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A BIPOLARIZAÇÃO ENTRE D EUS E O P OETA : O ASPETO TEOLÓGICO E O ASPETO CÓSMICO

3.3. O UNIVERSO MÍSTICO E RACIONAL

3.3.1. A BIPOLARIZAÇÃO ENTRE D EUS E O P OETA : O ASPETO TEOLÓGICO E O ASPETO CÓSMICO

Torga, na sua intertextualidade com a Bíblia, como comparece n’O Outro Livro de Job, apropria-se dos mais diversos temas e motivos com a principal preocupação de afirmar a sua condição de Homem. Ele sente-se injustamente atingido por um Deus, contra o qual ergue o seu canto de insubmissão. Neste âmbito, Clara Crabbé Rocha assegura que o escritor, ao transpor as mitologias para a sua obra, o faz sempre através de uma “distorção do mito.”341 N’O Outro Livro de Job, o poeta como que distorce ou recria o mito de Job, transformando-o no livro de Torga. Como nos deu a conhecer Aristóteles na sua Poética, defendendo que o cerne de uma obra de arte está no seu caráter verosímil, ou seja, está em narrar aquilo que pode acontece, podemos afirmar que esta máxima se adapta, convenientemente, à abordagem do autor como artista. De facto, ele ultrapassa a própria história da Bíblia, dando um toque pessoal de espírito de revolta, de insubmissão e, sobretudo, de liberdade.

Segundo refere José Maria Moreiro, Miguel Torga é um agnóstico, mas um agnóstico cristão e não um ateu, porque, de certo modo, a sua formação fora católica. Fernão Magalhães Gonçalves diz-nos que “a iniciação à religião foi-lhe administrada pela mãe, que lhe lia o resumo ilustrado da Bíblia, e pelo avô paterno na companhia do qual memorizou uma doutrina poética, feita de preces límpidas, ingénuas e rimadas.”342 Porém, esta imagem de um Deus de amor, cheio de bondade foi substituída na fase adulta do poeta pela imagem de “um Deus justiceiro, furioso regrador do mundo.”343 De facto, foi esta a última imagem que vingou na consciência do poeta, mostrando-se com repulsa e transgressão à canónica “ideologia Divina” da bíblia.

No poema “Moisés”, do Diário I, estamos diante de uma demonstração do grito arrogante de um agnóstico confesso e decidido, chegando a colocar as coisas nestes termos: “Ou Deus ou Nós”344. Miguel Torga, na sua infância e adolescência, assimilou os valores do catolicismo como quase uma obrigação cultural, dado que vivia numa aldeia transmontana onde as tradições religiosas se mantiveram intactas, fazendo parte do cerne da cultura do povo. À medida que foi ganhando maturidade, apercebeu-se de que muitas coisas que aprendera não estavam de acordo com a sua personalidade artística. Perante isto e não concordando com muitas

341 ROCHA, Clara Crabbé, O espaço autobiográfico em Miguel Torga, Livraria Almedina, Coimbra, 1977, p.153. 342 GONÇALVES, Fernão de Magalhães, Ser e Ler Miguel Torga, Vega e Fernão de Magalhães Gonçalves, Lisboa, p.38. 343 Idem, p.39.

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passagens da Bíblia, resolve, de um modo irreverente e revolucionário, fornecer a sua interpretação pessoal dessas passagens.

Na Hermenêutica Cristã os textos bíblicos tinham quatro possíveis interpretações: a interpretação baseada no sentido literal do texto, com as afirmações dogmáticas de fé e tradição eclesiástica, circunscrevendo a significação primeira das palavras; no sentido alegórico ou tipológico, caracterizando-se pelas correspondências entre os dois testamentos, considerando que as personagens e eventos do Antigo Testamento eram prefigurações do Novo Testamento, como revelações progressivas de Deus; no sentido tropológico ou moral, impondo-se a partir do momento em que a Bíblia é escolhida como livro de vida, orientado para a conversão do coração; por último, no sentido analógico ou místico, remetendo para a transcendência, para o além, inscrevendo a alma no horizonte da salvação.345 Destas quatro interpretações, a que se coaduna com o artista Miguel Torga parece ser, sobretudo, a interpretação fundamentada no sentido tropológico ou moral, na medida em que ele procura, por intermédio desses textos, proclamar a “moralidade” da sua natureza absoluta e consequentemente justificar as suas afirmações contra Deus.

