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transporte utilizado durante todo o trabalho de campo. Ana F. Vasconcellos, 2011.

79 Meu “estilo” de viagem funcionava como uma ponte para as experiências deles (no que tange ao modo de deslocamento pelo espaço) ao mesmo tempo que lhes conectava ao passado estimulando a lembrança sobre os meios de vida – fortemente relacionados ao contexto das viagens e à atividade de campear, realizadas em montaria ou caminhando45. Por esta razão, em meio a riqueza de histórias que Ladu e a esposa contaram sobre o passado, estavam sempre presentes elementos da experiência do casal que dialogavam, em parte, com minha experiência andando de bicicleta pela região: os perigos (ou medos) de andar no “mato” sozinha, o desconforto imposto pelos insetos, as aventuras no ‘carrasco’ (vegetação a que se associa a desorientação, pela falta de referências, em especial os cursos d’água), as demoradas e difíceis viagens até os centros de comércio. Na concepção de Seo Ladu e Dona Manelina era o ‘sofrimentozinho’ de meu trabalho – relacionado ao fato de eu transpor distâncias, sozinha, de bicicleta – que garantia sua importância e me “igualava” a eles. De bicicleta, eu fazia as coisas de modo similar ao “antigo”46; e – antigamente – ali “tudo era

muito difícil” (frase corrente, ouvida ao longo de toda a viagem).

Para que o leitor tenha uma noção do conteúdo das conversas em que nossas experiências – as minhas e as de meus interlocutores – se comunicavam, selecionei trechos de gravação em que eu não ouvia o casal, necessariamente, na condição de pesquisadora, mas como uma espécie de cúmplice – que vivenciava situações e preocupações parecidas; carecendo ainda de orientação para seguir viagem.

D. Manelina: “Perigoso é onça.” Seo Ladu:

“Oh, deixa eu te falar. Tem uma coisa perigosa – que todo lugar tem um perigo. Em outros lugar tem o perigo talvez...Perigo de gente, né, minha filha?”

D. Manelina:

“Perigo de gente aqui mesmo não tem. Gente maldoso, assim. O perigo daqui dos mato é onça.”

Seo Ladu:

45 Dona Manelina explicou que, no passado, muitas viagens pelo sertão eram feitas a pé, pois as famílias, geralmente, tinha um ou não tinham animais de montaria: rebanho de cavalos ou tropas de mula era coisa de fazendeiro rico. Então, quando saíam todos de uma família (em ocasião de romaria, por exemplo) utilizava-se o animal para carregar mantimentos, enquanto as pessoas seguiam a pé.

80 “Porque aqui não tem movimento de gente, né? Outros lugar tem o perigo da pessoa andar só, né? Até mesmo na estrada. Oh, dex’o te falar para ocê: nessas estradas, ocê acredita...Nas estradas, ocê [a]credita, tem hora que é mais perigoso que aqui. (...)”

Ana:

“É que tenho medo de me perder e ficar sem água, sem comida...”

Seo Ladu:

“Mas no caso de perder...Não tem como perder aqui. (...) O perigo daqui que corre risco é, às vezes, é um sucuri. (...) É perigoso aqui. No lugar que a pessoa vai tomar banho. Aqui mesmo nesse lugar era riscoso, você não podia tomar banho. (...) Naquela passagem ali [o Areia] onde a gente vinha, a gente pedia muito cuidado [?], porque sucuri é uma fera perigosa. Ele é na água, ele é assim uma fera perigosa. Ele pega gado. Pega gado – então pega gente, né?. Já pegô. Já pegô gado aqui. Tem pegado, para o remanso lá...Então isso aí é um trem perigoso. (...) Mas...às vezes é onça também [o perigo]. Mas você vê: eu desde rapazim novo, menino! Desde menino que eu rodo aqui nesse lugar aqui...” D. Manelina:

“O perigo da onça é só a noite mesmo.”

Seo Ladu:

“Se você pegá, dormi no mato assim, né? Você não pode dormir no mato. Se deu de tardinha, você procura uma casa. (...) Esse rio aqui, oh. Ele desce aqui, oh. O Rio Preto vai ali, aqui vem Areia. Aqui é uma ilha. Depois eles encontra e desce. Aí vai lá em compadre Samu. Passa por lá (...) vai para o Carinhanha. E vira. A pessoa às vezes pega a margem...[começa a falar de outras veredas]...Num carrasco é mais difícil da pessoa andar, né? Agora em estrada, não! Se saiu numa estrada você chega numa casa. (...) Onde você vê: não tem estrada, não vai, não, porque ali não tem gente.”

*** Seo Ladu:

“Você tem seu desejo de ocê cumprir sua história, do seu plano, de sua vida, não é? Você vê: não é fácil uma pessoa de tão longe que nem ocê estar por aqui...Podia ter uma vida mais importante, não é? Milhor, não tinha? Mas não tinha precisão. Seus planos são esses, não é? Você poder aprender e ter uma vida mais...Quem sabe, não é? É preciso que você conta causo. Ter uma vida sofrida primeiro. No de vive de mosquito, de moriçoca, de carrapato, como nós fomos.”

Dona Manelina:

“Podia tá lá, num escritório lá,...Mas sua vocação é essa.”

