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Capítulo 1: Transformações geométricas: aspectos históricos

1.4 Breve análise matemática das transformações geométricas

Uma transformação geométrica no plano é uma aplicação bijetora do conjunto de pontos do plano sobre si mesmo. As principais transformações no plano euclidiano são reflexões em retas, translações, rotações, reflexões centrais e homotetias. A imagem de uma figura por uma transformação geométrica é o conjunto de pontos que são imagens de pontos da figura pela transformação.

Um ponto do plano cuja imagem por uma transformação geométrica é o próprio ponto é chamado ponto fixo por essa transformação. Uma reta é fixa por uma transformação geométrica se sua imagem for a mesma reta. Por exemplo, na reflexão numa reta ou reflexão axial, os pontos do eixo de simetria são pontos fixos e uma reta perpendicular ao eixo de simetria é uma reta fixa. Nem toda reta fixa tem todos os pontos fixos, como a reta perpendicular ao eixo de reflexão, que é uma reta fixa, mas tem só um ponto fixo — a interseção da reta com o eixo. Um subconjunto do plano, ou uma figura, é um invariante por uma transformação geométrica se seus pontos forem fixos por essa transformação.

Para estudar o conjunto das transformações no plano e sua estrutura, define-se a transformação identidade como aquela pela qual a imagem de um ponto é o próprio ponto. Sendo a transformação geométrica no plano uma função bijetora, existe a transformação inversa de outra dada.

A composta de duas (ou mais) transformações geométricas é também uma transformação no plano; existe a transformação identidade e também a inversa de uma transformação geométrica dada; a composição de transformações é uma operação associativa. Portanto, o conjunto de todas as transformações no plano forma um grupo em relação à operação de composição. Os grupos de transformações geométricas foram usados por Klein para classificar e caracterizar as diversas geometrias existentes na sua época, conforme relato feito na parte histórica do tema deste trabalho.

Isometria é a transformação geométrica que conserva distâncias entre pontos,

ou seja, a distância entre dois pontos é igual à distância entre seus pontos imagens pela transformação. O conjunto das isometrias forma um grupo em relação à operação composição de transformações.

Uma isometria conserva:

a colinearidade de pontos; a ordem dos pontos numa reta; a medida dos ângulos;

o paralelismo de retas.

A noção de isometria permite generalizar o conceito de congruência, a princípio definido apenas para segmentos, ângulos e triângulos, ampliando-o para quaisquer subconjuntos não vazios de pontos do plano chamados figuras geométricas.

Assim, duas figuras F e F’ no Plano Euclidiano chamam-se congruentes se existe uma isometria que aplica F sobre F’.

O exemplo mais importante de isometria é a reflexão na reta ou simetria axial, pois qualquer outra isometria pode ser representada como resultado da composição de um número finito de reflexões em reta. Esse é um dos motivos que explica a atenção centralizada sobre reflexões em retas neste trabalho.

Reflexão na reta r ou simetria axial é a transformação geométrica que fixa todos os

pontos de uma reta dada r e associa a cada ponto P do plano, não pertencente a r, o ponto P’, de modo que r é a reta mediatriz do segmento PP’. A reta r chama-se eixo de simetria, e os pontos P e P’ são chamados simétricos em relação a r.

Toda composição de um número finito de reflexões em reta é uma isometria. Para analisar a composta de duas reflexões em retas, é conveniente introduzir a noção de orientação no Plano Euclidiano. Isso será feito de forma intuitiva7 considerando a orientação no plano como aquela determinada por um triângulo e uma ordem de seus vértices.

Assim, o triângulo ABC da figura abaixo está orientado em sentido horário, enquanto o triângulo A’B’C’ está orientado no sentido anti-horário.

B B’

C

A C’ A’ Seja Rr a reflexão em r do triângulo ABC.

B’ C

A reflexão Rr inverte a orientação do plano, e não é possível passar do triângulo ABC para o triângulo A’B’C’ por meio de um movimento dentro do plano. É necessário “sair do plano” que os contém e efetuar o movimento no espaço tridimensional.

