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3.3 – Branca, senhorial e católica: A construção da memória nacional na Era Vargas

Arte e Cultura como suporte simbólico da comunidade imaginada

I. 3.3 – Branca, senhorial e católica: A construção da memória nacional na Era Vargas

Assim como encontramos, no governo do Imperador Pedro II , o empenho em relação à construção e guarda da memória nacional, através do trabalho inaugural desempenhado pelo Instituto Histórico e Geográfico do Brasil (IHGB)e Academia Imperial de Belas Artes (AIBA) , no governo Vargas, o Decreto-lei no. 25 de 30 de novembro de 1937 , cria o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN).

O ministro Capanema irá se socorrer da experiência e cabedal intelectual de Mário de Andrade que, já em 1935, fundara, juntamente com Paulo Duarte , o Departamento Municipal de Cultura de São Paulo,para conceberem, Mário e Paulo, um projeto de lei , em 1936, que dispunha sobre a criação de uma instituição nacional de proteção do patrimônio.É este documento que servirá de base para as discussões preliminares sobre os objetivos e ações do futuro SPHAN.

Márcio de Souza , ao refletir sobre este período inaugura o conceito de ultramodernismo para justificar a convivência entre personalidades como Gustavo Capanema que , na sua visão,nutria uma admiração pelos regimes fascistas , e Mário de Andrade , com seu perfil de vanguarda e visão socialista: o ultramodernismo seria a utopia de moldar racionalmente sociedades inteiras, ideologia jamais explicitada ,que unificava direita e esquerda :

Enquanto Gustavo Capanema articulava a moldagem de um certo Brasil

descendente dos bandeirantes, como um povo racialmente purificado pela eugenia, Mário de Andrade acreditava poder moldar o Brasil de seus sonhos, uma nação mestiça cheia de bibliotecas, galerias de arte, de gente culta, célere e moderna.

(Souza ,2000)

Esta convivência entre visões heterogêneas gerava uma ambigüidade que não fez pender para o lado de Mário a gestão do Patrimônio e, em 1937 ,Rodrigo Melo Franco de Andrade – mineiro, advogado, jornalista , escritor e ex-chefe de gabinete de Francisco Campos quando este ocupou a pasta do Ministério da Educação e Saúde Pública, é nomeado Diretor do SPHAN. Ocupará este cargo até 1967, portanto 30 anos, o que certamente propiciou ,de positivo, o fato de ter podido consolidar o trabalho da instituição, fato raro na administração pública brasileira cuja característica, entre outras, será a da descontinuidade de suas políticas .Rodrigo Melo Franco empenhou-se em evitar qualquer associação do

patrimônio histórico e artístico nacional a posturas ufanistas, de glorificação da pátria .

Sua preocupação foi a de consolidar uma noção de patrimônio histórico e artístico

“científica”, na medida em que se pretendia pautada por critérios impermeáveis às idéias de “patriotismo” e à manipulação ideológica .(Londres, 2001:96/97)

É importante ressaltar que, embora com muitas afinidades, Mário de Andrade e Rodrigo possuíam visões nem sempre confluentes em relação às noções de patrimônio , bens culturais e mesmo a de nacionalismo. A idéia de patrimônio que se tornou hegemônica ,com a gestão de Rodrigo e do grupo modernista que o acompanhou, resultou nos

tombamentos que incidiram majoritariamente sobre a arte e arquitetura barroca concentrada em Minas Gerais, principalmente monumentos religiosos católicos:

A arquitetura, a escultura e a pintura produzidas em Minas Gerais, durante o século XVIII, pareceu-lhes conter os atributos de originalidade nacional. O chamado “barroco mineiro” era, nessa perspectiva modernista, a expressão artística nacional por excelência e reforçava essa tese o fato do mais célebre entre os artistas do setecentos mineiro ser um mulato:Antônio Francisco Lisboa, dito Aleijadinho.A proposta dos modernistas de voltar-se ao nativo, ao genuinamente nacional, encontrara nesse filho de um construtor português e de uma escrava negra uma de seus maiores emblemas. (Paiva,2002:79)

Segundo Cecília Londres,essa orientação teve como conseqüencia não só a exclusão de

estilos historicamente importantes, como o ecletismo (...) como a não consideração de todo um patrimônio cultural não-monumental, mas da maior importância para a documentação e o conhecimento da formação de nossa nacionalidade.

