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3. O AVESSO

3.5 O Círculo Sagrado das Linhas: bordado, ritual e cultura

3.5.1 O bordado livre e as novas rodas

O bordado ensinado e praticado até a geração de Dona Antônia, matriarca do grupo Matizes Dumont, era o clássico, executado sobre o tecido de linho – de cor branca, preferencialmente –, tensionado pelo bastidor, cujos pontos seguiam rigorosamente um gabarito. E, requisito primordial, pela habilidade e preciosismo da bordadeira, o lado avesso do tecido tornava-se tão similar ao direito que era impossível distinguir. Havia uma certa padronização nas produções, que seguiam traços de revistas que vinham de fora do Brasil e acabam por gerar a reprodução de elementos culturais externos à realidade local. Eram flores, árvores e raminhos de vegetações europeias, arabescos portugueses e pontos rigorosamente aplicados de maneira a não “sujar” a imagem.

Em tempos recentes e na atualização dos processos simbólicos, a prática é a do chamado bordado livre, em que o tecido é liberto do bastidor, permitindo que alguns grupos de bordadeiras produzam o mesmo desenho simultaneamente, contribuindo individualmente para o produto final95. Nessa produção coletiva, criam pontos próprios,

inusitados, que vão além das amostras de pontos convencionais, agregando um novo aspecto ao ritual de encontro do bordado. Também o avesso do novo bordado é interessante: na parte traseira do pano formam-se novas geometrias e mapas visuais que capturam o olhar. Há um bordado no direito dos deferentes tecidos utilizados (tramas, texturas, cores e fibras variadas são permitidas e requisitadas) e um outro bordado que se forma no lado avesso.

Os bastidores funcionam atualmente como recurso auxiliar no aperfeiçoamento ou delimitação de um pequeno trecho de um tecido muito maior, bordado conjuntamente a várias mãos. Não mais imprescindíveis ao ofício e apartados de sua função original de instrumento constritor, acabaram por se tornar moldura para bordados de parede, artefatos

95 O ritual de criação coletiva de uma única peça artesanal é tradição em várias culturas pelo mundo. Nos

Estados Unidos da América, assim como nas rodas de bordado livre no Brasil, é tradição a confecção do

patchwork, em que as mulheres de uma comunidade se unem para costurar grandes colchas de retalho,

presenteadas a famílias em ocasiões especiais, como casamentos e nascimentos. Cada mulher contribui com um retalho de tecido de roupas ou enxovais de importantes lembranças de suas vidas ou elaboram as colchas com retalhos de momentos especiais de quem vai receber o presente. Uma emocionante representação dessa tradição pode ser vista no filme How to Make an American Quilt, de Jim Abrahams (1995), produzido pela Universal Pictures e intitulado em Português como Colcha de Retalhos.

decorativos, incorporando-se ao produto final ou ganhando status artístico em si mesmo (FIG. 52). Ressignificam-se assim, nos rituais de bordados contemporâneos, os objetivos dos encontros, os pontos e o próprio círculo.

Figura 52 - O bastidor liberta e se libera

Fonte: < https://i1.wp.com/www.amodadanoiva.com.br/wp-content/uploads/2017/02/bastidor-bordado- decoracao-ideias-tecido-2.jpg?fit=600%2C400>. Acesso em 25 ago. 2016

Na produção do bordado livre é a combinação de pontos autorais, alheios a qualquer tipo de padrão ou gabarito existente, que conta. O que interessa, para os que o praticam, é o resultado estético e os significados que advêm da peça. Assim, é acrescido de um sentido tátil ainda mais expressivo e toda forma de tradução é possível. O tecido literalmente se transforma em tela para a expressão de quem borda, como uma página em branco torna-se a base para a escrita de uma poesia ou uma carta. Cada indivíduo possui caligrafia própria, preensão própria e usa a ferramenta – pena, caneta, lápis, pincel, cada um com suas especificidades de traço – que melhor se adeque ao objetivo do texto. No bordado livre, cada bordadeira tem sua forma de pontilhar (FIG. 53). Assim é a escrita das linhas.

Figura 53 – Prática do bordado livre

FONTE: Documentário Trans Bordando, Kiko Goifman, 2007. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=_MUz4OAfJC8> Acesso em 26 de jan. 2016.

Matizes Dumont pratica o bordado livre, desde a geração das filhas de Dona Antônia (hoje as netas também integram o grupo, e as pequenas bisnetas já participam da separação de linhas em cores e texturas, em um ensaio para a preensão futura das agulhas). Os pontos produzidos pela família são grande parte autorais, desenvolvidos a partir do contexto da obra em execução, resultando em materialidades diversas, com significados específicos.

Sávia Dumont ressalta a colaboração entre as irmãs: “cada uma faz um ponto e um acrescenta um ponto ao ponto do outro” 96 e, por conseguinte, o seu olhar sobre o desenho

original. Como resultado das exigências materiais da vida de cada bordadeira, a roda física de bordado da família, que acontecia na sala, na cozinha e na varanda da casa sede em Pirapora, se dissolveu. Entretanto, com o auxílio das tecnologias comunicativas (os irmãos trocam pontos e compartilham percepções pelo Skype e pelo Whatsapp97) e a

persistência do simbolismo da forma circular, a roda, ainda que virtual, perdura. É uma forma diferente de bordar em conjunto, que reforça a liberdade de escolhas e de transcriações no bordado contemporâneo.

Para a bordadeira Marilu Dumont, o bordado livre é ainda o símbolo maior de uma transformação de conceitos e valores. Traçando uma analogia entre o percurso das mulheres e o ancestral constritor de madeira, Marilu destaca a evolução do feminino: “as

96 BORDADEIRAS. Cidades Invisíveis, Minas revelada pelos pontos da cultura, de Adriana Menezes e

Belarmino Neto, 2009. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=NzEE8qlIrVs>. Acesso em 15 mar. 2016.

97 Skype é um software de transmissão via internet de imagens, áudios e vídeos, criado em 2003, que

permite a realização de videoconferências em tempo real, servindo como base de comunicação entre grupos geograficamente distantes. Whatsapp é um aplicativo de chamadas instantâneas de voz, texto, arquivos e vídeo, via internet, criado para uso em smartphones, com extensão para desktops (Whatsapp Web).

mulheres deixaram simbolicamente o espaço do bastidor, aquele círculo em que ela vive, para uma criação, uma transformação muito grande. Daí a espontaneidade e o movimento de libertação. Elas foram além do bastidor”98.

Livre do bastidor, receptivo às transformações do mundo e a despeito da imersão da sociedade contemporânea nas imagens técnicas e dos aparatos referidos por Vilém Flusser (2007), é pela ação das mãos, em grupo e em prazerosos momentos de conversas atualizadas, que o bordado (re)constrói narrativas. A roda de bordado da contemporaneidade resgata o importante gesto das mãos e das pontas dos dedos, não mais para a produção de não-coisas99, mas para a criação de algo material, visível e tátil,

traduzido da troca de experiências entre o individual e o coletivo. No bordado, a ponta dos dedos produz coisas cujas superfícies são coalhadas de significados poéticos – no sentido mesmo de poiesis, de fazer, um fazer que instaura um novo cosmos – que podem ser transmitidos geração a geração, por tempos a fio, traduzindo a tradição.

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