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A biopolítica no rumo do discurso bélico: o racismo biológico como higiene social

CAPÍTULO 2 – RELAÇÕES DE PODER-SABER NA HISTÓRIA: TRAJETOS QUE SE

2.3 Os pilares do poder disciplinar: O discurso humanista no foco das técnicas de punição do corpo

2.4.2 A biopolítica no rumo do discurso bélico: o racismo biológico como higiene social

A grande questão travada sobre biopolítica que contempla a segunda abordagem foucaultiana sobre o tema é apresentada nas aulas do curso de 1976, publicadas na obra Em defesa da sociedade. Naquele momento Foucault a discute de forma mais ampla e articulada, considerando diferentes fatores que ensejam as relações de dominação nas sociedades modernas ocidentais. No entanto, a guerra como elemento da relação de poder e análise política é preponderante na discussão sobre a biopolítica. Essa discussão é decorrente da inversão proposta por Foucault do aforismo de Clausewitz18 que diz que a guerra é a política continuada por outros meios. No entanto, Foucault apresenta um discurso de caráter histórico- político, no qual fundamenta seu princípio de que a política é a guerra continuada por outros meios. (FOUCAULT, 2005).

Para se compreender melhor essa questão, é preciso situar que o aforismo de Clausewitz apoia-se no discurso filosófico-jurídico ou filosófico-político, sobre o qual se justificava e fortalecia o poder mediante as narrativas oficiais feitas por historiadores. Esse discurso fez legitimar o poder como fundador da ordem, através de um viés jurídico que torna a vinculação ao rei possível por meio de obrigações, juramentos e compromissos com a lei, glorificando as conquistas bélicas e fortalecendo o poder.

Esse discurso sofreu modificações no momento em que a guerra passou por um processo de estatização, pois, segundo Foucault (2005, p. 55) “as práticas e as instituições de guerra de início se concentravam cada vez mais nas mãos de um poder central; pouco a pouco

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Karl von Clausewitz foi um estrategista e líder militar da Prússia. É considerado como o pai da arte da guerra moderna. Disponível em http://www.encyclopedia.com Acesso em: fevereiro de 2012.

sucedeu, que de fato e de direito, apenas os poderes estatais podiam iniciar as guerras e manipular os instrumentos da guerra”.

Com isso, surge outro discurso apontado por Foucault como histórico-político, que é distinto do anterior e responsável pela organização política da sociedade. O poder se utiliza desse discurso para criar condições de possibilidade de não apenas pressupor a guerra, mas também de se exercer através dela e nela, produzindo diversos tipos de mecanismos e dispositivos de dominação (GADELHA, 2009).

O discurso histórico-político possibilita compreender “a guerra como relação social permanente, como fundamento idelével de todas as relações e de todas as instituições de poder”. (FOUCAULT, 2005, p. 56). Esse discurso se caracteriza por apresentar procedimentos estratégicos nos quais se efetivava a guerra, uma vez que promove a ideia de que até nos momentos de paz, é preciso toda uma análise de táticas e técnicas a serem usadas nos conflitos.

Além de ter sustentação na forma de promulgação de que se utiliza, o discurso filosófico-jurídico se baseia em formulações das verdades universais dos filósofos. Enquanto que o discurso histórico-político, por sua vez, se vale de saberes e práticas jurídicas para legitimar o seu dizer, servindo-se do direito por uma perspectiva não universalista. Nesse discurso, se formula ainda, uma verdade que se manifesta numa relação de combate, em estratégias que visam à vitória buscada, desfazendo-se a ilusão de uma verdade que busca a neutralidade e a paz.

Por ser o primeiro discurso exclusivamente histórico-jurídico do Ocidente, ele aparece como o lugar em que a verdade funciona explicitamente como arma para uma vitória partidária. É sob essa perspectiva que Foucault (2005, p. 59) argumenta: “uma frente de batalha perpassa a sociedade inteira [...] e é essa frente de batalha que coloca cada um de nós num campo ou no outro. Não há sujeito neutro. Somos forçosamente adversário de alguém”.

O cenário de guerra como jogo de poder que se apoia no discurso histórico- político (ou histórico-jurídico), vai resultar na dicotomia estabelecida no interior do corpo social e que aparece sob o rótulo de guerra das raças. Segundo, Foucault (2005, p. 70-71):

[...] a trama ininterrupta da história aparece sob uma forma precisa: a guerra que se desenrola assim sob a ordem e sob a paz, a guerra que solapa a nossa sociedade e a divide de um modo binário é, no fundo, a guerra das raças. Muito cedo, encontramos os elementos fundamentais que constituem a possibilidade da guerra e que lhe garantem a manutenção, o prosseguimento e o desenvolvimento: diferenças étnicas, diferenças das línguas; diferença de força, de vigor, de energia e de violência; diferenças de selvageria e de barbáries; conquista e servidão de uma raça por outra.