7 A definição matemática, por classes de equivalência, encontra-se em Ruoff, 1982, pp. 98-99. A

B

A’ C’

Portanto, a composta de duas reflexões em reta no plano Π inverte duas vezes a orientação no plano, ou seja, essa composta mantém a orientação do plano, sendo, então, um movimento realizado dentro do plano Π.

Embora o enfoque esteja sobre a reflexão em reta, outras transformações, isométricas ou não, serão também apresentadas em diversas partes deste trabalho, o que torna conveniente introduzir, resumidamente, tais noções.

Translação de vetor v é a transformação geométrica no plano que, dado um

vetor v, a cada ponto P do plano associa o ponto P’, de modo que o vetor PP’ seja igual a v.

Toda translação de vetor v pode ser representada de infinitas maneiras como composta de duas reflexões em retas. Basta tomar duas reflexões em retas paralelas que distem d, igual à metade de |v|, uma da outra.

Rotação de centro O e ângulo θ é a transformação geométrica que, dado o

ponto O e um ângulo orientado θ, fixa o ponto O e, a cada ponto P do plano, distinto de O, associa o ponto P’, de modo que o ângulo orientado POP’ seja congruente a θ e as medidas dos segmentos PO e P’O sejam iguais.

Toda rotação de ângulo θ pode ser representada de infinitas maneiras como composta de duas reflexões nas retas r e s. A única condição é que r e s se interceptem num ponto A, formando ângulo congruente à metade de θ.

Simetria central ou reflexão num ponto é a transformação geométrica que,

dado o ponto O, a cada ponto P do plano associa o ponto P’, de modo que o vetor OP’ seja oposto ao vetor OP.

A reflexão central de centro O é uma rotação de ângulo θ igual a π radianos e também é a composta de duas reflexões em retas perpendiculares entre si no ponto O.

Homotetia de centro O e razão k é a transformação geométrica que, dados o

ponto O e o número real k não nulo, a cada ponto P do plano associa o ponto P’, tal que o vetor OP’ é igual ao vetor k.OP.

Com a composição de uma homotetia com uma isometria obtém-se a transformação semelhança, que leva ao conceito de figuras semelhantes, que,

por estar definido para figuras quaisquer, é mais geral que o tradicionalmente feito para polígonos.

Alem da dimensão geométrica, as transformações podem ser analisadas também pelo aspecto algébrico.

No plano Π, estabelecendo um sistema de eixos ortogonais OX e OY, a cada ponto P do plano Π faz-se corresponder o par ordenado (x,y) de números reais e, reciprocamente, a cada par ordenado de números reais corresponde o ponto P do plano. Os números x e y são chamados coordenadas do ponto P. Isso permite definir uma bijeção entre Π e RxR=R2.

A distância entre os pontos P=(x,y) e Q=(x’,y’) é dada pela expressão: d(P,Q) = ( ')2 ( ')2

y y x

x− + −

A transformação T no plano Π é a função T: Π Π, isto é, a bijeção que a cada ponto P do plano associa outro ponto P’=T(P) chamado imagem de P pela T.

Uma isometria do plano Π é a transformação T do plano que preserva a distância entre pontos, ou seja, d(T(P),T(Q))=d(P,Q), para quaisquer pontos P e Q de Π.

Uma vez que um sistema de coordenadas em Π tenha sido estabelecido, uma transformação T pode ser descrita por suas equações, isto é, pelas expressões das coordenadas (x’,y’) do ponto P’=T(P).

A translação Tv, determinada pelo vetor v, é a transformação que leva cada ponto do plano Π no ponto Tv(P) = P + v. Se v = AB, então P+ v = Q é o ponto, tal que o segmento orientado PQ é eqüipolente a AB.

