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3. ANÁLISE SEMIÓTICA DO CORPUS

3.1. Textos xilográficos

3.1.4. Beira-mar: X2-JCL

Essa xilogravura, toda em preto e branco, medindo 15x22, expõe três mulheres jovens, possuidoras de corpos esculturais, usando biquíni com reduzidíssimas dimensões, na beira mar. São três atores apresentados pelo papel temático e não pelos nomes próprios que funcionam como um só sujeito semiótico, uma vez que um só é o objeto de valor. Trata-se de um sincretismo actancial.

Esses atores se posicionam, cada um, projetando um pé como se estivessem batendo esse pé em tom de desafio, o que significa no gestuário popular, o nascer de uma

aventura, como se dissesse: “pode vir quente que eu estou fervendo”, instaurando-se

como sujeito de um querer amar sem medo de ser feliz.

Vale dizer que esses atores encontram-se em posição ereta e com as mãos sobre a cintura e/ou quadris, dando a impressão de estar se acariciando, performatizadas como

17 Há casos em que não há instrumentos musicais, mas nem por isso as pessoas ficam sem dançar. Na base

do improviso, fazem ritmo e acabam dançando, ritmados por cantos, assobios e estalos dos dedos, intercalados com as batidas contra o peito, batidas nas cadeiras, mesas, latas etc. Tudo isso estimulado por cachaça, vinho, café e delícias feitas a partir da mandioca.

quem pousa para fotografia. Mais que isso, com as costas para um mar vazio de pessoas, com duas jangadas à deriva.

Segundo Cascudo (1987, p.91), essa “mímica apoiada na cintura colabora vivamente no processo da comunicação inverbal”, assim como, “Por ambivalência, mão na cinta, praticamente idêntica, é posição graciosa, elegante, jovial, denunciando mocidade, alegria.” (ib.id. p. 99). No que se refere à barriga à amostra, coincidentemente nessas mulheres, também é oportuno lembrar as palavras desse autor ao avaliar esse gesto:

A mostra comum do umbigo feminino, na contemporaneidade usual, provirá do simbolismo umbelical, a cicatriz da comunicação fetal, de que apenas Adão se libertou. Será atração erótica, índice de fecundidade sadia, segundo a Ofalomancia. Seu aspecto regular, sem deformação desfigurante quanto a conformação somática, denunciará toda uma harmoniosa compleixão orgânica, no funcionamento interior. É uma antiga garantia de saúde. (ib.id. p. 236).

Nas três mulheres, notamos, pelo formato do tórax e do abdômen, que as curvas da cintura em combinação com o biquíni lembram o formato de uma cabeça, cujos olhos correspondem aos seios, o nariz, ao umbigo, e a boca, à virilha que está encoberta pelo biquíni, fetiches esses que enfatizam a erotização do corpo comum às três figuras femininas. Aliás, o fato de serem três mulheres, num espaço litoral onde tudo se compõe aos pares (duas aves, duas jangadas, dois coqueiros), e tudo se projeta em abundância e vitalidade, rompe uma estrutura numérica propositada e impar do número três, que além de portar outros significados contextuais, corresponde à fartura de mulheres que é um número satisfatório para o desejo masculino. Essa prática é bastante cultuada na literatura popular, na qual um homem se interessa pelas três que se oferecem, reciprocamente, para o amor, o que dificulta a escolha de uma delas para ser a mulher amada. Caso o homem conquiste apenas uma destas, tudo ocorrerá bem, uma vez que as outras duas podem se

divertir, acompanhadas uma da outra, enquanto o casal curte as intimidades do namoro de forma mais reservada. Servem de exemplo, As fulô de puxinanã: “Três muié ou três irmã,/ Três cachôrra da mulesta,/ Eu vi num dia de festa,/ No lugar Puxinanã. (LUZ,

1988)” e No meio das meninas: “É Rosa, Marieta e Aurelina,/ Vou dançar com essas três

meninas” (TRIO NORDESTINO, 1970).

Na superfície de fundo dessa xilogravura, está exposto um mar coerente e sugestivo com o clima sensual dessas mulheres, cujos traços que representam as ondas, guardam a aparência formal das células móveis sexuais masculinas que se movimentam como se essas mulheres fossem três grandes óvulos. Esse movimento promove o deslocamento de uma das jangadas no sentido de preencher uma lacuna visual entre duas palhas do coqueiro, como se o próprio vento promovesse uma dança entre ambos numa simetria perfeita, um espetáculo da natureza.

Mais à distância, já em alto mar, temos a outra jangada soprada pelo vento, seguida por duas aves que parecem guarnecê-la. É oportuno lembrar que nessas jangadas deslumbram símbolos de triângulos, que além de comporem outros espaços na xilogravura, destacam-se também no biquíni das mulheres, sugerindo o orgão reprodutor feminino. Do lado direito dessas mulheres, é destacado um coqueiro exuberante, ocupando metade do panorama, dando a ideia de fartura, cujas folhas guardam simetrias com as formas das jangadas e das duas aves que sobrevoam o mar. Folhas que vêm em posição contrária, do lado esquerdo da paisagem, permitem considerar a existência de um segundo coqueiro que está encoberto, com exceção das três folhas que o intercruzam,

cujas pontas das folhas acariciam “as intimidades do coqueiro” ajudando na polinização

dos cachos, ainda em flor. Tudo em reciprocidade ativada pelo ritmo do vento. Isso faz lembrar a música Imbalança18, numa homenagem ao baião dançado na beira do mar (GONZAGA; DANTAS, 1952).

Vale observar que o enunciador põe em jogo o discurso existente na identidade masculina, revelando uma carência constante e um desejo apetitoso pela nudez feminina. Esse é seu maior objetivo e tudo ele faz para tê-lo e/ou possuí-lo, o que muitas vezes dá substância para a existência de uma ansiedade de domínio sobre o gênero, que vulgamente é chamado de machismo.

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Óia a paia do coqueiro/ Quando o vento dá,/ Óia o tombo da jangada / Nas ondas do mar, / Óia o tombo da jangada / Nas ondas do mar, / Óia a paia do coqueiro / Quando o vento dá (...)”

O enunciador é narrador e, portanto, encontra-se na zona distal dos fatos narrados no enunciado, tanto no tempo (inespecífico) quanto no espaço (praeiro). No entanto, os atores (as três mulheres) se encontram na zona proximal. Não se divisa a presença de nenhum outro ator, embora se encontra pressuposta uma presença masculina pela forma como as mulheres estão mostradas. Nesse sentido, objetos são todos fetiches, pertencendo, portanto, à fronteira empírica das zonas antrópicas.

Quanto ao nível fundamental, percebemos o conflito entre natureza e cultura. A natureza é figurativizada pelo mar, coqueiros, aves e corpo das mulheres e a cultura, pelas jangadas, posturas, gestos e trajes apropriados para esse ambiente. Esta oposição, vista através do octógono, toma a seguinte forma:

(Esquema 11) Cultura Natureza Não-cultura Criação divina Criação humana

Tensão dialética da narrativa

Não-natureza

A tensão dialética da narrativa se estabelece entre natureza e cultura. As relações entre natureza e não-cultura definem a criação divina, figurativizados em mar, coqueiros e aves, enquanto que cultura e não-natureza definem a criação humana, representa pelas jangadas e pelos biquínis das mulheres . Não-natureza e não-cultura correspondem à inexistência semiótica que está representada pelo zero cortado.