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É Um Bem Necessitado, Bem Sujinho

III- OS SIGNIFICADOS DA CATAÇÃO DE LIXO NA (DE)FORMAÇÃO DA

5. É Um Bem Necessitado, Bem Sujinho

O Creusa ( E.E.F.M Creusa do Carmo da Rocha)95 é a escola onde Zezinho estuda. Na Granja os moradores chamam as escolas pelos primeiros nomes, o que demonstra, talvez, uma busca de aproximação, de intimidade com a escola: O Creusa, o Jussiê, o Sergim, o Conceição e o “Laia”(Lions). A escola é grande, mas ainda não o suficiente para receber seus 3.300 alunos (outras 1000 crianças estudavam em anexos desta escola). Várias salas de um lado e outro, uma quadra, metade de areia, metade de cimento; depois do portão de ferro, uma entradinha e outro portão, do tipo de uma grade de ferro. Ali há um homem, uma espécie de vigia, segurança ou porteiro que pergunta, às pessoas que chegam o que elas querem e com quem querem falar. Braços da violência, engendrada por relações sociais desumanas, abraçam a escola, a casa, a rua das crianças e adolescentes das cidades contemporâneas que por um lado respiram ares de modernidade, por outro constroem escolas com traços característicos de cadeias.

Dalina, a coordenadora, inicialmente refere-se às crianças catadoras de um modo geral e não menciona diretamente a presença delas na escola. Quando falamos de Zezinho, ela não lembrou de imediato, mas à medida que fomos acrescentado detalhes ela começou a identificá-lo:

[...]é um que tem uns 12 anos, é moreno, vive em condições bem precárias? Eu não sei muita coisa sobre ele não, sei que é muito carente, tem uma cicatriz no rosto, né? Não sei o que foi aquilo, parece que ele se furou com um pau, um tempo tava todo infeccionado. Acho que os professores dele sabem dizer mais coisas sobre ele. Se fizer um levantamento junto aos professores, vai aparecer outros que catam lixo, nas turmas de aceleração é que tem essas crianças! Tem crianças que catam latinha e papelão que passam com carrinho por ali, tem também as que catam na feira; hoje é dia de você encontrar elas por lá. Elas juntam resto de frutas, que os donos das barracas dão”. (Dalina-Coordenadora)

Nas turmas de aceleração, onde estão agrupadas a maioria das crianças catadoras na escola pública, estão também aquelas que se encontram fora de faixa, por não terem sido aprovadas para a série subseqüente ou por dificuldade de aprendizagem, o que constitui, na maioria das vezes, um problema, uma vez que, dada a dificuldade do professor em realizar um trabalho que possa atender satisfatoriamente um conjunto de necessidades específicas,

demandadas pelos alunos ali alocados. Ao final do período letivo, o que pode ter havido de perdas e ganhos para as crianças que ficam isoladas em um grupo do qual fazem parte os que foram reprovados uma, duas, três vezes, os que têm dificuldade de aprendizagem, formando um gueto. Até que ponto esta medida põe em vantagem as crianças pobres ou relativiza o poder da escola? Tal medida não leva as próprias crianças a se reconhecerem como fracassadas96?Mais uma vez o que é necessidade objetiva, vai na contramão das condições impostas pelo real, agravando as impossibilidades da criança oriunda da classe trabalhadora apropriar-se do patrimônio historicamente acumulado pela humanidade

A constatação de Dalina, em relação às crianças que compõem as turmas de aceleração, nos faz lembrar que tais crianças, em sua maioria, estão fora de faixa ou porque entraram na escola mais tarde ou por que foram reprovadas repetidas vezes. Entraram tarde na escola por quê? Por que não havia vagas próximo á casa? Por que eram itinerantes em suas moradias? Por que os pais não podiam levá-las à escola, nem podiam comprar farda e material escolar? Por que foram reprovadas repetidas vezes? Por que tinham diversas dificuldades de aprendizagem e de serem dignamente aceitas pelos pares, além de serem marginalizadas pela Direção e/ou educadores, sofrendo dentro da própria escola a negação de direitos? Em meio a promessas de erradicação da pobreza e do analfabetismo as crianças catadoras e suas famílias permanecem como reflexo da barbárie, própria de uma sociabilidade fundada na contradição capital e trabalho.