A visão de Mário de Andrade se voltava para uma concepção de cultura e de bens culturais que reconhecia o potencial variado das realidades regionais de que ele foi testemunha nas suas viagens da década de 20 , de caráter etnográfico ,como “turista aprendiz”, compreendendo a fusão das várias tradições advindas das diversas etnias que participaram do processo de colonização e construção do Brasil, e também nunca perdendo a perspectiva dialógica entre regional,nacional e universal. Portanto uma visão do fenômeno cultural como plural e fusional: Sou um tupi tangendo um alaúde, escreveria em Macunaíma(1928) .

Em algumas de suas cartas dirigidas a Carlos Drummond de Andrade, poeta e chefe de gabinete do ministro Capanema, Mário deixa transparecer seu pensamento em relação ao próprio trabalho como escritor mas também como pesquisador e gestor de políticas culturais, demonstrando ainda ter uma visão muito particular ,para a época, no que se refere às idéias de cultura , civilização e nacionalismo.Seguem alguns destes pensamentos.

Sobre seu ofício como escritor:

A aventura em que me meti é uma coisa séria já muito pensada e repensada. Não estou cultivando exotismos e curiosidades de linguajar caipira. Não. (...) Estou num país novo e na escureza completa duma noite. Não estou fazendo regionalismo. Trata-se duma estilização culta da linguagem popular da roça como na cidade, do passado e do presente.

Sobre a idéia de civilização:

(...) Os tupis nas suas tabas eram mais civilizados que nós nas nossas casas de Belo Horizonte e S. Paulo. Por uma simples razão: não há civilização. Há civilizações. Cada uma se orienta conforme as necessidades e ideais duma raça, dum meio e dum tempo.Dizer por exemplo que os egípcios da 18ª. dinastia representam um degrau da civilização antiga que atingiria o esplendor com o século V AC dos gregos é uma besteira que dá apoplexia na gente. São ambos apogeus de civilizações diversíssimas.

(...)

Nossos ideais não podem ser os da França porque as nossas necessidades são inteiramente outras, nosso povo outro, nossa terra outra, etc. Nós seremos civilizados em relação às civilizações o dia em que criarmos o ideal, a orientação brasileira. Então passaremos da fase do mimetismo para fase de criação. E então seremos universais, porque nacionais.

. Sobre nacionalismo e universalismo:

(...) não existe essa oposição entre nacionalismo e universalismo. O que há é mau nacionalismo: o Brasil pros brasileiros - ou regionalismo exótico. Nacionalismo quer simplesmente dizer: ser nacional. O que mais simplesmente ainda significa: Ser. Ninguém que seja verdadeiramente, isto é, se relacione com o seu passado,

com as suas necessidades imediatas práticas e espirituais, se relacione com o meio e com a terra, com a família, etc, deixará de ser nacional.( Andrade,1987:30/31/3)7

“Começar o trabalho de abrasileiramento do Brasil”, uma idéia e desejo de Mário de Andrade, tomou um perfil não do reconhecimento de nossa pluralidade cultural refletida, inclusive, nas manifestações de arte popular e “foclore”, mas da eleição por uma elite intelectual atuante no Estado , das prioridades em relação aos bens passíveis de tombamento que acabou por resultar numa imagem de Brasil ,via patrimônio histórico e artístico, quase que exclusivamente branca ,senhorial e católica, nas palavras de Cecília Londres.7

A despeito das lutas pela hegemonia conceitual que prevalecerá na instituição, a criação do SPHAN representou um marco profissional definitivo no campo cultural cujos frutos, com seus equívocos e acertos, repercutem nos dias de hoje.Seus trabalhos exigiam a participação de uma equipe multidisciplinar entre pesquisadores, historiadores, juristas, arquitetos, engenheiros, restauradores , mestres de obra, etc., cuja coordenação representava um desafio, ao mesmo tempo, novo , complexo e necessário.