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Biopolítica, regulamentação da vida e governamentalidade liberal

2 Contribuições de Foucault para se pensar as estratégias de resistência e controle

2.2 Biopolítica, regulamentação da vida e governamentalidade liberal

Os modos de exercício do poder e de funcionamento do Estado sofreram progressivas mudanças principalmente nos séculos XVIII e XIX. Será dada ênfase aos modos de controle e gestão da vida e, para tal, serão trazidos elementos das obras de Foucault.

Foucault (2010a, p. 152) denomina biopolítica da população um processo que possui como característica principal um poder cuja função mais elevada é a de investir sobre a vida, promover uma gestão calculista da vida. Poder entendido como relação de forças, que só existe em ação e portanto, “[...] não se dá, não se troca, nem se retoma, mas se exerce.” (FOUCAULT, 2008d, p. 175). A esse respeito, conforme Machado (2010, p. XIV),

Não existe de um lado os que têm o poder e de outro aqueles que se encontram alijados. Rigorosamente falando, o poder não existe; existem sim práticas ou relações de poder. O que significa dizer que o poder é algo que se exerce, que se efetua, que funciona.

E ainda, essa força não se exerce sobre um objeto dado, mas possui como objeto outras forças, é uma ação sobre outra ação: sobre ações eventuais ou atuais, futuras ou presentes (FOUCAULT, 2010c). “O exercício do poder não é um fato bruto, um dado institucional, nem uma estrutura que se mantém ou se quebra: ele se elabora, se transforma, se organiza, se dota de procedimentos mais ou menos ajustados.” (FOUCAULT, 2010c, p. 292). Ele opera sobre o campo das possibilidades: induz, desvia, amplia ou limita, facilita ou dificulta, torna mais ou menos provável.

Partindo dessa definição de poder, podemos dizer que, a partir do século XVII, efetuou-se o poder sobre a vida, primeiro sob a forma de um adestramento e produção de docilidade dos corpos por procedimentos de poder ligados à disciplina. Posteriormente, no século XVIII, esse exercício deixou de visar principalmente ao sujeito, ao seu corpo, e incluiu também como foco as populações e seus fenômenos específicos como os processos de nascimento, mortalidade, nível de saúde, longevidade, esperança de vida, forma de alimentação, dentre outros (FOUCAULT, 2010b). A estratégia utilizada, então, era a de “[...] atuar sobre coisas aparentemente distantes da população, mas que se sabe por cálculo, análise e reflexão, que podem efetivamente atuar sobre a população.” (FOUCAULT, 2008a, p. 94).

Em épocas anteriores, o poder incidia sobre a vida como um direito de apoderar-se dela, e até de suprimi-la, através do poder soberano. Houve uma significativa mudança no velho direito de causar a morte ou deixar viver que foi substituído por um poder de causar a vida ou deixar morrer (FOUCAULT, 2010a). Foucault (2005a) aponta, no entanto, que a lógica do biopoder pode coexistir com o poder soberano por meio do racismo, que asseguraria a função assassina do Estado. E, neste caso,

não se trata apenas do assassinato em si de um determinado grupo dentro da população, mas também “[...] o fato de expor à morte, de multiplicar para alguns o risco de morte ou, pura e simplesmente, a morte política, a expulsão, a rejeição, etc.” (FOUCAULT, 2005a, p. 306).

Foucault (2005a) afirma que surge um poder que ele chamou de regulamentação, o qual opera na lógica do fazer viver e do deixar morrer. Nessa nova lógica, não se trata de considerar apenas o indivíduo no nível do detalhe como atua o poder disciplinar, mas ao contrário, mediante mecanismos globais para que se obtenham estados globais de regularidade. Ou seja, leva-se em conta a vida, os processos biológicos do homem-espécie (uma “biopolítica” da espécie humana), de modo a assegurar sobre eles não uma disciplina, mas uma regulamentação (FOUCAULT, 2005a). Porém, pode-se dizer que, na maioria dos casos, “[...] os mecanismos disciplinares de poder e os mecanismos regulamentadores de poder, os mecanismos disciplinares do corpo e os mecanismos regulamentadores da população são articulados um com o outro.” (FOUCAULT, 2005a, p. 299). Em resumo, não houve uma substituição de uma tecnologia de poder pela outra, mas sim, uma articulação, uma complementando a outra por meio da norma, que pode ser aplicada tanto ao corpo, quanto à população.

