agramatical como a expressão limite de uma série de expressões correctas. Conjugando elementos dessas expressões que, de outro modo, teriam um significado preciso, as expressões agramaticais estariam carregadas de uma anomalia intuída – porque oscilariam entre expressões correctas –, na construção gramatical, que não seria certa nem errada, tornando-se indetermináveis. Seria esta indeterminabilidade que impossibilitaria o discurso, como se tudo tivesse sido dito, gerando o torpor que prolifera, em Bartleby e nos que o rodeiam, após a sua pronunciação. E, de acordo com o filósofo, fá-lo porque elimina qualquer particularidade ou referencialidade49 da linguagem, cindindo-a do seu próprio território – da sua própria natureza simbólica – e tornando as palavras indistinguíveis: não expressam uma aceitação nem uma recusa.

Funcionando como uma fórmula para o vácuo que se desenvolve em vórtice, as palavras de Bartleby suspendem a possibilidade de comunicação e, por isso mesmo, traçam a sua sorte logo com a primeira enunciação. Se, como afirma Deleuze, “um grande livro é sempre o inverso de outro que apenas poderia ser escrito na alma”50

, então as palavras de Bartleby parecem dizer, literalmente, a relutância em passar além da ‘contingência’, no sentido da formulação – e, consequentemente, ditam o destino do escrivão.

Giorgio Agamben, por seu turno, em «Bartleby, or On Contingency»51, depois de radicar a ideia do escriba que não escreve – da qual Bartleby seria o derradeiro modelo – numa passagem do livro terceiro do tratado sobre a alma – De Anima –, em que Aristóteles compara o noûs, intelecto ou pensamento em potência, a uma tábua de escrever sobre a qual nada está

48

Como a define Gilles Deleuze em DELEUZE, G., «Bartleby; Or, The Formula». In Essays Critical and

Clinical [Em linha]. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1997. pp. 68-90. [Cons. 21 Dez. 2012].

Disponível em http://pt.scribd.com/doc/54870866/Bartleby-or-the-Formula.

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De resto, é Bartleby que afirma não ser “particular”: “but I am not particular”. Ver MELVILLE, H., «Bartleby, The Srivener». In SCHOLES, R., Elements of Fiction: An Anthology. New York: Oxford University Press, 1981. pp. 169-170.

50 “A great book is always the inverse of another book that could only be written in the soul”. DELEUZE, G.,

«Bartleby; Or, The Formula». In Essays Critical and Clinical [Em linha]. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1997. p. 72. [Cons. 21 Dez. 2012]. Disponível em http://pt.scribd.com/doc/54870866/Bartleby-or-the- Formula.

51 A edição consultada para esta abordagem foi a da Stanford University Press: AGAMBEN, G., «Bartleby, or

On Contingency». In Potentialities [Em linha]. Stanford (CA): Stanford University Press, 1999. pp. 243-271. [Cons. 21 Dez. 2012]. Disponível em http://pt.scribd.com/doc/4675938/Agamben-Bartleby-or-on-Contingency.

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ainda escrito, traça uma genealogia para a ideia do pensamento em potência, que passa pelas alterações introduzidas na Suda52 bizantina – nomeadamente a comparação deste pensamento em potência à tinta em que a pena com que o escriba escreve é imersa e com a qual é tingida.

Partindo da formulação fornecida por Aristoteles, Agamben argumenta que o escriba que não escreve traduz a ideia de perfeita potencialidade, em que a potência de ser é também, sempre, a potência de não ser: entre os dois, um ‘nada’ separa o não ser “do acto de criação”53

. Neste sentido, como escrivão que deixou de escrever, Bartleby seria a figura extrema do ‘nada’, como pura, absoluta, potencialidade de que toda a criação deriva. Ainda de acordo com o autor – que recorre, desta vez, ao pensamento de Leibniz –, desta pura potencialidade, que pode simultaneamente ser e não ser, diz-se ser ‘contingente’. A figura da ‘contingência’ coincidiria com o domínio da liberdade humana, na sua oposição à ‘necessidade’.

Agamben refere-se, de seguida, às implicações da potencialidade de ser e de não ser na possibilidade de questionamento do passado, para identificar dois princípios que devem integrar o equacionamento da ideia de potencialidade: o da irrevocabilidade do passado, porque não há potencialidade do que foi, mas apenas do que poderá, ou não, vir a ser; e o da necessidade condicionada, que limita a força da ‘contingência’ – portanto da possibilidade de ser e de não ser – no que respeita à actualidade.

