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O espaço de vida da criança:

contribuições dos estudos de Marta Muchow às crianças e suas espacialidades • 759

R. Educ. Públ. Cuiabá, v. 26, n. 63, p. 755-774, set./dez. 2017

Podemos situar a década de 70, do século passado, como um momento em que se iniciam os acúmulos de trabalhos que envolvem as crianças e suas espacialidades. Produções desenvolvidas em diferentes contextos geográficos, mas fortemente influenciadas pelos postulados sistematizados na Geografia Humanista, irão iniciar uma série de ações e registros que buscam desvelar o ser e estar das crianças no espaço. (LOPES, 2013, p. 284-5).

O autor reconhece que o livro de Y-fu Tuan, com o título Topofilia, cuja primeira edição data de 1973, e publicado em diversas línguas a partir dos anos 1980; a obra de Armand Frémont, publicada em 1976 e intitulada La

Région, espace vécu (A região, espaço vivido); o livro A Imagem da Cidade,

publicado em 1960, de Kevin Lynch, além dos estudos de Piaget (PIAGET; INHELDER, 1993, entre outros) trarão influências expressivas nesses estudos, constituindo-se como marcos referencias para os estudos iniciais nas pesquisas sobre crianças e suas relações espaciais.

Cartografar movimentos de uma época é sempre algo difícil, pois se retratam, muitas vezes, as fontes a que a pesquisa teve acesso, correndo-se o risco de deixar de fora outras contribuições. Entretanto, é o que permite, mesmo em seus limites, conhecer o Zeitgeist que permeia determinados espaços e tempos. Nessa perspectiva, buscando agregar valor ao desenho da

escavação citada anteriormente, evidencia-se uma pesquisadora do início do

século XX, que parece ser uma das primeiras pessoas que dedicaram sua vida acadêmica para pensar o binômio criança/espaço: Marta Muchow.

Este texto se dedica a ela e às suas importantes contribuições. Assusta-nos como uma obra de grande importância tenha permanecido esquecida no meio científico. No caso do Brasil, há publicações que possam dar visibilidade ao seu trabalho. Marta Muchow desenvolveu expressivas investigações sobre a relação das crianças com seus meios, sobretudo o urbano, cunhando temas e conceitos que hoje se apresentam contemporâneos à área de Estudos da Infância.

Marta Muchow nasceu no dia 25 de setembro de 1892, na cidade de Hamburgo, Alemanha e cometeu suicídio no ano de 1933, mais precisamente no dia 27 do mesmo mês de seu nascimento, pressionada pelas ações do regime nazista em seu país e pelos rumos que a vida na Alemanha tomava.

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Figura 2 - Martha Muchow, 1930

Fonte: Muchow e Muchow, (2012, p. 24).

Foi professora e trabalhou como colaboradora voluntária no Laboratório de Psicologia da Universidade de Hamburgo, coordenado por William Stern, no período de 1916 e 1933, o qual, segundo Mey e Günther (2015), transformar- se-ia em um dos maiores centros de referência de estudos da infância naquela época. No ano de 1920, dedicou-se intensamente a um conjunto de trabalhos na própria cidade de Hamburgo, em um distrito chamado Barmbeck7.

Seu livro Der Lebensraum des Groβstadtkindes (traduzido para o inglês com o título The Life Space of Urban Child) ainda se encontra sem tradução para o português, mas poderia ter como título O Espaço da Vida da Criança

na Cidade Grande. A obra foi publicada após sua morte pelo seu irmão

Hans Heinrich Muchow, no ano de 1935, com divulgação muito restrita ao território germânico.

7 Atualmente o distrito recebe a grafia Barmek. Maiores informações sobre o local podem ser encontradas na página oficial da cidade na internet, disponível em: <http://www.hamburg.de/barmbek-sued/>.

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Figura 3 - Capa da Edição de 1935

Fonte: Muchow e Muchow (2012, p. 65).

