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1 LIVRE DE AMARRAS – DILEMAS E GANHOS DA SOCIEDADE

1.3 BIOGRAFIAS QUE DEFINEM O SELF-TRAJETÓRIA

A trajetória de vida é o fator que define, para Velho, em que grau serão absorvidos os valores tradicionais ou individuais – relativos a contemporaneidade, sendo essa trajetória definidora da sociedade e não mais uma parte englobada pela mesma.

Nessa afirmação se identifica a relevância conferida pelo autor ao sujeito. Identifica-se, por outro lado, em autores citados por Ortner (2007), como o casal Comaroff, o receio de que a relevância atribuída atualmente ao indivíduo possa implicar em uma desconsideração quanto ao contexto em que o mesmo está inserido. Conforme os autores, o ambiente e as situações históricas que afetam a vida dos sujeitos são demasiadamente complexas para que se acredite que a pessoa triunfará apenas a partir de sua vontade e determinação, ou intenção. Segundo os Comaroff, é imperioso que se considere o ambiente e as relações estabelecidas para que se tenha uma percepção de todas as interferências a que é passível o sujeito.

Tanto em Ortner quanto em Giddens, no entanto, se identifica que a proposição de um sujeito com agência só tem sentido tendo em vista um “contexto”, ou seja, o ambiente, estruturas, história, outras agências que atuam junto ao indivíduo em questão. Fique claro, contudo, que não se trata de negligenciar ou mesmo negar a interferência de determinadas forças externas, mas sim de evidenciar a condição do sujeito de mudança e interferência sobre o mundo.

Ao analisar a família Campos, cuja origem remonta à classe média que constituiu no século passado a cidade do Rio de Janeiro, Duarte (2008) reconheceu que a edificação das trajetórias individuais pode modificar um ethos já instituído dentro das organizações familiares. Na sua pesquisa, realizada com as três gerações da família, revela que a segunda linhagem iniciou um processo que conduzia seus membros à busca da educação formal. No entanto, as dificuldades financeiras, entre outras, atrasaram ou inviabilizaram o processo. Já na terceira geração, houve um investimento sistemático para que os filhos tivessem acesso a escolas particulares e, consequentemente, a uma educação mais qualificada. Conforme o autor, “a idéia norteadora era que a conquista de

melhores condições de vida dependia da carreira educacional” (DUARTE, 2008 p. 140).

A educação, como possibilidade de ascensão social vislumbrada pela família Campos, admite a construção de uma trajetória próxima à realizada pelos informantes dessa pesquisa. A semelhança, porém, limita- se à escolha da educação, pois os seus fins são divergentes, como se poderá identificar nas entrevistas realizadas.

Os integrantes da análise aqui pretendida, assim como os informantes retratados por Duarte, edificaram trajetórias a partir de suas

intenções, mas também de acordo com as possibilidades do ambiente em

que se inseriam. Em determinadas fases da sua vida, a condição sócio- econômica determinou sua trajetória, em outras situações tiveram condições de negociar com a realidade e aproveitar as oportunidades surgidas. Assim, promoviam rearranjos que traçavam novas direções aos

projetos estabelecidos.

É evidente que existe uma básica diferença entre uma identidade, socialmente já dada, seja étnica, familiar, etc, e uma adquirida em função de uma trajetória com opções e escolhas mais ou menos dramáticas. A multiplicidade de referências, seja em termos de grupos ou de atitudes, às vezes aparentemente contraditórias, leva à problemática da fragmentação, para alguns autores, um dos indícios da modernidade (DUARTE, 2008, p. 97).

De acordo com Velho (1994), um dos motivos que contribui para a criação de uma sociedade tão heterogênea quanto a que se presencia atualmente é que as fronteiras entre as pessoas e o acesso à informação estão sistematicamente mais dinâmicos. O autor avalia que, mesmo que um grupo determinado participe de uma crença definida, divirta-se com as

mesmas pessoas e nos mesmos locais, assista aos mesmos programas e consuma artigos semelhantes, não há, mesmo assim, garantia de uma homogeneidade em suas escolhas. Isso se deve, principalmente, ao fato de existir a possibilidade de outras interações, interferências e relações que podem favorecer divergências de visão e de ação. As considerações promovidas pelo autor remetem a uma situação vivenciada na entrevista com Ana, uma das informantes dessa pesquisa. Ela destacou que a mãe, que sempre foi empregada doméstica na casa de “doutores”, imprimia na sua própria família os mesmos costumes que lá aprendia: a mesa do jantar deveria sempre ser servida com o máximo rigor, atendendo às regras de etiqueta, assim como também deveria ser o comportamento das pessoas à mesa, e outras situações que indicavam um comportamento não natural na família e na comunidade, mas que foram trazidos “de fora” a partir de relações estabelecidas. A doutrina aplicada na criação das filhas fez com as mesmas mantivessem e reproduzissem o padrão, posteriormente, com suas famílias.

Como as sociedades complexas atuais trazem como característica a expansão das suas fronteiras – redes de relacionamento online, facilidades na realização de viagens, cultura e informação abundantes – tornam-se bastante fluidas e constantes as relações entre diferentes grupos e segmentos, conforme apresenta Velho (1994). Essas trocas promovem também oportunidades de confrontos que configuram o emaranhado de características da sociedade hoje. Os indivíduos e suas trajetórias são afetados por esses repertórios de novos arranjos e possibilidades.

Os indivíduos modernos nascem e vivem dentro de culturas e tradições particulares, como seus antepassados de todas as épocas e áreas geográficas. Mas de um modo inédito, estão expostos, são afetados e vivenciam sistemas de valores diferentes e

heterogêneos. Existe uma mobilidade material e simbólica sem precedentes em sua escala e extensão (VELHO, 1994, p. 39).

A partir do exposto se pretendeu esclarecer algumas das questões que permeiam a construção dos sujeitos atores desse universo de escolhas da sociedade contemporânea. A partir do próximo capítulo, serão apresentados os principais conceitos norteadores da Educação Popular, vertente pedagógica que inspirou a criação do curso de Pós-Graduação frequentado pelos alunos entrevistados.

2 EDUCAÇÃO POPULAR COMO INSTÂNCIA DE PRODUÇÃO DE