Aqui se destaca o interesse desta discussão sobre a biopolítica ligada à questão da guerra. Observa-se que o foco do poder sobre a vida que se instala, neste percurso, é baseado na polaridade existente dentro do corpo social que o divide em duas raças. Isso porque, a guerra que se declara não é entre duas raças externas, vindas de nações diferentes, originárias de outro lugar. É, principalmente, uma luta que se estabelece internamente e ocasiona a mutação no conceito de raça, pois não se trata de algo que está fora, mas o que está inserido no mesmo corpo social. Nesse aspecto, abre-se margem para “o desdobramento de uma única e mesma raça em uma super-raça e uma sub-raça”. (FOUCAULT, 2005, p. 72).

Delineia-se, então, o paradigma da superioridade da raça, alicerçado nos saberes estabelecidos pela Biologia, que começam a existir antes de Darwin, mas que usa argumentos semelhantes ao usado para descrever A origem das espécies. Esse discurso da guerra das raças, tomado pelo viés da acepção biológica, ligada à teoria do Evolucionismo e da luta pela vida, vai desembocar no que Foucault chamou de racismo de estado ou racismo biológico- social. É esse racismo, que não se confunde com o racismo religioso praticado durante a Idade Média, que será o palco das relações de poder, delineadas desde o século XVII e estendidas até o século XX.

O racismo de Estado faz parte do prolongamento do discurso da guerra das raças, apontado por Foucault como sendo uma parte desse fenômeno. Ele discute essa questão articulando-a ao poder que se produz nas relações sociais que são perpassadas pela história. A guerra das raças estava se transformando em um movimento de luta de classe, relacionado a revoluções e promessas de libertação. O racismo de Estado vem se sobrepor a esse viés, a partir do início do século XIX, baseado no discurso da luta das raças, a partir da visão biológica e médica desse termo. Sobre isso, Foucault (2005, p. 94-95) esclarece:

É assim que vocês vêem aparecer algo que vai ser justamente o racismo. Retomando, reciclando a forma, o alvo e a própria função do discurso sobre a luta das raças, mas deturpando-os, esse racismo se caracterizará pelo fato de que o tema da guerra histórica – com suas batalhas, suas invasões, suas pilhagens, suas vitórias e suas derrotas – será substituído pelo tema biológico, pós-evolucionista, da luta pela vida. Não mais batalha no sentido guerreiro, mas luta no sentido biológico: diferenciação das espécies, seleção do mais forte, manutenção das raças mais bem adaptadas, etc.

Nesse jogo, o racismo de Estado assume a forma de uma contra revolução, no sentido em que propõe a soberania conservada do Estado e a higienização da sociedade por meio da aniquilação da raça inferior. Isso faz surgir o embate entre duas forças, ou melhor, duas raças, na medida em que uma é promovida como verdadeira e única, que detém o poder

e é titular da norma; a outra está fora e constitui o perigo ao patrimônio biológico. A supremacia da raça vai ser estabelecida por meio de técnicas médico-normalizadoras. (FOUCAULT, 2005).

É por meio desse racismo que surgiram formas de segregação, exclusão e extermínio de determinadas parcelas da sociedade. Apareceram os discursos biológico- racistas sobre a degenerescência que legitimaram todas essas práticas para promover a normalização da sociedade. Apareceram os discursos biológico-racistas sobre a degenerescência que legitimaram todas essas práticas para promover a normalização da sociedade. Por isso, nas palavras de Bauman (2004, p. 158) “toda aposta na pureza produz sujeira, toda aposta na ordem cria monstros”.

Dessa forma, busca-se defender a sociedade por meio da limpeza que se estabelece através da destruição da outra raça, considerada uma sub-raça. E isso é tarefa para o Estado que aparece para proteger a integridade, superioridade e pureza da raça. Fato que contribui para se pensar a biopolítica atravessada pelo discurso do racismo. Sobre isso, acrescenta Gadelha (2009, p. 107):

Decorre uma importante consequência, em termos políticos, a saber, uma mutação na forma de se exercer o poder nas sociedades modernas ocidentais, a qual dá ensejo a que se fale propriamente numa biopolítica, num tipo de gestão governamental que lança mão dessa teoria, desse racismo biológico, para o controle do corpo-espécie da população.

