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Fonte: Postcard from Bishkek. Disponível em: http://ianbek.kg/wp- content/uploads/2010/11/Enclaves.jpg

Descontentamentos com a demarcação de 1924 não cessaram com o passar dos anos e petições de reivindicações sobre terras estavam proibidas por ordens de Stalin. Após sua morte, entre 1955-57, o mapa centro asiático sofreu um redesenho e os países do Vale Fergana novamente avançaram com suas reivindicações. Com efeito, o Quirguistão acabou recebendo terras ao sul do Vale,

20 Do inglês “Sart” ou “sartlar” em russo; foi uma etnia absorvida e dividida entre os principais grupos étnicos do Vale Fergana.

ao redor da atual província de Batken e, assim, isolou terras tajiques (Vorukh) e uzbeques (Sokh e Shakhimardan) em enclaves. Uma comissão mista Quirguize- Tajique revisou e publicou um novo mapa, em 1957; o lado tajique, entretanto, não reconheceu sua legitimidade, ao entenderem que a nova demarcação violava a integridade territorial tajique (UNDP, 2011). Durante todo o período soviético a questão ficou sem resolução.

O fim da Segunda Grande Guerra imprimiu uma nova realidade à Ásia Central: áreas recapturadas pelo Exército Vermelho tornaram-se alvo de caça à colaboradores alemães e minorias étnicas problemáticas (notadamente, de religião muçulmana) ao Kremlin. Benites (2007) destaca a migração forçada de vários grupos a partir de 1944: os Tártaros, deportados aos Urais, Sibéria e Ásia Central, totalizando 180.000 entre 250.000. Outro grupos, majoritariamente oriundos do sul da Rússia e dos Bálcãs, foram os Meskhetianos, Inguches, Chechenos, Gregos, Búlgaros, Armênios e os Alemães. Benites (ibid) nos informa que boa parte dos deslocados morreram no translado e nenhuma política de assentamento foi aplicada pelos soviéticos; ainda que nenhum conflito violento tenha sido reportado entre tais minorias e grupos já instalados e nativos da Ásia Central em meados do século XX21. Bichsel (2009) aponta, contudo, que em 1989 uma disputa em um mercado local na área uzbeque do Vale Fergana levou à violência entre meskhetianos e uzbeques em várias cidades, resultando na expulsão de vários assentamentos meskhetianos do Vale.

Enquanto a distribuição étnica e as várias delimitações territoriais podem ser identificadas como componentes de conflito na Ásia Central, a irrigação pode ser observada tanto como um elemento de papel crucial na vida rural, como também fonte de disputas. Partindo dos dois grandes rios que compõem a bacia do Aral, Amu-Darya e Syr-Darya, a administração soviética construiu mais de 32 mil km de canais, 45 represas e mais de 80 reservatórios. Assim, o governo “transformou areia e pó em uma das maiores regiões de cultivo de algodão” (WINES, 2002).

É possível observar a atenção da cúpula do governo revolucionário com a função estratégica da região centro asiática. Valentini et al (2004) destaca que em maio de 1918 era assinado o primeiro ato legal entre a liderança soviética e a

21 Na administração Khrushchev, a partir de 1956, foi feita a repatriação de algumas minorias, como os Búlgaros, Inguches e Chechenos. As terras e posses deixadas foram dadas a russos e ucranianos.

RSS do Turquestão: “Decreto para Alocação de 50 milhões de rublos para Trabalhos de Irrigação no Turquestão e na Organização para tais Trabalhos”. O documento alocava os vales de Fergana, Chui e Zerafshan como prioridades.

Entre os anos de 1932 e 1937 a Ásia Central, no geral, recebeu um aumento significativo de construções de canais, reservatórios e de mecanização agrícola, em parte com o intuito de voltar aos níveis produtivos da época pré- revolucionária, mas também para atender à crescente demanda da indústria soviética. Como consequência, a área irrigada cresceu meio milhão de hectares (VALENTINI et al. 2004). Outra implementação foi a transformação da organização agrícola, modificando as fazendas coletivas em fazendas estatais, fazendo com que somente nacionais uzbeques, por exemplo, tivessem acesso a fazendas em terras uzbeques. Ao passo que esta estruturação acarretava melhor organização trazia, contudo, potencial de conflito em zonas de fronteira e, futuramente, nos enclaves.