Ao longo do ensaio, o autor discute estes dois princípios, para concluir que a força lógica do argumento da necessidade condicionada, expressa na ideia de não-contradição, é incerta, e que a irrevocabilidade do passado pode ver-se redimida de duas maneiras: em primeiro lugar, através do recurso à memória, que torna o que aconteceu incompleto, e completa o que nunca aconteceu, porque a memória nunca é o que aconteceu nem o que não aconteceu, mas sim a sua potencialização, ou o torná-los a ambos possíveis outra vez54; e, em segundo lugar, o recurso à ideia nietzscheniana do eterno retorno, do qual a repetição seria uma imagem, que eliminaria a diferença entre mundo actual e mundos possíveis, restituindo, numa perspectiva estritamente lógica, a potencialidade ao que foi.

Enquanto copia, Bartleby seria a expressão desta última solução mas, na observação ulterior da comparação entre um eterno retorno e a repetição, há uma consequência que se impõe: a eterna, ou infinita, repetição do que foi, abandonaria, em última análise, o potencial para não ser, e, por isso mesmo, o escrivão de Melville tem de parar de copiar.

52 Léxico bizantino. Ibid. p. 243.

53 “[F]rom the act of creation.” Ibid. p. 247.

54 Esta ideia articula-se com a de que os factos são tão construídos como a ficção, e com a de que a ficção

25 Mas este é apenas um degrau na construção de Melville. Para Agamben, a “verdade intolerável”55

que Bartleby transporta consigo é decifrada na parte final do conto, com a referência ao rumor sobre o emprego anterior do escrivão: as cartas que nunca foram entregues, foram escritas e, como tal, marcam a passagem da potencialidade para a actualidade, e, consequentemente, indiciam a ocorrência (prévia) de uma contingência, contudo, como ‘cartas mortas’56

, são também a cifra para acontecimentos que poderiam ter tido lugar mas nunca o tiveram, porque se integram numa actualidade de acontecimentos ‘compossíveis’57

, factor que dita portanto, derradeiramente, a incapacidade da pura potencialidade.

Neste sentido, de todos os mundos possíveis, parece haver um mais possível, que seria aquele que equilibraria um maior número de acontecimentos compossíveis. Em consequência da aparente impossibilidade factual da contingência, de que Bartleby seria a imagem, assistimos à catadupa de desistências do escrivão e, por fim, ao seu destino.

Enrique Vila-Matas, em Bartleby & Companhia, escreve notas de rodapé que comentam um texto invisível sobre a síndrome de Bartleby na literatura: a dos escritores que nunca chegaram a escrever ou que renunciaram à escrita58. À luz dos ensaios de Deleuze e Agamben, é possível compreender porque Vila-Matas afirma, sobre Joseph Joubert, que “passou a vida à procura de um livro que nunca escreveu, embora, se olharmos bem, o escrevesse sem o saber, pensando em escrevê-lo”59. Dir-se-ia que este livro é aquele que Deleuze afirma só poder ser escrito na alma, mas também a reserva hesitante que introduz a pura potencialidade, e portanto a contingência, de que fala Agamben, que acarreta consigo a incapacidade de agir: escrevê-lo eliminaria a sua potência para não ser e, por isso mesmo, determinaria a sua circunscrição a um equilíbrio entre actualidades compossíveis.

Esta região de pura potencialidade, de contingência, de hesitação entre ser e não ser, é uma espécie de região zero da ficção60: a partir dela, a decisão, desde logo condicionada, de tornar actual a sua versão possível. A integração desta versão numa actualidade de compossíveis situa-a no confinamento da descrição condicionada, mas o modo como cada

55

“[T]he intolerable truth”. AGAMBEN, G., «Bartleby, or On Contingency». In Potentialities [Em linha]. Stanford (CA): Stanford University Press, 1999. p. 269. [Cons. 21 Dez. 2012]. Disponível em http://pt.scribd.com/doc/4675938/Agamben-Bartleby-or-on-Contingency.

56 Refere-se a expressão utilizada no texto de Melville e citada por Agamben: “dead letter”. Utilizou-se apenas

uma aspa porque não se trata de uma citação directa, uma vez que é usada no plural. Ver ibid.