Se, num dado sistema de eixos ortogonais, as coordenadas de v forem (a,b), então, para cada ponto P=(x,y) tem-se:

Tv(P) = (x+a,y+b), ou seja, x’= x + a y’= y + b

x x + a Na notação matricial tem-se: T =

y y + b

26 Y y’ P’ v y P ‘ b v O a x x’ X Observa-se que:

a) sendo Tv uma bijeção, ela é inversível e sua inversa é a translação de parâmetros – a e – b;

b) Tv é uma isometria. De fato, sendo P=(x1,y1), Q=(x2,y2) e Tv=(x+a,y+b),

então, d(T(P),T(Q))= =

[

] [

]

2 2 1 2 2 1 a (x a) y b (y b) x + − − − + − + = 2 2 1 2 2 1 ) ( ) (xx + yy = =d(P,Q)

Portanto, d(T(P),T(Q)) = d(P,Q) e Tv é uma isometria.

c) Tv transforma retas em retas e a imagem de uma reta é uma reta paralela a r; d) Tv conserva o ângulo formado por duas retas concorrentes.8

Rotação de centro O e ângulo θ é a transformação geométrica que, dado o

ponto O e um ângulo orientado θ, fixa o ponto O e, a cada ponto P do plano, distinto de O, associa o ponto P’, de modo que o ângulo orientado POP’ seja congruente a θ e as medidas dos segmentos PO e P’O sejam iguais. Se OXY é um sistema de eixos ortogonais no plano, tem-se:

e2 f1

8 As observações c) e d) estão demonstradas para isometrias quaisquer em Lima, 1992 ,p. 140. X’ P P’ Y’ y Y x y Θ

f2

e1

A rotação R(θ), de centro O e ângulo θ, transforma o ponto P no ponto P’e leva o vetor unitário e1 do eixo OX no vetor f1 = cosθ.e1 + senθ.e2; e leva o vetor unitário e2 do eixo OY no vetor f2 = - senθ.e1 + cosθ.e2.

Temos: OP = x.e1 + y.e2

e OP’ = x’.e1 +y’.e2 = x.f1 +y.f2

pois no sistema OX’Y’, cujos vetores unitários são f1 e f2, o ponto P’ tem as mesmas coordenadas x e y que o ponto P tem no sistema OXY.

Então: OP’= x(cosθ.e1 + senθ.e2) + y(- senθ.e1 + cosθ.e2.) = = (x cosθ. - ysenθ)e1 + (x senθ. + ycosθ)e2

x’= x cosθ - ysenθ Portanto

y’= x senθ + ycosθ

x cosθ - senθ x ou R(θ) =

y senθ cosθ y

a) dadas as rotações R(θ1) e R(θ2), a composta das duas é R(θ1).R(θ2)=R(θ2).R(θ1)=R(θ1+θ2);

b) R(θ+2kπ) = R(θ);

c) R(0) = I, onde I é a transformação identidade; d) R(θ) é inversível e sua inversa é R(-θ); e) R(θ) transforma retas em retas;

f) R(θ) conserva o ângulo formado por duas retas.

Em particular, uma rotação de 180° de centro O leva o ponto P=(x,y) no ponto P’=(-x,-y). Nesse caso, qualquer que seja o ponto P do plano, a origem O é ponto médio do segmento PP’. Portanto, a rotação de 180° de centro O é a simetria central de centro

O.

Reflexão na reta r ou simetria axial Rr é a transformação geométrica que fixa todos os pontos de uma reta dada r e associa a cada ponto P do plano, não pertencente a r, o ponto P’, de modo que r é a reta mediatriz do segmento PP’.

Para estabelecer as expressões algébricas de Rr considera-se um sistema de eixos ortogonais OXY.

