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Tópicos de lingüística aplicados à língua de sinais: Sociolingüística, Psicolingüística e Análise do Discurso.

Capítulo 1: Sociolingüística

D) Aplicação de modelos sociolingüísticos de línguas faladas para situações de línguas de sinais

1.3. Bilingüismo e línguas em contato

Existem duas possibilidades de bilingüismo descritas na literatura sobre línguas faladas: o bilingüismo social e o bilingüismo individual. Se uma sociedade se declara ‘bilíngüe’, não necessariamente todas as pessoas dessa sociedade são bilíngües. Na verdade, é comum sociedades com uma política bilíngüe e com a maioria de seus cidadãos monolíngües. Um desses exemplos é o Canadá, onde o inglês e o francês são línguas oficiais, mas grande parte da população é monolíngüe em uma dessas línguas.

Os surdos sinalizantes e que participam de comunidades surdas, por nascerem em comunidades de ouvintes que possuem uma língua oral, são muitas vezes bilíngües, ou seja, usam uma língua de sinais e escrevem (ou falam) na língua falada em seu país. Entretanto, esta questão não é tão simples assim. Dizer que uma comunidade surda ou um indivíduo surdo é bilíngüe pode ser controverso em dois pontos, segundo Ann (2001). O primeiro ponto se refere ao fato de que, para existir bilingüismo, é necessário que existam duas línguas. Historicamente, as línguas de sinais não eram consideradas

sabem a língua oral de seu país, não sejam considerados bilíngües pelas pessoas ouvintes ao seu redor. O segundo ponto diz respeito ao pensamento de que um indivíduo bilíngüe se sente igualmente confortável nas duas línguas. Esse tipo de bilingüismo não é o usual, nem mesmo para indivíduos ouvintes. Para muitos bilíngües, geralmente, há uma língua dominante e outra não-dominante, que possuem funções diferentes em sua vida. Assim, é possível um indivíduo surdo que seja fluente na língua de sinais e que saiba ler e escrever uma língua oral, não oralizar essa língua.

Além disso, considerando o bilingüismo individual, percebemos diferentes níveis de conhecimento da língua não-nativa. Enquanto os indivíduos nativos de uma língua apresentam um mesmo nível de proficiência naquela língua, os falantes que aprendem uma segunda língua vão apresentar diferenças entre si que não são previsíveis. Dentre os motivos para tais diferenças estão questões como a razão para aprender uma segunda língua, o tipo de treino na segunda língua, a motivação para aprendê-la, a função que essa segunda língua vai ter na vida de tal indivíduo e questões sociolingüísticas que o farão preservar traços da primeira língua na produção da segunda língua. Isso acontece com os ouvintes bilíngües, já com os surdos, há ainda mais aspectos imprevisíveis. Sendo assim, o que é exatamente um surdo bilíngüe?

Vários autores já discutiram esse assunto, como Davis (1989), Lucas & Valli (1992) e Grojean (1992) e eles mostram que existe uma grande diversidade de experiências e comportamentos dentro da comunidade surda. Para ilustrar essa questão, alguns tipos de bilingüismo percebidos na comunidade surda estão listados abaixo:

- sinalizantes nativos de uma língua de sinais que são fluentes em uma língua falada (leitura, escrita e fala);

- sinalizantes nativos de uma língua de sinais que lêem e escrevem fluentemente uma língua falada, mas que não falam essa língua;

- sinalizantes nativos de uma língua de sinais que são fluentes em diferentes níveis de leitura e escrita de uma língua falada;

- sinalizantes surdos de uma língua de sinais como segunda língua que lêem e escrevem fluentemente uma língua falada, mas que não falam essa língua;

- sinalizantes surdos de uma língua de sinais como segunda língua que primeiro aprenderam uma versão sinalizada de uma língua falada;

- sinalizantes de língua de sinais como primeira/segunda língua que falam uma língua falada.

Como é possível perceber, existe bastante diversidade no que se refere à experiência e ao comportamento de ouvintes e surdos bilíngües, mas o que não se pode negar é que o bilingüismo é um fenômeno bastante comum em muitos lugares no mundo. Quanto ao bilingüismo surdo, existe uma grande quantidade de pesquisas sobre surdos que são bilíngües em uma língua de sinais e em uma língua falada, mas poucos trabalhos sobre surdos bilíngües em duas línguas de sinais.

Pelo que sabemos, não existe nenhuma sociedade na qual seus habitantes sejam todos surdos. Conseqüentemente, não esperamos encontrar um caso de território monolíngüe, no qual pessoas surdas sejam usuárias de uma língua de sinais natural, vivendo separadas de pessoas ouvintes de alguma língua falada. Entretanto, existem casos na literatura que chegam perto dessa realidade monolíngüe para uma língua de sinais. São casos de sociedades em que a língua de sinais é utilizada por todos os seus habitantes, sejam eles surdos ou ouvintes, que se afastam, assim, do padrão da maioria dos ouvintes a seu redor, ou seja, afastam-se de ouvintes não sinalizantes.

O primeiro caso é o de Martha’s Vineyard, uma ilha nos Estados Unidos, onde por 250 anos a incidência de surdez estava acima da média nacional. Nesse lugar, todas as pessoas sinalizavam, inclusive as ouvintes. O que chama mais a atenção nessa comunidade, segundo Groce3 (1985), era o fato de as pessoas não se surpreenderem por causa do grande número de pessoas surdas. Para elas, a surdez era uma coisa normal, fazia parte da vida e os surdos não eram vistos como deficientes, apenas como surdos. Outro aspecto interessante é que as pessoas ouvintes aprendiam a língua de sinais na escola, desde a infância e se tornavam fluentes. Os habitantes tinham o hábito de, se havia mais surdos do que ouvintes em um ambiente, apenas sinalizarem e não utilizarem a língua falada. Acontecia, inclusive, de usar a língua de sinais mesmo sem a presença de um surdo na conversação. Após sua pesquisa sobre Martha’s Vineyard, Groce concluiu que a noção de que a surdez necessariamente resulta em uma deficiência não é inerente, mas socialmente construída pelos ouvintes.

3 Como o último sobrevivente surdo da ilha faleceu no início da década de 1950, os dados de Groce são

se comunicam exclusivamente por língua de sinais. Para o autor, parecia que tanto surdos quanto ouvintes adquiriam a língua de sinais de forma natural, por meio da interação.

O terceiro caso existe na Indonésia, na ilha de Bali, onde há uma vila chamada Desa Kolok (“Vila Surda”), em que a incidência de surdez é muito alta. Neste local, surdos e ouvintes se comunicam por meio da língua de sinais e têm uma convivência bastante harmoniosa. Os surdos desta vila estão totalmente integrados na sociedade e não há estigma por ser surdo ou ser casado com um surdo. Os surdos têm os mesmos direitos e obrigações de qualquer pessoa da vila e participam da vida política, econômica e cultural.

Em todos os três casos descritos acima, as pessoas surdas e ouvintes convivem juntas e todas elas sinalizam; até mesmo os ouvintes. Segundo os autores que descreveram esses casos, não há evidências de que essas sociedades forcem um senso de grupo majoritário e de grupo minoritário baseados no status dos ouvintes, nem há o desenvolvimento de um grupo étnico surdo. Os ouvintes dessas comunidades falam sua respectiva língua oral e, também, a língua de sinais, com diferentes níveis de fluência, simplesmente porque ser bilíngüe é útil. Embora não haja uma aparente política bilíngüe nessas comunidades, elas têm o compromisso com o bilingüismo, simplesmente porque sentem necessidade dele.