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A história do cinema brasileiro está atrelada às políticas de urbanização e industrialização pensadas para o país. Diante disso, deve-se primeiro entender o contexto histórico e os elementos que influenciaram a industrialização cinematográfica, para então entendermos os fatores que incentivaram a produção de um filme como O Cangaceiro. Logo, faz-se necessário analisarmos os aspectos políticos e econômicos que inseriram o Brasil no sistema capitalista.

Partindo das análises de Sônia Mendonça,71 o processo do capitalismo na história recente do país teve no Estado seu grande articulador. De acordo com essa autora,

71

MENDONÇA, Sônia Regina de. As bases do desenvolvimento capitalista dependente: a industrialização restringida à internacionalização. In: LINHARES, Maria Yedda. História Geral do Brasil. 9º Ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 1990.

Sem dúvida alguma a industrialização brasileira teve seu “arranco” a partir das transformações ocorridas ao longo da década de 1930. Estabeleceram-se então os contornos iniciais da implantação de um núcleo de indústrias de base, assim como a definição de um novo papel do Estado em matéria econômica, voltado para a afirmação do pólo urbano- industrial enquanto eixo dinâmico da economia.72

Contudo, apesar de uma grande produção historiográfica sobre o assunto, que fundamenta a afirmação da autora em torno da existência de políticas estatais que incentivaram a industrialização – a partir da década de 1930 – existem análises historiográficas divergentes, pois nessa mesma conjuntura permanecia uma estrutura econômica de caráter continuísta das práticas econômicas oligárquicas, de acordo com Mendonça.

Dentre essas análises divergentes podem-se destacar críticas que enfatizam as políticas monetárias e cambiais, e colocam esse primeiro período de 1930 a 1945 como economicamente conservadores, com um governo contecionista, antiemissionista e antiinflacionário, de caráter antiindustrializante. Essas reflexões dificultam pensar hegemonicamente no período como esta fase de pura industrialização. Tendo em vista tais posições, autores como João Manuel Cardoso de Mello73 trouxeram contribuições importantes sobres tais divergências. De acordo com Mendonça, há outras análises que valorizam a eficácia de mecanismos anticrises executados pelo Estado, ressaltando a dinamização da industrialização. Entretanto, há perspectivas que destacam o caráter beneficiário da burguesia industrial. Mesmo que houvera frações oligárquicas presentes no Estado, isso não significava desprovimento com qualquer caráter burguês. O empresariado industrial poderia não deter a hegemonia do processo, mesmo assim foi o ator estratégico nas alianças políticas do novo regime.

Mas, ao analisar as políticas de fomento à cultura entre 1930 e 1960, houve uma compreensão da intervenção do Estado como importante para a criação de uma indústria cinematográfica, assunto que será tratado mais a frente.

72

Mendonça, 1990, p. 327.

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Retornando ao estudo do contexto histórico entre 1930-1945, o Estado Brasileiro avançou seu processo de constituição enquanto Estado Nacional e Capitalista – criando órgãos e instituições e metamorfoseando os interesses sociais em “nacionais”. A ditadura estado-novista de 1937 neutralizou os regionalismos políticos, alterando as práticas de concessão de recursos e benefícios, compondo órgãos com representantes de segmentos sociais distintos.

Nessa conjuntura foram adotadas medidas para o desenvolvimento industrial, dentre elas, políticas de proteção fundiária, que rebaixou os juros e aboliu os impostos interestaduais. Outra atitude de caráter regulador do Estado no processo de acumulação industrial foram as ações na área sindical e trabalhista: obrigatoriedade do sindicato único, atrelado ao Estado, e fixação do salário mínimo em 1940. Tais medidas teriam o objetivo de evitar o confronto direto entre trabalhadores e patrões, além disso, a fixação de um salário mínimo garantiria a redução de gastos com a folha de pagamento.

Diante disso, de acordo com Mendonça, o Estado se tornou investidor produtivo para potencializar o projeto industrializante, e para isso ele promoveu reforma tributária, alargamento do Imposto de Renda, optou também pela empresa pública como alternativa de financiamento do novo padrão de acumulação: Cia Siderúrgica Nacional (1941), Cia Vale do Rio Doce (1942), Cia Nacional Alcális (1943) e a Cia Hidrelétrica do São Francisco (1945).

A empresa pública fornecia bens e serviços abaixo do preço, propiciando economia de custos ao capital privado. Apesar da burguesia industrial temer os excessos de intervencionismo do Estado, ela continuara investindo nos tradicionais setores produtivos, à sombra dos benefícios da ação estatal, o que acarretava concentração de renda.

Considerando esses elementos, Mendonça propõe a desconstrução da idéia de que o projeto econômico do Estado era essencialmente nacionalista. A autora argumenta que o cenário internacional também não era favorável para penetração do capital forâneo no Brasil. A crise de 1929 dificultou a disponibilidade de recursos e tecnologia no mercado industrial, além da eclosão da Segunda Guerra Mundial, que provocou uma política de

beneficiamento aos países industrializados e não aos países periféricos, cabendo a estes o papel de produtores de matérias-primas e bens agrícolas.

