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No intuito de ancorar uma perspectiva teórica cientificamente validada acerca do poder de convencimento e legitimação presente nas narrativas que são propostas “de cima para baixo”, nesta seção faço um esforço de resumir a perspectiva e conceitos do sociólogo francês Pierre Bourdieu. Bourdieu buscou em sua teoria explorar aproximações de elementos teóricos dos principais clássicos da sociologia, além de ser responsável por uma gama conceitual de grande relevância principalmente no que tange à debates acerca das relações de dominação social.

Bourdieu serve portanto de apoio teórico no que diz respeito ao poder discursivo, ele define que, é através do chamado poder simbólico que diferentes formas simbólicas – mitos, linguagens, arte, ciência, ou ainda pode-se dizer da contemporaneidade produções de conteúdo em geral – não são como se pensa, universais, mas sim formas sociais relativas a um grupo particular e socialmente determinadas. Ancora-se pois a noção de que existem grupos dominantes e dominados e que estes possuem diferentes universos simbólicos, determinados pela sua socialização em determinada classificação social.

Pois bem, o autor defende que as produções simbólicas (lê-se valores difundidos socialmente através de diversas esferas) estão estreitamente relacionados com os interesses de uma classe dominante, que tende a apresentar tais interesses particulares como interesses universais. Segundo Bourdieu, a cultura dominante assegura uma integração entre seus membros, enquanto os distingue das outras classes, visando uma

integração fictícia da sociedade, desmobilizando classes dominadas de modo a legitimar uma ordem hierarquizada. Assim, muitas vezes manifestações culturais nascentes nas classes dominadas são consideradas subculturas, enquanto que valores das classes dominantes são difundidos e entendidos como naturais, quando não, desejáveis.

O autor define que estes sistemas simbólicos de representação cultural atuam como mecanismos de legitimação da violência simbólica, ou seja, a dominação “velada” de uma classe sobre a outra. A violência simbólica não é explícita e por isso pode se manter por gerações, sem que as pessoas envolvidas percebam-se como suas vítimas. O poder simbólico é, nesse sentido, um poder invisível de construção da realidade, que estabelece um sentido imediato do mundo social e, enquanto instrumento de conhecimento e comunicação, reforça uma reprodução da ordem social.

O poder simbólico consegue assim, obter de modo quase imperceptível o equivalente ao que se obtém pela força física ou econômica, graças ao efeito da mobilização, materializada e justificada por uma falsa consciência coletiva. Portanto, o poder simbólico se define na relação entre os que exercem o poder e os que lhe são sujeitos, isto é, na estrutura do ​campo em que se produz e reproduz as diferenças, e de acordo com o16 habitus vigente. Bourdieu (2010) conceitua essa violência simbólica como a indução sobre17 o indivíduo de se posicionar no espaço social seguindo os padrões de um discurso dominante, ainda que desvalorizando a si próprio e seus pares. Cria-se então um sistema onde o dominado não compreende essa imposição de normas e, inevitavelmente, as aceita como naturais.

Evoco aqui um dos exemplos mais clássicos do autor à despeito de violências simbólicas socialmente legitimadas além de pertinente à abordagem da presente pesquisa: as desigualdades no espaço escolar. Buscando entendê-las através desta chave conceitual, Bourdieu parte da compreensão dos mecanismos de exclusão experienciados pelas crianças menos favorecidas. As diferenças de êxito determinadas pela ideia de diferenças entre dons, são um exemplo desta exclusão. Esses dons entretanto não são de ordem inerente aos seus possuidores como dá-se entender a narrativa, muito pelo contrário, relacionam-se com um privilégio cultural que é determinado sobretudo, pela bagagem cultural que a família transmite direta ou indiretamente aos filhos durante o processo de socialização. Para Bourdieu (2010) essa herança cultural é responsável pela diferença inicial das crianças diante da experiência escolar e, em consequência, por suas taxas de

16 Conceito da teoria bourdieusiana utilizado para definir as diferentes arenas de disputas sociais, tais como: campo científico, o campo político, o campo educacional, o campo da comunicação de massas assim consecutivamente.

17 Arenas estas dotadas de suas próprias regras, lógicas internas, sistemas de disposições próprias que o autor define como ​habitus.

êxito. O autor demonstrou que a influência do capital cultural aparece na relação entre o nível cultural global da família e o êxito escolar da criança, sendo que a parcela de bons alunos cresce em função da renda e do nível de escolaridade de suas famílias.

Aspectos demográficos da família (como o número de membros) e a residência no momento dos estudos também estão associados às vantagens e desvantagens culturais, no que diz respeito aos resultados escolares e às práticas e conhecimentos culturais (teatro, música ou cinema), ou ainda à facilidade linguística. Assim, o nível cultural das duas gerações antepassadas e a residência permitem fazer um cálculo aproximado das esperanças quanto a vida escolar de determinada criança. Outros aspectos da família que determinam o êxito escolar dos filhos são as características do passado escolar dos pais e avós, bem como se possuem ou não ensino superior. Bourdieu (2010) afirma que a herança cultural se transmite de forma osmótica, mesmo quando não se percebe qualquer forma de ação metódica. Esse fato alimenta, nos membros da classe mais alta, a convicção de que eles devem seus conhecimentos a um dom pessoal e que suas aptidões são devidas a essa posse, e não decorrentes dos processos de aprendizagem aos quais já foram submetidos formal e informalmente.

Assim, a escola – por também estar inserida nesse sistema hierárquico de valores – não exerce necessariamente a violência física, mas sim a violência mediante forças simbólicas, ou seja, pela dominação. A partir disso, os alunos são induzidos a pensar e agir de tal forma que promovem a legitimação da ordem vigente. Além disso, a escola tende a ignorar as diferenças socioculturais, selecionando os valores culturais da classe dominante e, portanto, privilegiando aqueles que já dominam esse aparato cultural, isso ocorre principalmente pela auto identificação por parte do corpo regente da escola e os alunos dotados de maior capital cultural. Dessa forma, a escola submete os filhos da classe trabalhadora às concepções de mundo dominantes, hierarquizando, estigmatizando e provocando o fenômeno da ​profecia auto realizante . A violência simbólica, portanto, não é18 algo oficializado, mas permanece implícita na estrutura da escola tradicional e da sociedade como um todo, reproduzindo as relações de dominação e perpetuando as ideologias dominantes.

A partir da noção de poder simbólico de Bourdieu, a presente pesquisa parte do pressuposto de que os discursos – especialmente aqueles que se apresentam de maneira vertical – carregam profundas significações e valores, muitas vezes implícitos,

18 Termo utilizado pelo autor para os recorrentes casos onde o/a estudante não se identifica com os valores pregados pela escola e portanto não crê em suas próprias capacidades de sucesso escolar negando este sistema e “aceitando” por assim dizer o lugar “inferior” que lhe é associado. Sobre o assunto, ver ​“Aprendendo a ser trabalhador” etnografia de Paul Willis de 1991 que ilustra de maneira

constituindo-se assim enquanto poderosa ferramenta de incutição e legitimação de valores dominantes. Nesse sentido propõe-se enquanto método de análise, a análise de conteúdo da divulgação oficial do governo federal sobre a reforma do ensino médio, de modo que possa-se extrair e refletir sobre as unidades de significação implícita presentes neste material. A análise apoia-se também em pressupostos semióticos, que contribuem para a compreensão do processo mental entre mensagem e intérprete, como observa-se a seguir.

2.3 Pressupostos Semióticos, Análise de Conteúdo e caminho metodológico