Seo Ladu:

“Às vezes a gente pensa assim: Mas, oh, gente, mas só nós estamos sendo aqui? Estamos aqui guentando, né? Por acaso, né?, porque isso não é nada para nós. Às vezes aguentando as consequências do lugar. (...) Mas a gente vai falar assim: Só nós estamos aqui? Só nós que estamos aqui às vezes. Às vezes pega o sole [sol], tem que pegar mesmo, não é? A chuva, que bom, tem que pegá! Morcego, carrapato, mutuca, moriçoca...Só nós? Mas você também está aqui. Então nós, minha filha, nós tem que participá das luta, das peleja. Agora miorou, agora tá bom, minha filha!”

81 Dona Manelina:

“Agora já miorou, agora já miorou muito. Mas teve um tempo que nós mexia aqui – que podia mexer com a natureza, para colocar roça [quando ainda não era o Parque]...Roçava de foice, derrubava de machado, queimava, depois plantava...Às vezes o lugar era brejo, tinha água – na enxada é um serviço que aumenta mais – , aí nós plantava o arroz, nós limpava de mão [Seo Ladu: mato por mato na mão]. Chama tiririca esse mato. Ele corta...A gente trabalhava o dia todinho assim arrancando, aí, de tarde, as mãos não podiam nem fechar porque cortava, assim, retalhava...”

*** Seo Ladu:

“Vale a pena a pessoa participar de um sofrimentozinho, duma batalha primeiro. Não existe uma vitória sem que não tenha uma batalha primeiro. Até mesmo as pessoas que estudam hoje, que eles ganha boa tranquilidade amanhã.

Vamos supor que amanhã, ocê tiver uma pessoa de quarenta anos, ocê já vai contar alguma coisa. Talvez, você vai de contar essa vida onde você foi. Onde você andou. Igual nós tamos contando para ocê...Como nós criou os filhos, né? Aí você vai [contar] como é que nós chegou até aqui. Isso que nós tamo contano já passou. Tão difícil...”

*** Seo Ladu:

“Às vezes a gente socava arroz aqui e ia vender em Januária. Daqui em Januária é 50 léguas (...). Cinco marchas de cavalo [cinco dias]. (...) Então nós quando tinha o arroz...Colhia o arroz, aí a gente levava no pilão, pisava no pilãozinho..., colocava no cargueiro [ou bruacas: cestos ou caixas de madeira acomodadas sobre o cavalo para transporte de mantimentos e objetos] e aí vai vender na Januária. A gente fez muito isso. (...) Isso naquele tempo de rapaz. Depois que eu casei já não mexi mais com isso, não. A gente já deu para vender as coisas aqui no Arinos, outra vez em Formoso. Formoso era difícil...Formoso era muito negócio (...). Outro lugar difícil era Buritis. Buritis era mais difícil para nós por causa dos rios. Que você passava Piratinga, você passava São Domingos – rio perigoso – e você passava Urucuia. Lá, quase chegando. Tudo dentro d’água! Com cargueiro. Para ir vender, às vezes, um porco: matava um porco, ia vender lá. Colocava no cargueiro. Se tivesse vazio [o rio], era vazio; se tivesse cheio, você tinha que passar numa canoa [o cargueiro]. [E tinha barqueiro] Morava na beira do rio. Essa pessoa já morava lá para passar as pessoas. Aí tinha que pagar um pouquinho. E aí a pessoa passava. O cavalo tinha que passar puxando, nadando. Desse jeito, minha filha; eu já fiz. Tudo para sustentar os filhos! [Pergunto até quando fizeram essas travessias] Ah, isso a gente veio trazendo até sessenta [década de 60] mais ou menos, de lá para cá foi miorando.”

*** Seo Ladu:

“Em São Paulo tem vereda? Vereda de buriti, sancalha [?], assim? Às vezes vazante...?”

*** Das veredas.

Percebendo a relevância dos rios e veredas para Seo Ladu, posto os inúmeros desvios que fazia dos assuntos para falar deles, propus-lhe então a atividade que com Seo Caetano tinha fracassado: esboçar em papel seu mapa mental do espaço vivido.

82 Dizendo não saber pegar em lápis, mas ainda assim aceitando o desafio, Ladu começou a traçar, meticoloso, as linhas correspondentes às veredas que conhecia. Conforme ia traçando, dizia o nome da vereda e, dependendo de qual fosse, apresentava uma lembrança referente ao lugar: “Eu sei te contar até o nome dos gaio que tem dentro desse Parque, aqui. Eu sei te contar gaio por gaio. Eu estudei esse Parque aqui, os gaiozim daqui de dentro, né? Gaim por gaim. Se ocê perguntar quantos gaio, quantas veredas, tem dentro do Parque, eu sei te contar. Tá na mente, né?” Ladu desenhava e eu anotava no papel os nomes das veredas para ele.

As veredas são umas das mais características formações da paisagem do noroeste mineiro. Elas correspondem aos milhares de pequenos veios d’água que abastecem as bacias dos principais rios da região: São Francisco, Urucuia, Paracatu e Carinhanha. Em todo lugar onde há uma vereda há também a palmeira buriti, outro ícone desta paisagem; que sempre cresce nas margens desses pequenos riachos de solo arenoso. “Buriti quer todo azul, e não se aparta de sua água – carece de espelho” (ROSA, 2006, p. 310).

Durante as quase três horas que passamos na atividade, Ladu foi se dando conta de que fazer mapas era um trabalho difícil: “Mas é complicado para fazer, né? Meu Deus do céu!”

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