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BIOPOLÍTICA E FORMAS DE GOVERNO

2.2 Birôs da polícia, estado de polícia e a nova governamentalidade

É por meio da biopolítica de interferir no fazer viver, na maneira de viver e no como da vida que o Estado – como esquema de inteligibilidade de todo um conjunto de instituições já estabelecidas, como ideia reguladora dessa forma de pensamento, de reflexão, de cálculo e intervenção – poderá fazer suas forças crescerem, aumentando seu poderio e seus lucros. É a partir do século XVIII que se começará a chamar de polícia o conjunto dos meios pelos quais é possível fazer as forças do Estado crescer, mantendo, ao mesmo tempo, a ordem. Sobre esse novo sistema econômico, social e antropológico, Foucault (2008b, p.438) afirma,

(...) nesse sistema econômico, social, poderíamos dizer até nesse novo sistema antropológico instaurado no fim do século XVI e no inicio do século XVII, nesse novo sistema que já não é comandado pelo problema imediato de não morrer e sobreviver, mas que vai ser

comandado agora pelo problema de viver e fazer um pouco melhor que viver, pois bem, é aí que a polícia se insere, na medida em que é um conjunto de técnicas que asseguram que viver, fazer um pouco melhor que viver, coexistir, comunicar-se, tudo isso será efetivamente transformável em forças do Estado.

Segundo Foucault (2008b), o que se chama de economia é a constituição de um saber de governo que é absolutamente indissociável da constituição de um saber de todos os processos que giram em torno da população: não se trata de impor a lei aos homens, mas de dispor das coisas, ou seja, de utilizar táticas, agindo de modo que, por certo número de meios, esta ou aquela finalidade possa ser alcançada. Nesse contexto do século XVII, o objetivo do Estado de polícia era controlar e ser responsável pela atividade dos homens, na medida em que essa atividade pudesse se constituir como um elemento diferencial no desenvolvimento das forças do Estado.

Havia, nessa época, a figura dos “Birôs”, espécie de subordinados diretos do conservador-geral de Polícia. O Birô de Polícia era responsável pela instrução de crianças e jovens, da ocupação de cada um. O Birô da Caridade se ocupava dos pobres: os considerados “válidos”, os que podem trabalhar, e os doentes e “inválidos”, aos quais se davam subvenções. Também era de seu encargo cuidar da saúde pública em tempos de epidemia e contágio. Mas outros acontecimentos eram de sua responsabilidade: os acidentes causados por incêndios, inundações, e outros que causassem empobrecimento, deixando as famílias em miséria. A este Birô caberia tentar impedir esses acidentes, assim como buscar repará-los e ajudar os que eram atingidos. O terceiro Birô cuidava dos comerciantes, regulando os problemas de mercado, de fabricação etc. Já o último Birô, o do Domínio, ficava encarregado dos bens imobiliários, zelando pela compra e pela

maneira como se compravam e vendiam os bens fundiários, os preços dessas vendas, o registro das heranças etc.

De modo geral, a polícia se ocupava de diversos objetos. Primeiramente, do quantitativo da população em relação aos recursos e possibilidades do território que ela ocupa. O segundo objeto eram as necessidades da vida. O terceiro objeto: os problemas da saúde. Em seguida, zelar pelas atividades, para que os homens não ficassem ociosos, ou seja, a regulamentação dos ofícios. Também se atrelavam ao mercado da compra, da venda e da troca, regulamentando a maneira como se podia e se devia pôr à venda, a que preço, como, em que momento etc. E, por fim, a circulação, não somente os espaços de circulação, como também o conjunto de regulamentos, imposições etc. que lhe influenciam. Isto é, os objetos de que a polícia se ocupava eram essencialmente urbanos, na medida em que é na cidade que eles adquirem o essencial de sua importância. Em certo sentido, policiar e urbanizar eram a mesma coisa.

Foucault (2008b) considera que esse projeto de polícia era uma espécie de golpe de Estado permanente. Segundo o autor, no pensamento político do início do século XVII, o golpe de estado era, em primeiro lugar, uma suspensão, uma interrupção das leis e de legalidade, uma ação extraordinária contra o direito comum, que não preservava nenhuma ordem e nenhuma forma de justiça. Havia momentos em que a razão de Estado já não podia se servir das leis, vendo-se obrigada, por algum acontecimento premente e urgente, em função de certa necessidade, a libertar-se dessas leis usuais. Assim, em função da necessidade da salvação do próprio Estado, é que a razão do Estado vai varrer as leis civis, morais, naturais reconhecidas até então:

A necessidade, a urgência, a necessidade da salvação do próprio Estado vão excluir o jogo dessas leis naturais e produzir algo que, de certo modo, não será mais que pôr o Estado em relação direta consigo mesmo sob o signo da necessidade e da salvação. O Estado vai agir de si sobre si, rápida, imediatamente, sem regra, na urgência e na necessidade, dramaticamente, e é isso o golpe de Estado. O golpe de Estado não é, portanto, confisco do Estado por uns em detrimento dos outros. O golpe de Estado é a automanifestação do próprio Estado (FOUCAULT, 2008b, p.350).

