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S EGUNDA P ARTE

80 BERGER; LUCKMANN, 2004 81 BENJAMIN, 1987.

(...) está claro que as ações da experiência estão em baixa, e isso numa geração que entre 1914 e 1918 viveu uma das mais terríveis experiências da história. Talvez isso não seja tão estranho como parece. Na época, já se podia notar que os combatentes tinham voltado silenciosos do campo de batalha. Mais pobres em experiências comunicáveis, e não mais ricos. Os livros de guerra que inundaram o mercado literário nos dez anos seguintes não continham experiências transmissíveis de boca em boca. Não, o fenômeno não é estranho. Porque nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela fome, a experiência moral pelos governantes. 82

Para o autor, a guerra contaminara as sociedades nela envolvidas direta ou indiretamente, afetando-as profundamente na medida em que o conflito armado, a inflação e a fome desenharam um quadro de degradação humana e social progressiva, o que constituiu um verdadeiro trauma coletivo. A leitura de Walter Benjamin parece se apoiar em um conceito de experiência que extrapola as nossas reflexões iniciais, para relacioná-lo a uma crise histórica. Quando afirma que as ações da experiência estavam em baixa, o autor parece se referir a uma série de eventos que afetaram a qualidade da experiência coletiva. Coletivamente pensada, a experiência seria mesmo o presente comungado por pessoas e sociedades que se vinculam por estarem, de alguma maneira, à deriva de certos acontecimentos. A experiência coletiva implica uma amplitude de circunstâncias que impõe condições para a vida. É social, histórica, geográfica, ou seja, pode ser considerada, de alguma maneira, vital; uma experiência vital, tal como considera Ma shall Be a ao pe sa so e a ode idade: e pe i ia de te po e espaço, de si mesmo e dos outros, das possi ilidades e pe igos da ida. 83

Em breves palavras, a experiência pode ser entendida como o presente comum que é realizado a partir das ações, reações e consciências de sujeitos que são atores de suas próprias existências, buscando realizar-se frente às possi ilidades e pe igos da ida. 84 A experiência é a maneira pela qual nos afetamos pela vida e a conduzimos.

82 BENJAMIN, 1987, p. 114. 83 BERMAN, 1996, p. 15. 84 BERMAN, 1996, p. 15.

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Nesse sentido, quando o assunto é a experiência, é necessário considerar a heterogeneidade e a riqueza de diversidade que o termo implica, uma vez que se ela io a su jeti idade, ao pa ti ula . Qua do Walte Be ja i suge e ue as ações da e pe i ia est o e ai a 85 ou ue esta os ais po es e e pe i ias 86, ele

estaria se referindo também a certa ameaça em relação à diversidade de pensamentos, modos de expressão, modos de vida. Ele se referiu a uma crise histórica de perda de um sentido mais amplo que regesse a consciência dos sujeitos. As pessoas haviam se tornado mais pobres em experiência, não somente menos interessadas em ter experiências, mas aspi a a li e ta -se de toda e pe i ia. 87

É importante meditar sobre a forte crítica que Walter Benjamin desenvolveu em relação à experiência. Ao contrapô-la aos nossos dias, ficamos mesmo a pensar sobre o estado atual da e pe iência. Georges Didi-Huberman, em Sobrevivência dos vaga-

lumes88, nos ajuda a refletir sobre o empobrecimento da experiência como uma situação contemporânea. A partir de O artigo dos vaga-lumes, escrito em 1975 por Pier Paolo Pasolini, o autor reflete sobre a metáfora dos vaga-lumes como a resistência política, da cultura, do pensamento, que estariam sendo eliminadas. Georges Didi-Huberman entende o texto de Pier Paolo Pasolini como a construção de uma imagem poético- ecológica89 na qual o enfraquecimento cultural, nos tempos pós-fascismo italiano, encerrava um verdadeiro genocídio, representado pela metáfora do desaparecimento dos vaga-lumes. O desaparecimento dos vaga-lumes estaria relacionado, na interpretação de Georges Didi-Huberman, ao consumismo, à sociedade do espetáculo cujas luzes da mídia apagam todas as resistências e impõem homogeneidade. O autor lembra o empobrecimento da experiência pensado por Walter Benjamin e também algo mais grave: a destruição da experiência, crítica de Giorgio Agamben:

85 BENJAMIN, 1987, p. 114. 86 BENJAMIN, 1987, p. 114. 87 BENJAMIN, 1987, p. 118. 88 DIDI- HUBERMAN, 2011. 89 DIDI- HUBERMAN, 2011, p. 28.