A sociedade de normalização é uma sociedade em que se cruzam, conforme uma articulação ortogonal, a norma da disciplina e a norma da regulamentação. Dizer que o poder, no século XIX, tomou posse da vida, dizer pelo menos que o poder, no século XIX, incumbiu-se da vida, é dizer que ele conseguiu cobrir toda a superfície que se estende do orgânico ao biológico, do corpo à população, mediante o jogo duplo das tecnologias de disciplina, de uma parte, e das tecnologias de regulamentação, de outra. (FOUCAULT, 2005a, p. 302).

A visão e o interesse pela população também não eram os mesmos. Em períodos anteriores ao século XVIII, preocupava-se com a população apenas em casos de grandes catástrofes em que a população decaía bastante, para então se pensar em estratégias de como repovoá-la. Outro modo de interesse pela população se dava no sentido de que, quanto maior a população, maior era o poder do soberano (FOUCAULT, 2008i). “Em suma, a passagem de uma arte de governar a uma ciência política, a passagem de um regime dominado pelas estruturas de soberania a um regime dominado pelas técnicas do governo se faz no século XVIII em torno da população [...]” (FOUCAULT, 2008i, p. 141).

Foucault (2010e) avalia que antes do século XIX o Estado estabelecia com a população o que ele chamou de “pacto territorial”. Nesta relação o Estado era o responsável por fornecer território e garantia de paz nas suas fronteiras. Atualmente, avalia Foucault, o Estado estabelece com a população uma relação diferente na qual ele nomeou de “pacto de segurança”.

Hoje, o problema das fronteiras não acontece mais. O que o Estado propõe como pacto com a população é: “Vocês estarão seguros.” Garantimos contra tudo o que pode ser incerteza, acidente, prejuízo, risco. Vocês estão doentes? Terão a seguridade social! Não têm trabalho? Terão um seguro- desemprego! Há delinquentes? Vamos assegurar-lhes a sua correção, uma boa vigilância policial! (FOUCAULT, 2010e, p. 172).

Porém, essas mudanças não ocorreram com o objetivo de previnir mortes ou estabelecer entre a população uma relação mais “humanitária”.

[...] jamais as guerras foram tão sangrentas como a partir do século XIX e nunca [...] até então, [se haviam] praticado tais holocaustos em suas próprias populações [...] As guerras já não se travam em nome do soberano a ser defendido; travam-se em nome da existência de todos; populações inteiras são levadas à destruição mútua em nome da necessidade de viver. (FOUCAULT, 2010a, p. 149).

Foucault avalia que tais mudanças se deram com o objetivo de se governar, mas, por outro lado, havia a preocupação de não governar demais. Ou seja, instrumentos coercitivos e proibitivos serão poupados em prol de um investimento e controle maior sobre os fenômenos que compõem a vida da população.

Diversas técnicas serão desenvolvidas para se obter a sujeição dos corpos e o controle das populações. A era da disciplina, no entanto, não foi substituída por uma era da segurança, mas ambas, disciplina e segurança, operam no investimento da vida e pela normalização da sociedade. Foucault (2010a) avalia que aí se inicia a era de um “biopoder”. O poder assume a função de gerir a vida (FOUCAULT, 2010a).