Entre 1945 e 1951, as tendências estatizantes foram interrompidas com a euforia “democratizante” que se opôs aos vestígios do autoritarismo. As articulações da burguesia industrial e agroexportadora contiveram o intervencionismo do Estado nesse momento.

Mas esse período “democratizante” foi marcado com o retorno de Vargas, em 1951. Por conta disso, os setores da burguesia industrial e agroexportadora discutiam planos estratégicos econômicos sobre a possibilidade de associação com capitais privados estrangeiros. Segundo Sônia Mendonça, o retorno de Vargas tinha como objetivo tornar a empresa pública um núcleo definitivo dos investimentos industriais, o que estimularia o capital privado, mantendo também a tecnologia monopolizada. Contudo, apesar do estímulo ao capital privado, o mesmo teria, com esse sistema de monopólio, dificuldades em acessar os investimentos propostos.

Diante disso, a liderança da empresa estatal, subordinando o capital privado, despertou inúmeras resistências internas e externas. A mobilização populista, vivenciada em concessões de novos benefícios na área social, produzia grande resistência no setor burguês. O projeto varguista não unificou os conflitos. Mas, as tentativas de constituir um projeto industrializante por via do Estado não terminou e nem foi impedida com o suicídio de Vargas, em 1954. Em 1955, novos tempos chegavam ao Brasil.

Segundo Carlos Lessa74, essa nova fase encontrou no Plano de Metas de Juscelino Kubitschek de Oliveira (JK) o grande impulsionador dessa nova fase, mas manteve uma estrutura monopolista, articulando a multinacional, a empresa privada nacional e a pública. O Estado ficaria responsável com o setor produtivo de bens de consumo duráveis, enquanto o setor multinacional investiria na industrialização brasileira, juntamente com o setor nacional.

Vivia-se um novo cenário Nacional, no qual a concentração de capital e empresas, provocou o crescimento do pólo urbano-industrial, o êxodo rural – ampliando a massa de mão-de-obra, o crescimento do consumo pela classe média e o crescimento do setor 74

terciário. Evidentemente, essas transformações influenciaram culturalmente o país, Guilhermino César75, analisando os anos pós 1945, identificou um momento de industrialização associada à emergência da segunda etapa desse processo, acentuado com o governo de JK. O desenvolvimento, nesse contexto, estaria ligado à idéia de soberania nacional. O Brasil precisava se modernizar e crescer, a busca disso acabou por forjar, segundo o autor, novas concepções de produção e trabalho intelectual. Estava-se fabricando e consolidando um sistema ideológico com diversas correntes, a exemplo: a nacionalista, a marxista, a liberal, a desenvolvimentista. O objetivo era nítido: precisava-se superar o subdesenvolvimento.

Na procura pela modernidade e ou superação do subdesenvolvimento, o cinema tornou-se ponto de discussão. A problematização girava em torno da necessidade do cinema brasileiro produzir filmes que se adequassem a sua realidade, que discutissem o “nacional” e o “popular”. A produção cinematográfica brasileira no período seguia o modelo estrangeiro, principalmente o holywoodiano. Esse modelo de cinema ideal, certamente adotado pelas companhias cinematográficas brasileiras, fora fruto do cenário internacional, pois após a reconstrução do pós-guerra, o Brasil se tornou espaço de influência estadunidense, no momento de disputa ideológica entre capitalistas e socialistas.

Foi durante a Guerra Fria que a influência norte-americana cresceu no continente Latino americano. Para melhor compreender essas relações, Pedro Malan76, afirmou que “talvez em nenhum outro continente, a avassaladora presença dos Estados Unidos se fazia sentir tão amplamente quanto a América Latina do imediato pós-guerra. Pela primeira vez na história, adquiriram o virtual monopólio de influência na região (...)”. 77 Apesar de ser um artigo alinhado ao pensamento liberal e conservador, a leitura de Malan é interessante para compreendermos como os intelectuais liberais percebiam essas relações Brasil e Estados Unidos.

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CÉSAR, Guilhermino. Poesia e prosa de ficção. In: FAUSTO, Boris. História da Civilização Brasileira. O Brasil Republicano: Economia e Cultura (1930-1964). Tomo III. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997, p. 417-463.

76

MALAN Pedro Sampaio. Relações Econômicas e Internacionais do Brasil (1945-1964). In: FAUSTO, Boris. História da Civilização Brasileira. O Brasil Republicano: Economia e Cultura (1930-1964). Tomo III. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997, p. 51-106.