Porém, nós hoje sabemos que, para a destruição da experiência, uma catástrofe não é de modo algum necessária, e que a pacífica existência cotidiana em uma grande cidade é, para esse fim, perfeitamente suficiente. Pois o dia a dia do homem contemporâneo não contém quase nada que ainda seja traduzível em experiência: nem a leitura do jornal, tão rica em notícias do que lhe diz respeito, a uma distância insuperável; nem os minutos que passa, preso ao volante, em um engarrafamento; nem a viagem às regiões ínferas nos vagões do metrô; nem a manifestação que de repente bloqueia a rua; nem a névoa dos lacrimogêneos que se dissipa lenta entre os edifícios do centro e nem mesmo os súbitos estampidos de pistola detonados não se sabe onde; nem a fila diante dos guichês de uma repartição ou a visita ao país de Cocanha do supermercado; nem os eternos momentos de muda promiscuidade com desconhecidos no elevador ou no ônibus. O homem moderno volta para casa, à noitinha, extenuado por uma mixórdia de eventos — divertidos ou maçantes, banais ou insólitos, agradáveis ou atrozes —, entretanto nenhum deles se tornou experiência. 90

Rico em eventos e em acontecimentos, o cotidiano moderno parece afundar o homem em tédio, previsibilidade, de modo que nada parece realmente afetá-lo. É justamente a incapacidade de se afetar que bloquearia a experiência. A destruição da experiência, apontada por Giorgio Agamben, se relaciona ao cotidiano urbano de uma sociedade do controle, burocratizada, racionalizada. Mas também parece indicar a ausência de disposição das pessoas em afetar-se, em expor-se, pré-requisito para a existência da experiência, como aponta Jorge Larrosa91. Há uma ideia de distância entre o sujeito e o mundo no qual ele vive; distância perniciosa que, quando focalizada, parece mesmo apagar o sonho, a fantasia, a loucura, o desejo. Estaremos todos, homens e mulheres modernos, inteiramente desprovidos da capacidade de viver experiências? Destituídos das nossas esperanças, da nossa capacidade de construir um pensamento maior que dê sentido à nossa existência individual e coletiva? Absolutamente desvinculados das tradições, da sabedoria antiga?

Essa nos parece uma hipótese improvável e uma ideia bastante pessimista. Certamente, algo mudou em relação ao papel da experiência como mantenedora das tradições, da sabedoria, da memória coletiva. Por outro lado, a experiência ainda nos

90 AGAMBEN, 2008, p. 21. 91 LARROSA, 2002.

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parece fundamental para a difusão de valores, a formação indivíduos, para a sociabilidade. A experiência é, como reforçam Peter L. Berger e Thomas Luckmann92, a maneira pela qual somos iniciados em diversas instituições sociais, desde a escola, o casamento, os ritos religiosos, a vida profissional. Ela não seria algo passível de ser eliminada em qualquer sociedade. Mas, se a experiência é algo intrínseco à vida em sociedade, o que de fato nos faz mais pobres em experiências, como advertiu Walter Benjamin?

Para refletir sobre essa questão, nos parece fundamental pensar a discussão trazida por Giorgio Agamben93, que se refere à impossibilidade do homem moderno em traduzir em experiência. Segundo o autor, estaríamos cada vez menos hábeis em traduzir

em experiência. Traduzir em experiência seria o processo de olhar de modo generoso

ossas i ias de odo a us a u a ela o aç o pa a elas, de t a sfo a a i ó dia de e e tos 94 em algo que tenha um sentido que transcende o óbvio. A incapacidade de traduzir em experiência resultaria em uma dificuldade de comunicação e de produção de conhecimento a partir do que é vivido no cotidiano das cidades, e também fora delas. Mais do que produzir conhecimento, estaríamos limitados em nossa capacidade de construir um saber em relação a tudo o que nos passa, ao que acontece fora e dentro de nós mesmos. Estaríamos, consequentemente, vivendo uma forte ameaça de inconsciência sobre o que a nossa experiência particular e coletiva representa.

Embora essa ameaça seja algo grave e crescente nas mais diversas sociedades contemporâneas, sentimos certo estranhamento ao pensar no bloqueio total da nossa capacidade de transmitir experiências. Afinal, nos comunicamos frequentemente a partir das nossas experiências, sejam elas cotidianas banais ou mais marcantes. O processo de comunicação via experiência incluiria a criação de relações entre as nossas vivências a outras experiências e uma organização elementar para que elas façam sentido para nós mesmos ou para aqueles com os quais dialogamos. Tudo isso nos parece muito o i uei o, pa te da ossa ida otidia a e o u i a io al . O ato de a a ossas

92 BERGER; LUCKMANN, 2004.

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