57

Traduziu-se assim a expressão de Agamben usada ao longo do texto: “compossible”. Ver ibid. pp. 243-302.

58 VILA-MATAS, E., Bartleby &Companhia. Lisboa: Assírio em Alvim, 2001. pp. 12-13. 59 Ibid. p. 65.

60 E por isso mesmo Joubert, embora autor sem livros, não ignorou que se mantinha “na pura região da arte”.

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uma dessas versões reorganiza a nossa percepção dos dados da experiência, envolvendo uma construção do domínio cognitivo – operada pelos processos de funcionamento da nossa cognição, que Goodman identifica, e a que se fez referência na terceira secção deste texto, que implicam a capacidade de detectar categorias, no estabelecimento da correlação entre os dados da experiência e a sua formulação semântica, por exemplo; a capacidade de reconhecer e compreender padrões, na transposição desses dados para conceitos abstractos, por exemplo; e ainda, a realização de um processo indutivo, subjacente às operações anteriores, mas também à capacidade de articular, num discurso consequente, os indícios fornecidos pela experiência, por exemplo –, define-as também como produtoras e transformadoras de conhecimento.

Mas como coisas efectivadas, reais enquanto formulação – enquanto a escrita possível que a pena tingida no pensamento em potência realiza –, ainda que com denotação nula, as versões ficcionais de mundos fornecem também a experiência para novos procedimentos cognitivos, dos quais, para o caso, e em relação a Bartleby, os ensaios de Deleuze e Agamben, mas também outras versões ficcionais como a de Vila-Matas, são exemplo.

Através de Bartleby, o escrivão fictício que não escreve, de Melville, Agamben reflecte sobre o conceito de ‘contingência’, e Deleuze sobre os limites do território da linguagem. Ambos os ensaios são, eles próprios, produção e transformação de conhecimento através dos modos como reorganizam, também, os dados fornecidos pela criação de Melville, envolvendo o mesmo tipo de comportamento cognitivo, ao pensarem o próprio acto criativo, num caso, e a possibilidade de comunicação, no outro. Mas também a Vila-Matas, Bartleby fornece a imagem dos sinais que – recolhidos – conduzem a uma nova construção, uma nova versão ficcional de mundo que formula, desta feita, a impossibilidade de formulação.

Facultando o acesso às características que referencia de um modo particular, Bartleby projecta-as simultaneamente numa actualidade de compossíveis reorganizando os modos de observá-la e compreendê-la.

Deleuze começa o seu ensaio declarando que Bartleby não é metáfora nem símbolo. Fá-lo para afirmar as consequências da literalidade da fórmula, mas, como ficção, Bartleby, The

Scrivener é, de facto, uma construção dentro de um sistema simbólico, e é porque o uso de

símbolos envolve um processo cognitivo que Bartleby tem a capacidade de projectar a sua própria forma de reorganizar os dados da experiência e de fornecer a matéria para análises como a de Deleuze. E também como ficção, Bartleby recorre largamente à metáfora, um

27 dispositivo não literal que acarreta, na caracterização de Goodman61, uma mudança de ‘domínio’ e de ‘região’62

. Esta mudança desencadeia um conflito: a metáfora só se efectiva se a aplicação do termo for, em certa medida, “contra indicada”63. Ora, é precisamente a identificação de um conflito desta natureza que permite a Agamben a elaboração de um percurso filosófico sobre a contingência, a partir da imagem de Bartleby, um escrivão que deixa de escrever, mas sobretudo, essa identificação, permite também a Agamben a abordagem da derradeira cifra que fecha o discurso sobre a contingência.

Bartleby é metafórico e concretiza-se através da simbolização, e é precisamente por isso que tem a capacidade de referenciar, projectando-se nos nossos mundos e reorganizando-os à medida que produz e transforma conhecimento. A fórmula agramatical que o escrivão pronuncia pode ser literal, mas na medida, sim, em que, desmontada, denota aquilo que a construção de Melville enuncia simbolicamente, também através do recurso à metáfora.

Se, como afirma Nelson Goodman64, a coerência pode ser interpretada de vários modos mas requer sempre consistência, Bartleby, na sua coerência inexpugnável, da fórmula à imagem que a sustenta65, poderia bem ser uma ilustração da ‘consistência’: título da última, e nunca escrita, conferência de Calvino.

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