Em uma ocasião, quando conversava com Dalina na sala do grupo gestor, entrou um homem a quem chamaram de Luís. Falaram sobre o que tinha na dispensa para a merenda da semana. Chegaram à conclusão de que o melhor era servir cuscuz puro, apesar de ruim, e guardar a pouca carne para fazer uma sopa para os alunos do turno da noite:“Cuscuz purim é muito ruim”, Dalina reconheceu, mas Luís interrompeu sua fala: “não dá prá botar carne moída no cuscuz não, tem bem pouquinha carne, é melhor guardar prá fazer sopa pros da noite, dá cuscuz com suco”! Luís era alto e forte e falava de forma enérgica para Dalina, que concordou com ele. O cuscuz ia ser servido sem carne, mas eles precisavam da carne, que é mais necessária, para quem vê na merenda escolar uma ou a refeição mais forte do dia. A negação de direitos mais uma vez se descortina, ora dentro de casa, ora na escola e vice –

96 A maneira como a escola trata a pobreza constitui uma avaliação importante do êxito de um sistema

educacional. Crianças vindas de famílias pobres são, em geral, as que têm menos êxito, se avaliadas através dos procedimentos convencionais de medida e as mais difíceis de serem ensinadas através dos métodos tradicionais. Elas são as que têm menos visibilidade na escola, são as menos capazes de fazer valer suas reivindicações ou de insistir para que suas necessidades sejam satisfeitas, mas são, por outro lado, as que mais dependem da escola para obter sua educação (Connel, 2001, p.11)

versa. É esta a realidade da escola pública quando o assunto é merenda: cuscuz puro, quando este não falta por completo.

Outra situação nos levou a refletir sobre a realidade de escolas como o “Creusa” e de muitas escolas públicas, que não possuem uma verba regular para realizar, por exemplo, uma reforma que garanta a melhoria de sua estrutura física. Diretora e coordenadores do “Creusa” falam com Cléa, dona de uma creche e membro importante da Associação dos Moradores do bairro, sobre uma reforma que vão fazer na escola e da falta de dinheiro no momento: pedem emprestado cinco mil reais à mulher, que concorda, mas lembra que não quer se complicar, só pode ser até o início do mês. O acordo é feito e garante a compra do material. Essa é mais uma acrobacia que os dirigentes se submetem a fazer no interior da escola pública diante de suas necessidades. Acrobacia para dar o que comer, para criar espaços onde mais alunos assistam às aulas, onde pratiquem esportes, onde brinquem e tenham também acesso a computadores.

Neste ambiente, onde tudo falta, os professores ensinam as crianças catadoras e as demais crianças da Granja. Onde está a qualidade da educação destinada a elas? Marx & Engels (1992:60) entendem a educação em três segmentos: educação intelectual, educação corporal e educação tecnológica, que recolhe os princípios gerais e de caráter científico de todo o processo de produção e, ao mesmo tempo, inicia as crianças e os adolescentes no manejo de ferramentas elementares dos diversos ramos industriais.

Na ocasião em que Dalina nos apresenta Zezinho, destaca o caráter assistencialista presente na representação que é conferida às crianças catadoras – que precisam de proteção social: Novamente, a fusão entre catação de lixo e escolarização, além das representações a elas atribuídas, dificultam a manifestação de sua subjetividade:

Ah, eu sei é um bem necessitado, bem sujinho. Outro dia nós pedimos pra ele passar um shampoozinho nos cabelos, ele disse que o shampoo dele era sabão com açúcar, ele mistura e disse que ficava cremoso parecia shampoo de verdade. Nós demos um kit de limpeza pra ele. Ele é muito carente, a auto-estima é baixa!. (Dalina-coordenadora)

A fusão entre catação de lixo e escolarização, além das representações a elas atribuídas, dificulta a manifestação de sua subjetividade. A escolarização, como atividade principal pode auxiliar a criança a produzir reflexos conscientes da realidade. Leontiev (1989) reconhece que a imagem consciente, a representação, o conceito têm uma base sensível, mas o

reflexo consciente da realidade não se restringe a sensação que dela se tem, daí, a importância do caráter ativo do processo de apropriação e da mediação que a linguagem opera.

Lembramos de Zezinho dormindo num sofá velho que há na casa dele e depois conversando conosco na calçada. Lembramos do ferimento que ele tem no rosto, bem na bochecha. Um ferimento grande que está cicatrizando. Como Zezinho e sua irmã, seus companheiros catadores se formam como sujeitos sócio-históricos em uma situação adversa, marcada por serem reconhecidos como bem necessitados, bem sujinhos e muito carentes. De fato, é difícil olhar para as crianças catadoras como se olha para qualquer outra criança. Há algo que nos impede de assim fazê-lo, pois o lixo é o contexto onde se desenvolvem, daí ser também matéria objetiva de conhecimento. É da catação dos restos da cidade ou do que para muitos é considerado desprezível, que ela auxilia os pais na busca pela garantia de sobrevivência. Ter pena, prestar cuidados de maneira assistencialista não são atitudes nem suficientes nem adequadas para solucionar o problema da relação da criança com o lixo.

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