Nesse caso, a atuação do Estado é proteger a raça superior dos perigos que emanam dos outros segmentos sociais que comprometem biologicamente a pureza do estrato social considerado detentor da norma. Fato que evidencia não se tratar de uma luta entre grupos externos, mas de uma estratégia global de conservar e privilegiar um segmento. Isso faz surgir “um racismo que uma sociedade vai exercer sobre ela mesma, sobre seus próprios elementos, [...] um racismo interno, o da purificação permanente, que será uma das dimensões fundamentais da normalização social”. (FOUCAULT, 2005, p. 73).

Interessa, pois, exterminar, aniquilar e segregar a camada social considerada inferior, a raça que atrapalha e prejudica a purificação da outra. Isso mostra uma clivagem no corpo social, pois embora coabitem o mesmo espaço, as duas raças não se misturam em virtude de suas diferenças sociais e culturais. Essa distribuição favorece a ideia de heterogeneidade que deveria ser substituída por uma sociedade “biologicamente monística”. Neste caso, o monismo refere-se à ideia defendida pelo racismo biológico, de uma sociedade

movida pela unidade, sem espaços para as diferenças, pois elas provocam as mazelas que se pretende combater.

A biopolítica, neste caso, surge para beneficiar uma parte da sociedade e não produz estratégias que favoreça toda a população. Serve como argumento que legitima práticas de extermínio da raça inferior. Tudo isso em nome de técnicas médico- normalizadoras, as quais se baseiam no saber biológico, que faz do Estado um soberano responsável pela proteção da raça. Conforme Duarte (2008b, p. 9) “num contexto histórico biopolítico, não há Estado que não se valha de formas amplas e variadas de racismo como justificativa para exercer seu direito de matar em nome da preservação, intensificação e purificação da vida”.

Para ilustrar os casos mais evidentes desse racismo biológico do Estado, emergem, no século XX, a Alemanha nazista e o movimento soviético, promovido pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).

No caso da Alemanha nazista, instala-se uma forma de poder estatal que usa o discurso da guerra das raças e, por meio dele faz do Estado o encarregado de proteger biologicamente a raça superior. Instalam-se assim, práticas de extermínio que visam preservar a raça ariana, considerada a raça pura. Esse racismo nazista está baseado na estratégia de retorno à mitologia popular, na qual a proteção do Estado está ligada a elementos de lutas populares antigas que fundamentariam a teoria da guerra das raças.

No exemplo soviético, tem-se uma estratégia discreta, realizada sem chamar a atenção. Ocorre, neste caso, uma transformação baseada na retomada do discurso das lutas sociais para produzir “uma gestão de uma polícia que assegura a higiene silenciosa de uma sociedade ordenada” (FOUCAULT, 2005, p. 97). Com isso, o inimigo que se pretende combater, pois constitui um perigo biológico, é o doente, o transviado, o louco, usando como arma uma polícia médica que os eliminam.

O racismo biológico fez surgir estratégias de poder sobre a vida, mas para isso, é necessário combater todos os perigos que se materializam na sub-raça. Neste caso, há um paradoxo, pois ao estabelecer o racismo, cria-se uma forma de defesa que desqualifica, desprotege a outra camada social. Ele está a serviço do conservadorismo, da higienização, da normalização social e provoca terror e destruição total. Com isso, “o racismo mostra-se indispensável tanto a um poder soberano quanto a um poder normalizador e regulamentador”. (GADELHA, 2009, p. 118).

Com essas considerações, percebe-se que a biopolítica tem a pretensão de lançar mão de um poder sobre a vida. O que se efetiva a partir do século XIX é a “assunção da vida pelo poder: [...] uma tomada de poder sobre o homem enquanto ser vivo, uma espécie de estatização do biológico”. (FOUCAULT, 2005, p. 285-286). Isso faz transmutar o direito de soberania para um fazer viver e deixar morrer, que não o substitui totalmente, mas o completa e o modifica na medida em que vai fazer da vida o objeto maior do direito político. Porém, ao fazer a análise dessa transformação do lócus do poder, Foucault o faz pelo nível de verificação dos mecanismos, das técnicas, das tecnologias que são utilizadas em prol da elevação da vida.

Então, seria possível indagar: por que o racismo biológico de estado aparece como um dos traços da biopolítica, tendo em vista que através dele se pode até ceifar a vida? A resposta está atrelada à ideia discutida acima. Quando se apropria de um fazer viver, a atuação do poder, centrado na figura do Estado como responsável pela proteção da vida, está legitimado por uma prática de processos biológicos que visam à regulamentação e à normalização. Com isso, apodera-se de um poder sobre a vida que permite, em nome da higienização, promover práticas de segregação e extermínio da vida do outro que se apresenta como o inimigo da raça.