Nesse contexto, uma estratégia de poder e controle são as políticas sociais desenvolvidas pelo Estado, que fazem parte dos mecanismos de segurança da população. Desse modo, algumas reflexões sobre o que chamamos de Estado se mostram relevantes. Para Foucault (2008c), o Estado é efeito de um regime de governamentalidades múltiplas, não se constituindo como universal, muito menos como uma fonte autônoma de poder. E essas práticas são consideradas múltiplas “[...] já que muita gente governa: o pai de família, o superior de um convento, o pedagogo e o professor em relação à criança e ao discípulo. [...] todos esses

governos são interiores à própria sociedade ou ao Estado.” (FOUCAULT, 2008i, p. 124). Foucault renuncia a produzir uma teoria do Estado justamente negando o fato de este possuir uma essência em si mesma ou por si mesma. E propõe “[...] interrogar o problema do Estado a partir das práticas de governamentalidade.” (FOUCAULT, 2008c, p. 106).

Afirma ainda que não é o Estado que dita o tipo de liberdade que será dada à economia, mas que é a economia que dita como a liberdade vai desenvolver uma função de estatização, ou seja, como isso permitirá a legitimação de um Estado (FOUCAULT, 2008e). “Não é o Estado que se autolimita pelo liberalismo, é a exigência de um liberalismo que se torna fundador do Estado.” (FOUCAULT, 2008e, p. 300). Desde modo, aponta, mais uma vez, que o Estado não existe em si, mas sim é efeito de uma série de práticas de governamentalidade, neste caso, da governamentalidade liberal.

As políticas sociais desenvolvidas pelo Estado, neste sentido, se inserem na mesma lógica. De acordo com Foucault (2008f, p. 195), as políticas sociais em uma economia de bem-estar “[...] para se integrar realmente a uma política econômica e não ser destrutiva em relação a essa política econômica, não pode lhe servir de contrapeso e não deve ser definida como o que compensará os efeitos dos processos econômicos.”

Nos escritos de Sposati (1988) também é possível notar essa concepção. Para ela, a Assistência Social não tem o objetivo de reduzir a pobreza nem de acabar com as desigualdades, visto ser uma política que gesta uma consequência da sociedade capitalista: a pobreza e a desigualdade social. Segundo a autora, nenhuma política de estado tem o objetivo de acabar com a pobreza (SPOSATI, 1988).

Para Foucault (2008f), só existe uma política social verdadeira e fundamental, a saber, o crescimento econômico. Nesse sentido, a política social compõe o que ele chamou de economia social de mercado que opera sob a seguinte lógica:

A forma fundamental da política social não deve ser algo que vai contrabalançar a política econômica e compensá-la; a política social não deveria ser tanto mais generosa quanto maior o crescimento econômico. O crescimento econômico é que, por si só, deveria permitir que todos os indivíduos alcançassem um nível de renda que lhes possibilitasse os seguros individuais, o acesso à propriedade privada, a capitalização individual ou familiar, com as quais poderiam absorver os riscos. (FOUCAULT, 2008f, p. 198).

Em linhas gerais, é preciso que haja pessoas que trabalhem e outras que não trabalhem, ou que haja salários altos e salários baixos, é preciso que os preços também subam e desçam, para que as regulações se façam. Por conseguinte, uma política social que tivesse por objeto principal a igualização, ainda que relativa, que adotasse como tema central a repartição, ainda que relativa, essa política social seria necessariamente antieconômica. Uma política social não pode adotar a igualdade como objetivo. (FOUCAULT, 2008f, p. 195 e 196).

Nesse contexto, nota-se que uma instituição em especial apresentou papel privilegiado para a execução desses mecanismos de controle da população e reprodução da lógica liberal. Esta instituição17, a saber, a família, em diferentes momentos se apresentou como instrumento de governo da população e gestão da vida.

Para construir análises a esse respeito, inclusive para nos auxiliar com a desnaturalização da noção de família e problematizar sua instrumentalização para o governo do conjunto da população, serão trazidas as contribuições principalmente dos autores Foucault, Donzelot e Rago.