1) Se o eixo OX coincide com a reta r, então, para cada ponto P=(x,y), a imagem de P é Rr (P) = (x,-y)

Y Portanto as equações da reflexão Rr são: y P x’= x ou x x r O x X y’= -y Rr y = -y -y P’ x 1 0 x Rr =

y 0 -1 y

2) Se a reta r passa pela origem O e forma ângulo ϕ com o eixo OX, tem-se:

Pela reflexão Rr o eixo OX se transforma em OX’, que corresponde à imagem de OX pela rotação de ângulo 2ϕ e o eixo OY se transforma em OY’. Como se viu, na rotação de ângulo 2ϕ tem-se:

x’= x.cos2ϕ + y.sen2ϕ que são as equações dessa y’= x.sen2ϕ - y. cos2ϕ reflexão Rr.

x cos2ϕ sen2ϕ x ou Rr =

y sen2ϕ - cos2ϕ y

3) Se a reta r tem equação y = ax + b, em que a = tgϕ é a inclinação de r, então, considera-se a reta r’, passando pela origem e paralela a r, cuja equação é y = ax.

Y y=ax +b r P X X’ Y ϕ ϕ O r

P’ y=ax b P1 r’

-v ϕ P2

O X

A reta r’ é a imagem de r pela translação de vetor –v = (0,-b). Para determinar a imagem P’ do ponto P = (x,y), considera-se:

a) a imagem P1 de P pela translação de vetor –v. Logo, x1=x e y1=y-b;

b) a imagem P2 de P1 pela reflexão em r’; Logo, x2= x.cos2ϕ + (y-b).sen2ϕ y2= x. sen2ϕ - (y-b). cos2ϕ

c) a imagem P’ de P2 pela translação de vetor v=(o,b);

Logo, x’= = x.cos2ϕ + (y-b).sen2ϕ y’= x. sen2ϕ - (y-b). cos2ϕ + b

Como a = tgϕ, usando-se as expressões da trigonometria que fornecem cos2ϕ e sen2ϕ em função de tgϕ, cosx =

2 2 2 2 1 1 x x tg tg + − , senx = 2 2 2 1 2 x x tg tg + , tem-se: cos2ϕ = 2 2 1 1 a a + − e sen2ϕ = 2 1 2 a a + Logo, x’= 2 2 1 1 a a + − x + 2 1 2 a a + (y – b) y’= 2 1 2 a a + x - 2 2 1 1 a a + − (y – b) + b

Observa-se que:

a) a reflexão Rr é uma isometria;

b) a reflexão Rr é inversível e sua inversa é a própria Rr; c) Rr transforma retas em retas;

d) a reflexão em reta conserva o ângulo entre retas.

As equações de uma isometria T (translação, rotação ou reflexão) têm uma das formas: x’= cx – dy + m ou x’= cx + dy + m y’= dx + cy + n y’= dx – cy + n e as matrizes de T são c -d e c d d c d -c

No primeiro caso, T preserva a orientação do plano e o determinante ∆ = c2 + d2 = 1 é positivo; neste caso T é uma translação ou uma rotação.

No segundo caso, T inverte a orientação do plano e ∆ = -c2 - d2 = -1 é negativo; neste caso, T é uma reflexão em reta.

Homotetia de centro O e razão k é a transformação geométrica Hk em que, dados o ponto O e o número real k, não nulo, a cada ponto P do plano associa o ponto P’, tal que o vetor OP’ é igual ao vetor k.OP.

Considerando um sistema de eixos ortogonais OXY, tem-se: Y y’ P’ x’ = kx y P y’ = ky O x x’ X x k 0 x ou Hk =

y 0 k y

Observa-se que:

a) para k=1, Hk é a transformação identidade; b) Hk não conserva distâncias para k≠ 1;

Para k> 1, tem-se d(P,Q) < d(P’,Q’) e para k < 1, d(P,Q) > d(P’,Q’); c) Hk é inversível e sua inversa tem razão

k 1;

d) Hk transforma retas em retas; e) Hk preserva ângulo de retas.

A apresentação das transformações geométricas no quadro algébrico permitiu analisar aspectos que não tinham sido evidenciados no quadro geométrico, como, por exemplo, as equações gerais de uma isometria, destacando aquelas que conservam e as que mudam a orientação do plano. Além disso, como vimos no desenvolvimento epistemológico, item 1.3 deste capítulo, a influência da álgebra foi fundamental na gênese do conceito de transformações geométricas.