Há, portanto, um paradoxo e um excesso na forma de atuação do biopoder nesse limiar de técnicas excludentes. É o racismo que promove cesuras no interior da população que deveria proteger. Com isso, afirma Foucault (2005, p. 304):

Com efeito, que é o racismo? É primeiro, o meio de introduzir afinal, nesse domínio da vida de que o poder se incumbiu, um corte: o corte entre o que deve viver e o que deve morrer. No contínuo biológico da espécie humana, o aparecimento das raças, a distinção das raças, a hierarquia das raças, a qualificação de certas raças como boas e de outras, ao contrário, como inferiores, tudo isso vai ser uma maneira de fragmentar esse campo do biológico de que o poder se incumbiu; uma maneira de defasar, no interior da população, uns grupos em relação aos outros.

O que se propõe com o advento do biopoder é uma desqualificação da morte. Em nome de uma regulamentação, de uma manutenção da ordem, da homogeneização e da higienização da vida, aceitam-se práticas que segregam a sociedade. Mas a morte não é aquele ritual público do período dos suplícios, é o ponto para além do qual o poder já não pode mais se exercer. Ela escapa ao seu domínio, mas quando o faz, é sempre a serviço da intensificação, do prolongamento e do equilíbrio da vida e das forças do corpo espécie da população. (GADELHA, 2009).

É nessa ordem que o racismo aparece como intervenção estratégica, inserido por meio do biopoder nos mecanismos de Estado. O racismo vai provocar, além da cesura de tipo biológico, uma positividade que implica uma relação do tipo guerreira, ou seja, quanto mais se deixar morrer, mais o outro viverá. Para a preservação da vida de uns, é necessário destruir a vida do outro e neste caso, o elemento biológico é decisivo nesse campo de batalha, pois será eliminado aquele que compromete a pureza da raça. Segundo Foucault (2005, p. 305):

[...] quanto mais as espécies inferiores tenderem a desaparecer, quanto mais os indivíduos anormais forem eliminados, menos degenerados haverá em relação à espécie, mais eu – não enquanto indivíduo, mas enquanto espécie – viverei, mais forte serei [...] a morte do outro, a morte da raça ruim, da raça inferior (ou do degenerado, ou do anormal), é o que vai deixar a vida em geral mais sadia; mais sadia e mais pura.

Acontece, portanto, uma relação de enfrentamento que se dá não no nível puramente militar ou político, mas gerada e justificada por questões de ordem biológica. Neste caso, o racismo promove um excesso de biopoder que se infiltra no corpo social e promove práticas que não favorecem a vida de todos, mas apenas a da pureza de um segmento que se toma como modelo de norma e de regulação.

Com isso, o biopoder em seu excesso através do racismo, promove a destruição e a morte de um segmento social que foge à regulamentação requerida para o corpo-espécie. O foco do poder se volta para a purificação e higienização social, acarretando morte e extermínio em seu interior. O racismo vai ser a condição para o fazer viver de uns e o deixar morrer de outros. Ele é a condição de aceitabilidade de tirar a vida numa sociedade de normalização e, esse “tirar a vida” vai se estender não somente a assassínios diretos, mas a tudo que diz respeito a assassínio indireto: o fato de expor à morte, de multiplicar para alguns o risco de morte, ou pura e simplesmente, a morte política, a expulsão, a rejeição, etc. (FOUCAULT, 2005).

Neste contexto, encaixam-se as práticas de exclusão espalhadas na sociedade, as quais reforçam a segregação social e vitimizam determinados grupos, dentre eles o dos indivíduos com deficiência. Sendo assim, é possível indagar: como a biopolítica, fortalecida por mecanismos de biopoder vai fazer entrar na cena pública o discurso que legitima e torna a sociedade mais inclusiva para com a raça que sempre foi considerada inferior e promotora da anormalidade do corpo-espécie?

É preciso continuar buscando as respostas, investigando se as práticas do poder sobre a vida irão caminhar por trilhas diferentes em busca da regulamentação e da

normalização. Para isso, necessário se faz seguir nas pistas da biopolítica, agora ligada à questão da governamentalidade, para nessa empreitada teórica encontrar a caixa de ferramentas utilizadas nesta escavação. O próximo tópico versará sobre essa temática e pode ser decisivo para a construção da genealogia do discurso da inclusão social do deficiente.

2.4.3 Governamentalidade e gestão da população: novas perspectivas do poder sobre a