Passados 43 anos de sua primeira edição, o livro foi reeditado em 1978, a partir de um intenso trabalho de pesquisa do professor Jürgen Zinnercker, docente da Universidade de Siegen, falecido no ano de 2011, que trabalhou como fundador e, por mais de 25 anos, no reconhecido Siegener Zentrums für Sozialisations-, Lebenslauf-

und Biographieforschung - SiZe (Centro de Siegen para pesquisa de Socialização e

Biografia), realizando muitos projetos com perspectivas inovadoras sobre infância e juventudes. Ele, sua esposa, a professora Imbke Behnken, e o grupo de pesquisadores dedicaram longos anos a um projeto que tinha por objetivo compreender o espaço de vida de alunos do final da Educação Básica. A pesquisa, que recebeu o nome de

Projektgruupe Jugendbüro und Hauptschulerarbeit (1975) e Projektgruppe Jugendbüro

(1977), utilizou-se do conceito de Lebenswelt (Mundo vivido), retirado dos estudos de Edmund Russel e seu aluno Alfred Schultz (1971 apud LOPES, 2012, p. 78):

É nesse caminho que Schültz traz o termo Lebenswelt, sendo as diversas dimensões das realidades experimentadas e vivenciadas por homens, mulheres e crianças. Essa experiência não se restringe a um lócus privado, mas sim intersubjetivo, em presença com o social, tendo como marca a interpretação das pessoas que nele habitam.

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Defende, assim, que a interpretação é o ponto de partida da constituição do dito real; [...] propõe um multi-verso em vez do universo, permeado pelas infinitas possibilidades de interpretações. Usando meu corpo como referência, como o Aqui e o Agora, vivencio as experiências espaciais e temporais, tendo como domínio a realidade social dos contemporâneos (MITWELT) e a dos predecessores (VORWELT). É a vida cotidiana –Altagwelt, que ocupamos e nos ocupa, onde se inserem minhas espacialidades e temporalidades [...]

O interesse em compreender o espaço vivido das crianças e jovens levou os pesquisadores de Siegen a desenvolverem um aporte-teórico reconhecido por Mapas Narrativos (Narrative Landkarten)8. Por isso, o encontro com a produção de Marta Muchow despertou grande interesse do professor e sua equipe e, segundo Mey e Günther (2015), foi realizado um grande esforço para levantar a vida da autora, recorrendo a entrevistas e arquivos em bibliotecas. Behnken e Zinnecker (2015) afirmam, ainda, que os conceitos estabelecidos por Muchow para investigar o espaço sociogeográfico das crianças foram replicados em sua pesquisa, como também um esquema desenvolvido por Heinz Werner, colega de Muchow que emigrou para os Estados Unidos.

A redescoberta do livro de Muchow teve grande repercussão na Alemanha. A obra apresenta uma última edição revisada e ampliada, de 2012, organizada por Imbke Behnken e Michael-Seabtian Honig (2012). De acordo com Mey e Günther (2015), atualmente, a autora vem recebendo uma atenção renovada sob a forma de publicações, exposições, conferências e homenagens especiais em seu país de nascimento. A própria biblioteca de Educação, Psicologia e Esportes de Hamburgo recebeu o nome da pesquisadora9, inclusive como referência a um

memorial das vítimas do nazismo. Em 2010, foi criada a Fundação Martha Muchow, com o objetivo de apoiar pesquisas e trabalhos sobre a infância inspirados nas perspectivas e exemplos da autora10.

Em um quadro que delineia alguns momentos da vida de Marta Muchow, com o nome original de Marta Muchow. Materialien zur Biografie einer

Wissenschaftlerin (Marta Muchow. Materiais para a biografia de uma cientista),

Jürgen Zinneker (in MUCHOW; MUCHOW, 2012), traz alguns momentos

8 Para maiores detalhes, ver Lopes (2012).

9 Acesse o sítio: <https://www.ew.uni-hamburg.de/mmb.html>. 10 Acesse o sitio: <http://www.martha-muchow-institut.de/>.

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da vida da pesquisadora: nascida em 1892, teve sua vida escolar de 1899 até 1912, torna-se professora no ano de 1913, na páscoa de 1914 até o outono de 1915 tem sua primeira experiência profissional em escola, nos anos seguintes continua como professora e atua em seu tempo livre em eventos do Laboratório de Psicologia, mais tarde cursa Psicologia e outras disciplinas na Universidade de Hamburgo e desempenha sua pesquisa com as crianças, sua morte ocorre em setembro de 1933 e, aproximadamente, dois anos depois seu irmão publica o livro que descreve os trabalhos desenvolvidos em campo.

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