Esta quezília com Deus estende-se, como não podia deixar de ser, à própria Igreja, referindo o artista Miguel Torga que ela está estagnada, não acompanhando a sociedade no seu desenvolvimento:

(…) acabei de ver claro o jogo da Igreja. Sem coragem para despojar-se de uma maneira total dos ornamentos da sua liturgia – nos quais deixou de acreditar - vai-os mantendo sem convicção, esperando que eles se desgastem discretamente em atenção aos fiéis mais ortodoxos. Também no mundo sagrado há rotina e cansaço. Também nele, por imperativos humanos, o divino tem que mudar de aparência, apesar da nova imagem o profanar e desfigurar.346

Torga, como um criador no limite do desespero humano, traça o perfil de Deus, acusando- O de ter criado o homem apenas para recreio do seu poder.347 Neste sentido, o poeta define o homem como um absoluto frente ao absoluto de Deus, desconstruindo a canónica ideologia cristã.

Como forma de conclusão, transcreverei excertos do poema “De Profundis”, da coletânea d’O Outro Livro de Job, os quais vão ao encontro da ideia do autor em “enfrentar Deus como a

345 ORLANDI, Eni Puccinelli, Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico, Petrópolis: Vozes, 1996, p.14. 346 MOREIRO, José Maria, Eu, Miguel Torga, Difel, Lisboa, 2001, p.118.

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um inimigo, rebentar-lhe os ouvidos, reduzi-lo a um tamanho que não invada mais o necessário espaço do nosso arbítrio”348:

Senhor, que sabes quem sou, sabe lá também o resto: Sabe lá que o meu protesto não é isto que tu vês... Não é isto...

Nem a facada no teu filho Cristo... Nem o pranto que tens visto correr em lava a teus pés... (...) Não é isto, nem é nada que chegue à tua morada sem a minha assinatura, que sou eu...

Eu, esta ovelha ranhosa que remói silenciosa a lembrança dolorosa do pastor que lhe bateu...349

Este desencontro com Deus, por parte do poeta, firma-se, sobretudo, na discursividade desconstrutiva e metamórfica das suas palavras, que estão carregadas de grandes doses de figuras de estilo, nomeadamente metáforas, ironias, antíteses e alegorias. São figuras que ajudam, em muito, o poeta a transmitir as suas ideologias, em relação aos temas tratados na sua poesia, que passam, principalmente, pelos aspetos teológico e cósmico.

Na sua abrangente obra, tudo é posto em causa: Deus, o homem e até a natureza. No que concerne a Deus, pode enfatizar-se o facto de o poeta se ter insurgido contra qualquer relação humano-divina, própria de uma religião institucionalizada. Neste prisma, eleva a condição da natureza humana, tentando anular toda essa irredutibilidade divina:

Antes de negar a acção do poder social sobre a sua consciência, o homem torguiano negou o poder divino sobre a sua natureza (…)350

A natureza, ou seja, o aspeto cósmico desempenha, em toda a sua obra, um papel, igualmente, muito importante, de maneira que o poeta o valoriza como sendo algo soberano e puro, acima de qualquer outra coisa, como se constata no seguinte exemplo:

348 Ibidem.

349 TORGA, Miguel, Biblioteca Miguel Torga, Poesia, Vol. I, Editora Planeta de Agostini, S.A., Lisboa, 2000, pp.69-70. 350 GONÇALVES, Fernão de Magalhães, Ser e Ler Miguel Torga, Vega e Fernão de Magalhães Gonçalves, Lisboa, p.31.

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A paisagem planáltica, de restolhos e carvalheiras, doirada pelo sol da tarde, abre-se majestosa em todas as direcções, soberanamente alheada do descalabro e profanação das povoações que a pontuam (...) Ela permanece. Sempre harmoniosa e sempre disponível para assimilar ou rejeitar as obras humanas que a mereçam e honrem ou não.351

Portanto, o poeta sublima a natureza de tal forma que consegue ver nela um exemplo a seguir, no que toca à natureza humana. É no contacto com a natureza que o homem se realiza porque, segundo Torga, é ela que decide se nós merecemos ou não ser honrados.

Perante estas aceções poéticas, estamos diante de um autor que tem uma forte simbiose com a natureza, identificando-se com ela e considerando-a o seu protótipo de vida absoluta e eterna:“ (…) só há um acto que o homem pode repetir eternamente e com originalidade: olhar a Natureza.”352

Assim sendo, estamos perante uma visão poética que desconstrói certos parâmetros já instituídos. Retira poder à religião para o fornecer à natureza humana, em permanente simbiose com o universo telúrico das suas origens. Com tudo isto, dá-se a ascensão da pura liberdade em detrimento dos ensinamentos conservadores da religião, que, segundo o poeta, não têm acompanhado os tempos.

351TORGA, Miguel, Biblioteca Miguel Torga, Diário, Vols. XV e XVI, Editora Planeta de Agostini, S.A., Lisboa, 2000, p.108. 352MOREIRO, José Maria, Eu, Miguel Torga, Difel, Lisboa, 2001, p.122.

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