Os bons resultados dos projetos dos anos 30 e a dependência estreitada com a Ásia Central durante o período da Guerra Mundial estimulou Moscou a investir ainda mais em tecnologia e em sistemas de irrigação a partir dos anos 50 (THURMAN, 1999 apud BICHSEL, 2009); as principais cidades do Vale Fergana foram alvo da decisão número 3975, de 1952, do Conselho de Ministros da URSS, estipulando “desenvolvimento das terras, irrigação e futuro desenvolvimento da produção de algodão” (ASHIRBEKOV e ZONN, 2003). Para tanto, uma mobilização em massa de populações adjacentes (realocando populações vivendo nas montanhas e encostas) foi realizada (SAKIEV, 2009), e indoutrinada pela propaganda soviética; Valentini et al (2004: 27) relatam o intenso esforço local:

Millions of free citizens who awaited arrested at any moment had to demonstrate a forced heroism to almost no purpose. No wonder the Big Fergana Canal was dug in only forty-five days, if one hundred sixty thousand workers were daily fetched to dig out manually sixteen and a half million cubic meters of soil within one a half months!

A presença de um governo central na atuação e desenvolvimento de um sistema de irrigação na região é explicada pela “hipótese hidráulica”. A hipótese postula que sistemas de irrigação de larga escala conduzem a coordenações centralizadas e burocracias administrativas, o que, por sua vez, leva a uma maior integração política. “Uma grande quantidade de água pode ser canalizada e

mantida dentro dos limites somente por uso de trabalho em massa; esta massa trabalhista deve ser coordenada, disciplinada e liderada.” (WITTFOGEL, 1957, apud BICHSEL, 2003).

Neste período a agricultura irrigada expandiu das planícies até as áreas marginais dos sopés. A expansão só foi possível devido a instalação de bombas d'água e de canais operados por gravidade, já que a topografia demandava tais empreendimentos (BUCKNALL et al., 2003 apud BICHSEL, 2009); os investimentos na bacia do mar de Aral continuaram até o fim da União Soviética, incorporando 4.1 milhões de hectares em 1960 e passando a 7,4 milhões em 1990. A especialização agrícola da região foi tão grande que 90% do algodão, 40% do arroz e 32% das frutas produzidas na URSS partiam da Ásia Central (ASHIRBEKOV e ZONN, 2003).

Dada a vocação da região como fornecedora de matérias-primas ao “centro” soviético, uma leitura superficial das províncias centro asiáticas concluiria que a região encaixava-se no tradicional esquema colonial europeu, ao manter certa autonomia da metrópole, exportando matérias-primas (basicamente, o algodão) e importando produtos manufaturados. Contudo, Collins (2006: 65) argumenta que o “Colonialismo não é uma metáfora perfeita para o período soviético; o colonialismo soviético na Ásia Central foi, em várias maneiras, menos discriminatório, menos explorador e mais desenvolvimentista do que o colonialismo europeu na África e Ásia”.

É interessante ressaltar que a estrutura hídrica construída na era soviética não se limitava às delimitações formais das Repúblicas Soviéticas. Instalações de recursos hídricos foram construídas para atender às necessidades de irrigação transpassando as fronteiras. Um exemplo proeminente é o Reservatório Toktogul. Construído nos anos 70, na fronteira oeste do Quirguistão, foi designado para regular a distribuição sazonal de água na bacia do rio Syr Daria e aumentar a disponibilidade de água para irrigação no Uzbequistão e Cazaquistão. Ao passo que o reservatório armazenava água durante o inverno, no verão a água era liberada para a agricultura nos países rio abaixo e gerava energia elétrica para os países rio acima (BICHSEL, 2009).