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O Brasil dos outros livros da coleção

No documento Revista Sinais Sociais / Sesc (páginas 52-55)

ou expectativas frustradas), “o acúmulo de objetos, de lixo”, o “lar cada vez mais sufocante”, próprias de um mundo globalizado e de uma contemporaneidade fugidia se fazem sentir de maneira ainda mais vigorosa porque sem a insistência de uma visão manipuladora que insiste em se fazer presente.

A mesma tradutora, no seu prefácio, destaca o desejo de apresentar “romances da narrativa do país vizinho sem simplificar as características dessa condição estrangeira” (LÁZARO, 2013, p. 7). E ela explica: “Enquanto algumas estratégias de tradução respondem a características particula- res de Antonio, outras se inserem nos critérios mais gerais que a Coleção Boca a Boca propôs na tradução dos livros mencionados: levar o leitor até o texto” (LÁZARO, 2013, p. 7). Em resumo, manter a estranheza do texto, não simplificá-lo para que chegue mais fácil ao leitor. Também na tradu- ção de Outra vida, a tradutora estava interessada no aspecto material do texto, tendo citado Haroldo de Campos:

A tradução do romance nesta nova língua está orientada pela intenção de recriar o texto como um signo que não se esgota unicamente num sentido, mas, como indica Haroldo de Campos: ‘visto como uma entidade total, indivisa, em sua realidade material […] e em sua carga conceitual’, ou em outras palavras, onde o que se diz é inseparável da forma em que é dito (LÁZARO, 2012, p. 7).

Não há preocupação nenhuma da parte da tradutora de elucidar alguma questão sobre o Brasil, sobre a São Paulo que se apresenta no livro de Bracher, alguma característica de brasilidade ou, ao contrário, alguma garantia de universalidade. O destaque dela ao livro é sua “pontuação bastante peculiar”, sua condição de relato contra o tempo, a maneira de contar alternada por vários personagens, a proximidade com a oralidade. Diferentemente tanto da apresentação do livro de Lacerda quanto do primeiro livro da coleção, também traduzido por ela, Minha alma é irmã de Deus, de Raimundo Carrero. Na apresentação deste livro, ela sente necessi- dade de defendê-lo contra uma possível aproximação com o regionalismo: “o romance é antes de tudo um drama íntimo, e não necessariamente um texto regionalista, para além da natural distância que o leitor possa ter com o Recife que Raimundo Carrero delineia” (LÁZARO, 2012, p. 7). Mais adiante ela explica por que opta por uma tradução não anotada, sem, portanto, maiores explicações para os lugares brasileiros descritos ou cita dos no texto: “Devido à ideia de que a ficção subverte a dependência

unidirecional do lugar geográfico concreto, e o que parece Recife pode não o ser, e não seria tarefa da tradução elucidar” (LÁZARO, 2012, p. 8). O convite é claro: imaginar Recife como qualquer cidade do mundo.

Pitanga, de Carlos Eduardo de Magalhães, apresenta em um posfácio as peculiaridades da tradução e um esboço de como o tradutor, Pablo Cordellino Soto, pensa o livro:

Traduzir Pitanga […] é entrar de cheio no ritmo de São Paulo. Sente-se o pulsar da cidade nas linhas desta novela urbana, plena de silêncios, de personagens cuja voz se manifesta na voz de outro narrador ou de outro personagem, ou ainda em seus pensamentos, de limites quase sempre imprecisos entre o narrador e os personagens – ou entre estes – de um tempo e um espaço fraturados, que não dão ao leitor pistas precisas sobre as continuidades entre os distintos fragmentos (SOTO, 2013, p. 215).

Mais adiante o tradutor diz que uma das principais virtudes do texto é sua grande complexidade formal.

Em comum com as outras apresentações dos livros da coleção, então, o destaque do trabalho formal e um certo esforço para recomendar o livro como “produto cultural” ou como literatura do mundo, de qualquer lugar, passando longe de evidenciar qualquer característica mais brasileira ou destacando a cultura de uma ou outra cidade brasileira. São Paulo apare- ce assumida em sua pulsação, em sua institucionalização, em sua marca de grande cidade global mais do que brasileira, um lugar já de todos co- nhecido sem sabor ou cor especial.

Os outros dois livros da coleção, traduzidos por outros tradutores, não apresentam nenhum prefácio, nenhuma nota da tradução, nenhum comentário quanto a uma possível especificidade dos textos ou do país de onde eles vêm, apenas aparece, como também em todos os outros, na quarta capa, o propósito da coleção, bem dentro do jargão editorial: o objetivo de publicar e difundir parte significativa da literatura criada no Brasil e no Uruguai (e não brasileira e uruguaia, note-se) mediante a edi- ção de autores significativos de suas culturas e suas letras. “Um esforço coletivo que aponta para a criação de pontes linguísticas capazes de atra- vessar as fronteiras idiomáticas que separam ambos os povos”.

Evidente, assim, é toda uma recusa das marcas identitárias e mesmo da designação de literatura brasileira. O autor nasceu no Brasil. A língua é

diferente. Há uma estranheza vocabular, uma complexidade formal, uma geografia desconhecida, mas imaginada, aproximada. A corrupção, a caipirinha, as mulheres, o interior selvagem e desconhecido para onde se pode fugir de ônibus, são meros detalhes que podem ser ainda mais minimizados para o gosto do leitor uruguaio que se quer atingir.

Talvez a questão mais interessante seja o que faz, então, a tradutora ser levada a destacar no livro de Lacerda a condição de apagamento, ou pelo menos de atenuação, dos traços que o inscrevem afinal como literatura brasileira que tematiza questões bem brasileiras, inclusive a da identi- dade nacional como singularidade, tão bem marcada pela descrição do amante que opõe Brasil e EUA? Esperamos respondê-la adiante.

Miria Gras Miravet, pensando o mercado editorial espanhol e hispano- -americano, aponta para um momento de

[...] revisão das identidades nacionais e culturais, tal qual estiveram fazendo ultimamente alguns escritores, tanto espanhóis como hispano- -americanos, como Roberto Bolaño ou Enrique Vila-Matas, que advogam pela aceitação do evidente e inevitável, por uma literatura hispânica, múltipla, mestiça, heterogênea, proteica (MIRAVET, 2000, p. 29).

Identidade a ser conformada, portanto, em termos de língua.

É ao que chega também Burkhard Pohl, ao analisar o contexto de publi- cação de autores hispano-americanos na Espanha nos anos 2000 a partir de 1996 e o surgimento de McOndo, a antologia organizada no Chile, por Alberto Fuguet e Sergio Gómez, e publicada na Espanha, cujo prólogo- -manifesto despertou a atenção internacional justamente por descrever a desconexão entre os escritores latino-americanos sempre em estado de dependência da mediação internacional espanhola para internacio- nalizar seus livros. Diz ele:

Se por um lado se insiste na superação de um conceito de literatura nacional do escritor apátrida, por outro se observa a integração em uma comunidade linguística, definida pelo idioma espanhol, que não só trans- passa as fronteiras interamericanas, mas também o Atlântico em direção à Península Ibérica (POHL, 2000, p. 45).

No documento Revista Sinais Sociais / Sesc (páginas 52-55)