Alguns elementos são considerados fundamentais nesse golpe de Estado. O primeiro elemento se refere à noção de necessidade, tida como lei fundamental, que, embora não seja no fundo uma lei, excede todo o direito natural, todo o direito positivo, pois tem como premissa que a salvação do Estado deve prevalecer, como quer que seja, sobre toda e qualquer outra coisa. O segundo elemento é a noção de violência. Se em seu exercício ordinário, habitual, a razão de Estado não exerce uma violência ilimitada, quando a necessidade exige, ela o fará. Ser violenta significa que é obrigada a sacrificar, a amputar, a prejudicar, a ser injusta e mortífera. Segundo Foucault (2008b, p. 352):

Violenta significa que ela é obrigada a sacrificar, a amputar, a prejudicar, ela é levada a ser injusta e mortífera. É o principio, diametralmente oposto, como vocês sabem, ao tema pastoral de que a salvação de cada um é a salvação de todos, e a salvação de todos é a salvação de cada um. Daí em diante, vamos ter uma razão de Estado cuja pastoral será urna pastoral da opção, uma pastoral da exclusão, uma pastoral do sacrifício de alguns ao todo, de alguns ao Estado.

O terceiro elemento importante do golpe de Estado se refere à sua característica necessariamente teatral. Como ele é a afirmação irruptiva da razão de Estado, ele tem de ser imediatamente reconhecido segundo suas verdadeiras características, exaltando-se a necessidade que o justifica, bem como ser deflagrado à luz do dia para que possa angariar adesão e as leis suspensas possam ser

reconhecidas. Os encaminhamentos e procedimentos do golpe devem ser ocultados, enquanto seus efeitos e as razões que lhe sustentam devem aparecer solenemente, ou seja, há necessidade de encenação do golpe.

Quando a polícia intervinha como golpe de Estado, ela se exercia, agia em nome e em função dos princípios de racionalidade do Estado, sem ter de moldar pelas regras de justiça, uma vez que atuava por meio de regulamentos, decretos, proibições e instruções. Era com base no modo regulamentar que a polícia intervinha, sendo o regulamento uma espécie de lei em funcionamento móvel, permanente e detalhado.

Para o autor, essa regulamentação do território e dos súditos que caracterizava o projeto de polícia do século XVII se decompôs e agora se tem um sistema de certo modo duplo. De um lado, uma série de mecanismos que são do domínio da economia, da gestão da população, e que terão por função fazer crescer as forças do Estado. De outro lado, certos aparelhos ou número de instrumentos que garantirão que a desordem, os ilegalismos, as irregularidades, as delinqüências sejam impedidas ou reprimidas, ou seja, a instituição da polícia no sentido moderno do termo. Para o autor, uma nova governamentalidade estava se desenhando. Por governamentalidade se entende

o conjunto constituído pelas instituições, os procedimentos, análises e reflexões, os cálculos e as táticas que permitem exercer essa forma bem específica, embora muito complexa, de poder que tem por alvo principal a população, por principal forma de saber a economia política e por instrumento técnico essencial os dispositivos de segurança (FOUCAULT, 2008b, p.143).

Nessa nova governamentalidade que estava se desenhando, algumas características principais eram identificadas. A sociedade como uma naturalidade

própria do homem surgia como um campo de domínio de análise, de saber, de intervenção, sendo chamada de sociedade civil. O Estado não operava mais sob uma racionalidade de polícia, em que uma série de súditos submetia-se a uma vontade soberana e era condescendente às suas exigências. A partir do século XVIII, o Estado passa a ter a seu encargo uma sociedade civil, e é a sua gestão que ele deve assegurar. Essa gestão terá por objetivo não tanto impedir as coisas, mas fazer de modo que as regulações necessárias e naturais atuem, instituindo dispositivos para garantir a segurança desses fenômenos que são os processos econômicos ou os processos intrínsecos à população. Dessa forma, frente a estes fenômenos e processos de uma naturalidade social, aparecerá o tema do conhecimento científico – sobretudo da economia – que poderá conhecê-los, assumindo uma atividade que será indispensável para um bom governo.

Se a governamentalidade do século XVII era marcada por um projeto unitário de polícia, a nova governamentalidade que começa a se desenhar a partir do século XVIII irá decompor-se em vários elementos: a economia, a gestão da população, o direito, com o aparelho judiciário, o respeito às liberdades, um aparelho policial, um aparelho diplomático, um aparelho militar. Foucault (2008b, p.481) considera que se pôde fazer essa genealogia do Estado moderno e dos seus aparelhos a partir dessa história da razão governamental, da “própria prática dos homens, a partir do que eles fazem e da maneira como pensam. O Estado como maneira de fazer, o Estado como maneira de pensar” e não o Estado como um grande monstro ou uma máquina automática, como uma “espécie de monstro frio que não parou de crescer e se desenvolver como uma espécie de organismo ameaçador acima de uma sociedade civil” (Idem, p.331).