77

Nessa conjuntura, o então recém-eleito presidente do Brasil, Juscelino Kubitschek, em janeiro de 1956, no momento da posse, apresentou seus Planos de Metas com o objetivo de trabalhar em sua gestão “50 anos em 5”. Alguns fatores externos contribuíram para a efetivação do plano proposto pelo recém-presidente, segundo Malan,

É preciso notar que eventos associados à recuperação européia mostram- se de vital importância para alguns países menos desenvolvidos a caminho da industrialização. O Brasil figurava de forma destacada entre estes, especificamente após a ruptura com o Banco Mundial em 1952, a atitude de negligencia da administração Eisenhower após 1953, a sensacional queda dos preços do café a partir de 1954 e, por último, mas não menos importante, a eleição de Kubitschek em 1955, com uma clara plataforma desenvolvimentista (com concurso do capital estrangeiro) que além dos seus óbvios propósitos internos, levava em conta as condições internacionais adversas e a restrição imposta pelo balanço de pagamento ao desenvolvimento sustentado da economia brasileira.78

A conjuntura econômica internacional influenciou diretamente nos países da América Latina, e JK soube aproveitar a oportunidade. No contexto do mundo pós-guerra, a inserção do Brasil no modelo econômico capitalista, a influência estadunidense no país e a sombra da Guerra Fria, permearam os debates sobre a formação de uma identidade nacional, pois era preciso abandonar o discurso do colonizador; ou seja, o Brasil deveria se modernizar. Para o processo de industrialização, a participação do capital estrangeiro no país foi a medida que, naquele momento, acreditava-se ser a mais acertada. Contudo, de acordo com Malan, a inserção de capital estrangeiro no Brasil não era um fenômeno recente, “documentos oficiais do período chamavam a atenção para o fato de que o Brasil possuía uma das mais favoráveis legislações cambiais do mundo, no tocante a inversões estrangeiras”.79 Exatamente nesse momento, na década de 1950, a indústria cultural brasileira começava a se consolidar, e um dos marcos desse processo foi a chegada da televisão.

Nessa conjuntura, o governo de JK conciliou a entrada da empresa estrangeira e a dinâmica industrial de perfil avançado. Abriu-se mão de um desenvolvimento nacional

78

Idem, p. 77.

79

autônomo e internacionalizou-se a economia através da modalidade de empréstimos e investimentos diretos. Para Mendonça80, nesse período entendeu-se que os recursos internos necessários para o financiamento dessa industrialização, fornecido pelo governo, recorreria ao mecanismo inflacionário. A emissão de moedas se pautou na criação de poupanças forçadas, o que onerava os setores subalternos.

Apesar do projeto desenvolvimentista, o setor produtivo estatal não conseguira acompanhar a demanda do setor de bens duráveis, e o capital estrangeiro possuía superioridade tecnológica e financeira em relação à empresa nacional estatal e privada. Esse desequilíbrio afetou a balança comercial, aumentou-se a importação para atender as exigências das indústrias de bens duráveis estrangeiras. Isso tudo provocou um aprofundamento de dependência externa da economia brasileira. O não repasse da alta lucratividade das indústrias estrangeiras, ocasionado pela tecnologia de ponta, afetou diretamente a classe trabalhadora, já extremamente debilitada pela inflação.

Por conta disso, os (as) trabalhadores (as) passaram a cobrar do Estado de forma mais enérgica, o que se categorizou como a crise do populismo, prática política que acabou se transformando em doutrina, de extrema complexidade. O populismo nasceu, possivelmente, da crise ideológica dominante, não dispondo de nenhuma teoria própria e sistematizada. Neste, o povo é seu principal motor e instrumento, ele é entendido como uma realidade homogênea sem qualquer especificidade classista.81 Contudo, na avaliação de Sônia Mendonça, o populismo não pode ser avaliado como uma mera manipulação das massas, a ser explicado apenas como passividade popular. O carisma do líder e a identificação entre Estado e indivíduos são aspectos fundamentais no populismo, mas este representa o reconhecimento institucional da cidadania política dos trabalhadores, ou seja, de seu direito de cobrar o atendimento de suas aspirações. Entre os limites da manipulação ao de reivindicação, se encontra o equilíbrio instável inerente ao populismo, afetando a estabilidade do regime.

80

Mendonça, Op. Cit.

81

Cf.: AZEVEDO, Antonio Carlos do Amaral. Dicionário de nomes, termos e conceitos históricos. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. P. 360.

Em meio a essa instabilidade e à opção do governo de JK pela abertura da economia ao capital estrangeiro – superando o modelo econômico vigente – consolidou-se um projeto nacional-desenvolvimentista que conseguiu se caracterizar como um “ponto de equilíbrio”, pois atendia à burguesia industrial, dando ênfase no desenvolvimentismo em detrimento do nacional e do intervencionismo Estatal. A classe trabalhadora vislumbrava um futuro melhor pela oportunidade de novos trabalhos, e justamente nesse clima de equilíbrio, houve o processo de industrialização do cinema brasileiro e a consolidação da Companhia Vera Cruz.